Retrocesso generalizado nos Direitos Humanos na Argentina de Milei

Ano V, nº 88, 07 de novembro de 2024

 

Por Ana Beatriz Aquino, Caio Vitor Spaulonci, Luiza Fernandes e Silva, Sara Massari Nunes Paes e Gilberto M. A. Rodrigues (Imagem: Argentina.gob.ar)

 

Nos últimos meses, a Argentina tem passado por sérias mudanças normativas que ameaçam diretamente os direitos humanos no país. A plataforma neoconservadora, anti-establishment e autoritária de Javier Milei (partido La Libertad Avanza) tem promovido reformas alegando reduzir o papel do Estado e fortalecer o mercado para enfrentar a crise econômica. O resultado, porém, é uma generalizada regressividade nos direitos humanos.

 

A retórica de ódio adotada por Milei – característica da extrema-direita atual – atinge grupos vulneráveis, como imigrantes, refugiados, mulheres e demais minorias. Tal discurso é crucial em legitimar a violência e a discriminação, enfraquecer a coesão social e criar um ambiente propício para mudanças radicais nas políticas públicas e na legislação argentina.

 

Vale dizer que esses retrocessos repercutem nas Nações Unidas. Durante a 56ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, no início de 2024, o Alto Comissário de Direitos Humanos, Volker Türk, apontou problemas nas recentes medidas do governo Milei, incluindo cortes de investimentos públicos direcionados à população mais marginalizada, extinção de órgãos voltados aos direitos das mulheres e justiça, e rejeição à pauta de mudanças climáticas e à Agenda 2030, ilustrando o afastamento dos direitos humanos das políticas públicas. 

 

Migrações

 

O tema das migrações tem estado na mira da agenda neoconservadora, fortemente inspirada pelo trumpismo. Sob Milei, o Decreto Nº 819 de setembro de 2024, é visto por organizações de Direitos Humanos como um marco de securitização na política migratória argentina, passando a considerar imigrantes e refugiados como potenciais criminosos.

 

O Decreto altera a Conare (Comissão Nacional para os Refugiados), órgão semelhante ao brasileiro, criado em 2006 pela Lei nº 26.165. O Conare brasileiro, porém, foi criado em 1997 vinculado ao atual Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e inclui a Polícia Federal desde sua concepção. Na Argentina, por sua vez, a Conare foi criada vinculada ao Ministerio del Interior, com participação do então Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, mas sem representantes da segurança. Com o Decreto, o Ministerio de Seguridad – distinto do Ministerio de Justicia – passa a integrar a Conare, substituindo o Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI), tradicional defensor dos direitos de migrantes e refugiados, o qual foi dissolvido, também por decreto, em 2024.

 

A dissolução do INADI e a inclusão do Ministerio de Sguridad na Conare sinalizam uma virada securitária na política migratória argentina, colocando em risco compromissos como a proteção internacional e o princípio da não-devolução, da Convenção de Genebra (1951). Em síntese, a decisão do governo Milei de expandir o papel do Ministério de Segurança transforma a Conare, antes orientada por princípios humanitários, para uma lógica de segurança no controle migratório.

 

Lei de Bases

 

No dia 28 de junho de 2024, com 148 votos a favor e 107 contra, o governo de Milei conseguiu a aprovação da Lei de Bases (Ley de Bases y Puntos de Partida para la Libertad de los Argentinos) no Congresso Nacional argentino. Esta Lei garante ao Executivo poderes legislativos delegados, o que dá autonomia ao governo por um ano para decidir sobre medidas econômicas e de infraestrutura sem passar pelo Congresso Nacional. 

 

A lei prevê ainda a privatização de empresas e órgãos públicos, e liberalização da economia para favorecer o investimento privado. Além disso, o texto prevê a flexibilização das leis trabalhistas e redução dos direitos dos trabalhadores, como a possibilidade de justa causa se os funcionários participarem de protestos que bloqueiam vias, entre outras. 

 

Para obter a aprovação da lei no Senado, o governo teve de desistir da extinção de 15 entidades da administração pública, da privatização de grandes empresas nacionais, como a Aerolíneas Argentinas, e da extinção do imposto sindical obrigatório.

 

Educação

 

A educação passa também por cortes e perdas para os profissionais da carreira, acarretando sucateamento. Algumas medidas incluem o bloqueio de financiamentos de programas, e congelamento de salários. A primeira versão da Lei de Bases proposta por Milei, a qual não foi aprovada, classificava a educação como um serviço essencial, estabelecendo taxas de disponibilização do serviço e pessoal na provisão de serviços mesmo durante as greves. Para deputados de oposição, isso acarretaria na violação do direito à folga e greve do corpo docente e técnico, direito previsto na Constituição do país. Além disso, essa proposta admitia a possibilidade de crianças de até  nove anos não irem à escola presencialmente, o que contraria princípios de desenvolvimento social e democracia.

 

No dia 3 de outubro de 2024, Milei vetou a lei que garantia o reajuste do orçamento das universidades públicas, incluindo o salário de professores e técnicos administrativos, e demais custos operacionais. Além da defasagem no salário, a falta de reajuste compromete a capacidade das Universidades de arcarem com contas básicas, como luz e água. Em apenas um ano, de agosto de 2023 a agosto de 2024, a inflação acumulava 236,7%.

 

Milei agora buscará propor novo projeto com o objetivo de cumprir sua agenda neoliberal, o que inclui  alterar o financiamento das universidades e adotar a  cobrança de mensalidades para estudantes estrangeiros. No dia 8 de outubro, o governo anunciou, por meio do Decreto 888/2024, a eliminação de um fundo universitário criado para funcionar até 2042. O fundo era um dos responsáveis pelo pagamento de bolsas a milhares de universitários por meio do programa Becas Progresar.

