Militares, política doméstica e política de defesa

Por Flávio Rocha de Oliveira, Juana Lorne e Tarcízio Rodrigo de Santana Melo

Política oficial para as Forças Armadas segue pouco transparente e priorizando aliança estratégica com Departamento de Defesa dos Estados Unidos

Num processo de adaptação à conjuntura política marcada pelo governo Bolsonaro, a oposição começa a se movimentar, ainda que timidamente, no sentido de colocar o estamento militar como tema de debate interno, já visando as eleições de 2022. 

Em agosto, em entrevista ao jornal Página 13, ligado ao PT, Valter Pomar fala sobre os documentos internos que o partido está produzindo (o Plano de reconstrução e transformação do Brasil: Outro mundo é preciso; outro Brasil é necessário), e sobre a discussão partidária que deve ser feita a respeito das Forças Armadas, consideradas como uma pauta estratégica. 

O jornal O Globo, em matéria do dia 24, traz a informação de que o PT pretende reagir ao avanço do presidente Bolsonaro em redutos eleitorais petistas, como a região nordeste, através de uma aproximação com setores das forças armadas.

Proteção de dados 

Em artigo publicado no dia 9 de setembro pela Agência Pública, ​especialistas questionam a forma escolhida pelo Governo Bolsonaro para implementar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e tecem críticas sobre a estratégia do Governo na implementação desse marco legal. 

No artigo, foi levantado um debate sobre o papel dos militares em relação a uma lei (de proteção de dados) que visa proteger o cidadão, mas que não se resume à segurança. 

No padrão internacional, além de haver uma autoridade técnica estruturada que realiza as regulamentações de aplicação de uma lei que regula o uso de dados, também é previsto que essa mesma autoridade seja autônoma e independente, isto é, uma autoridade que não esteja vinculada hierarquicamente a outros órgãos públicos. O Governo Bolsonaro vai em outra direção: a implementação da LGPD no Brasil prevê a existência de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a ANPD, e que deve ser criada no ano que vem, subordinada à Casa Civil, hoje chefiada pelo general do Exército, Walter Braga Netto. Segundo o artigo, a ideia é controversa, já que os militares têm uma visão sobre dados mais voltada à cibersegurança do que à proteção da cidadania. 

A LGPD tem como principal objetivo a proteção de dados dos cidadãos. No contexto atual de implementação pelo governo, ela pode acabar ganhando novas formas de uso num sentido de estratégias de defesa cibernética e segurança da informação. Ainda de acordo com o artigo, “pode-se dizer que o decreto atual indica uma aproximação da autoridade com a ala militar, pela relação com a Casa Civil, hoje comandada por um general”. 

Nos atuais documentos da nova Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END) encaminhadas, em 22 de julho de 2020, para apreciação do Congresso Nacional,  a questão da segurança cibernética merece destaque. Na divisão institucional de tecnologias-chave para o setor de defesa, há uma divisão idealizada de responsabilidades de cada uma das forças. A Marinha fica responsável pelo setor nuclear, a Força Aérea pelo setor aeroespacial e o Exército justamente pela defesa cibernética. A leitura desse documento pode abrir espaço para um questionamento de uma instrumentalização da LGPD no governo Bolsonaro. Inicialmente, os processos que cercaram a discussão mais ampla dessa Lei estavam fora da alçada militar.

“Tecno-autoritarismo” 

No exterior, vão se consolidando algumas percepções a respeito do caráter do governo Bolsonaro. No campo cibernético, a Revista ÉPOCA traz um artigo, datado de 20 de agosto,  no qual destaca um texto da  da MIT Technology Review, no qual é apresentada a ideia de que “o Brasil está indo em direção a um tecno-autoritarismo” devido a ações do atual governo que representam ameaças à liberdade e à privacidade civis, principalmente por sua falta de transparência com relação a proteção de dados.

Vale a pena uma observação a respeito da questão da defesa cibernética: recentemente, ainda no mês de setembro, a Marinha divulgou  seu Plano Estratégico da Marinha (PEM) 2040. Entre outras informações, consta na página 75 que a força naval visa criar um Esquadrão de Guerra Cibernética, mostrando que talvez a MB não esteja de pleno acordo com a estratégia de defesa que estabelece a primazia no Exército na área.

O Embaixador dos Estados Unidos, Todd Crawford Chapman, realizou uma visita ao Complexo Naval de Itaguaí, onde são construídos os novos submarinos da Marinha do Brasil (MB), sendo recebido pelo comandante da Marinha, Ilques Barbosa Junior e outros almirantes. Essa não é a primeira visita de uma comissão de alto nível estrangeira de outro país ao berço do PROSUB, contudo, essas em geral eram de países sul-americanos ou da própria França. Tal visita é mais uma evidência do alto grau de proximidade das Forças Armadas Brasileiras com os EUA, cabendo sublinhar que mesmo que o PROSUB seja fruto de um acordo com a França, apesar de os submarinos Scorpène conterem muitos componentes americanos. Fica o questionamento se tal proximidade diminuirá as pressões do EUA contra o PROSUB.  

Em entrevista, no ano de 2018, o então comandante da MB, Leal Ferreira, disse que  (se) “Você tenta comprar [um equipamento], os americanos não vendem. (…) Às vezes, tentamos comprar algo e os americanos ou outro país fazem pressão para a empresa não vender…”

Marinha e poluição ambiental

O site G1, em 27 de agosto,  apontou que a MB concluiu a primeira parte das investigações acerca do derramamento de óleo no litoral nordestino em 2019 sem conseguir apontar o responsável, mas confirmando, segundo a Marinha, a origem venezuelana do petróleo. A força naval soltou uma nota em resposta a matéria, na qual ela se defende das cobranças sobre a evidente demora da reação governamental ao problema do derramamento de óleo – a resposta foi uma simples negativa de que tal demora tenha ocorrido… 

Cabe lembrar que, na data do desastre, o comandante da Marinha disse que iria “até o fim” para encontrar o culpado.

O Ministério da Defesa (MD) tomou uma decisão que, de tão curiosa, parece improvisada:  depois de grande repercursão da falta de consulta pública (e especialmente de um debate mais amplo, envolvendo autoridades e pesquisadores civis) para a elaboração das novas PND e END, ele disponibilizou um documento para “sugestões” que é, para dizer o mínimo, de importância muito secundária. Trata-se do “Manual de Operações Anfíbias”. O detalhe acerca desse documento é que ele já está em vigor… O MD não se deu ao trabalho de ao menos anexar o link para o documento na postagem, que pode ser visto aqui

Choque com aliados

Bolsonaro segue com sua tendência de entrar em choque com aliados.  O atrito dessa vez foi com a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE). A razão para o mal-estar foi a notícia de que o Ministério da Justiça planeja criar um escritório em Washington para importar armamento dos EUA para equipar a Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF). A notícia gerou diversas reações negativas, e entre elas uma nota de repúdio da ABIMDE, que cobrou que Bolsonaro honrasse o lema “Brasil Acima de Tudo!”.  A maior empresa brasileira do ramo, a Taurus, declarou que pretende acelerar e expansão da empresa rumo ao exterior e através do seu CEO afirmou que Bolsonaro não está bem assessorado no tema de armamentos. Até mesmo o portal conservador DefesaNet, um feroz defensor das atitudes governamentais, publicou um editorial com fortes críticas a decisão do governo e conclamando os comandantes das forças armadas para que apoiem a indústria nacional de facto. 

Cabe lembrar que Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, deputado federal e que chefia a a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN),  discursa frequentemente em favor da filial americana da fabricante de armas SIG Sauer. Boa parte dos defensores do porte de armas, e que são apoiadores de Jair Bolsonaro, são entusiastas das marcas estrangeiras como Colt, Beretta, Glock e SIG Sauer, enquanto veem com desprestígio as marcas nacionais.  

O ex-ministro da defesa Raul Jungmann e o ex-embaixador Rubens Barbosa, estão liderando a criação de um  think-thank chamado Centro de Defesa e Segurança Nacional. Ainda não temos detalhes sobre os possíveis membros e posições políticas do futuro centro de estudos. Outro fórum já criado para discussão de defesa e outros temas, dessa vez capitaneado por militares da ativa e da reversa é o Personalidades em Foco , que é composto em geral por “liberais-conservadores”.

Drones nacionais

A empresa brasileira Stella Tecnologia realizou os primeiros voos do “drone estratégico” Atobá, a mais nova tentativa de desenvolver um drone do tipo MALE  (Medium Altitude Long Endurance) no Brasil. O Atobá ainda é um protótipo,  não teve envolvimento da Força Aérea (FAB) em seu desenvolvimento e ainda não tem encomendas. 

Antes de se consagrar como um vetor “estratégico” da defesa nacional, o drone brasileiro, terá de superar o domínio dos modelos de origem israelense de drones tipo MALE, que atualmente são operados pela FAB, o que não será fácil, uma vez que Embraer e Avibras já fracassaram nesse tipo de empreitada. Vale a pena ressaltar que setores do governo Bolsonaro se esforçam em implementar uma aliança procedimental com os israelenses, da mesma maneira que tem feito com os EUA, o que pode prejudicar empresas brasileiras que desenvolvam tecnologias já dominadas por Tel Aviv.

O presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso acordo Acordo de Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E) assinado com os EUA. Em teoria o acordo facilitará a empresas  brasileiras participarem como subcontratadas no desenvolvimento de produtos de defesa nos EUA, salvaguardando principalmente questões de propriedade intelectual, ponto no qual os norte-americanos são rigorosos.

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