 

Trabalho e aposentadoria

 

O compromisso de campanha de Milei era reduzir o tamanho do Estado, apostando em demissões em massa e privatizações. Em seu primeiro decreto, reduziu de 18 para 9 o número de ministérios de seu governo, acabando com as pastas da Educação, Trabalho, Cultura, Meio Ambiente, entre outros. Até abril de 2024, mais de 24 mil servidores haviam sido demitidos. Em 30 de setembro, foram demitidos 1,5 mil servidores, sendo mais de 1,4 mil do Ministério do Capital Humano – responsável pelas pautas sociais – e 80 da Secretaria de Direitos Humanos. Além disso, em 11 de outubro, o governo anunciou que os servidores públicos, temporários ou permanentes, deverão passar periodicamente por um “teste de idoneidade”, dando margem a demissões com o intuito de alinhamento político.

 

Nos primeiros seis meses do governo de Milei, a pobreza aumentou 11 pontos percentuais. O poder de compra diminuiu a ponto de mesmo quem trabalha não ter garantidas condições dignas de sobrevivência. Com isso, grande parte da população passou a recorrer aos trabalhos informais, reduzindo direitos e mantendo bases salariais em baixa.

 

Mais da metade da população argentina – cerca de 25 milhões de pessoas – está abaixo da linha da pobreza, o que leva muitas a depender das cozinhas de bairro e comunidades. A despeito disso, no final de 2023, Milei anunciou cortes no fornecimento de alimentos, deixando as cozinhas dependentes de doações do setor privado. Desde então, muitas fecharam ou não conseguem abrir todos os dias ou oferecer cardápio nutritivo e saudável.

 

Os trabalhadores amparados pela Seguridade Social também sofrem com os cortes. Em setembro de 2024, Milei vetou proposta de reajuste das aposentadorias que compensariam parte da inflação crescente no país. Estudos apontam que a cesta básica dos aposentados, que inclui aluguéis, serviços públicos e medicamentos, compreendia três vezes mais que o mínimo vigente, de 225.454 pesos (aproximadamente R$ 1.350,00).

 

Saúde e igualdade de gênero

 

Durante sua campanha eleitoral, no pós-pandemia, Milei chocou o mundo ao propor a extinção do Ministério da Saúde da Argentina caso fosse eleito – a decisão foi reconsiderada na reforma ministerial. Ainda assim, continuou levando a cabo uma política de precarização da saúde. Em seu primeiro mês de governo, aprovou o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), fazendo com que os planos de saúde tivessem um aumento de aproximadamente 40% a partir de janeiro de 2024, com controle dos preços retomado apenas em maio. Além disso, em sua gestão, houve agravamento da epidemia de dengue enfrentada pelo país pela escassez de repelentes e suspensão do fornecimento de tratamentos para pacientes com doenças graves, incluindo medicamentos oncológicos.

 

Um dos grandes temas de saúde pública na agenda de Milei – seguindo a cartilha dos governos de extrema-direita – são os direitos reprodutivos, especialmente o direito ao aborto. O movimento feminista argentino posicionou o país na vanguarda do tema em 2020 ao conseguir a aprovação da interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação. Porém, esse direito encontra-se ameaçado por um governo que busca inviabilizar sua implementação, ao restringir o acesso aos insumos necessários para a realização do procedimento. Ademais, deputados de sua sigla “A liberdade avança” apresentaram um projeto de lei para proibir o aborto e penalizar mulheres e profissionais de saúde.

 

Milei transformou o Ministerio de las Mujeres, Géneros y Diversidad – criado durante a gestão Fernandez – na Subsecretaría de Protección contra la Violencia de Género do Ministerio de Capital Humano, demitindo 85% do quadro. Em 8 de março de 2024 – Dia Internacional da Mulher – Milei anunciou que o Salão das Mulheres da Casa Rosada, dedicado a homenagear mulheres notáveis do país – seria reinaugurado como Salão dos Próceres, substituindo as homenagens prestadas às mulheres por serem “discriminatórias” e optando por destacar figuras importantes da política Argentina, não por acaso, todos homens.

 

A rejeição explícita de Milei à agenda de gênero também ficou evidente em reuniões internacionais. Em publicação no X (antigo Twitter), a Alta Representante para Temas de Gênero do Itamaraty, Vanessa Dolce de Faria, afirmou que a Argentina foi o único país que não apoiou a declaração sobre igualdade de gênero elaborada pelo Grupo de Trabalho sobre Empoderamento das Mulheres do G20. Esse isolamento internacional reflete uma postura regressiva da Argentina em relação aos direitos das mulheres, direitos reprodutivos e combate à violência de gênero, áreas nas quais o país tinha avançado significativamente nos últimos anos. Em menos de um ano de gestão, é possível observar um apagamento tanto no nível simbólico, quanto material da perspectiva de gênero das políticas públicas argentinas. 

 

Comunicação e acesso à informação

 

Em 2009, após ampla pressão e luta social, a Argentina instituiu a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. Ratificada em 2013 pela Corte Constitucional Argentina, a Lei de Meios tinha por objetivo democratizar o acesso à mídia e comunicação, maximizar a representação popular, e prevenir a formação de grandes monopólios na comunicação. Dentre as medidas, criou a agência de AFSCA (Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual), que previa ampla participação popular e autonomia em relação ao governo.

 

Em 2017, Macri havia transferido para o Executivo os poderes da AFSCA substituindo-a pelo Ente Nacional de Comunicaciones (Enacom) e afrouxando os mecanismos de prevenção de monopólios. No governo Milei, medidas visam implementar um pacote de desregulamentação do setor, incluindo a intervenção do Enacom por 180 dias (Decreto 89/24), a intervenção nas empresas públicas de comunicação, rádio e televisão, como Telam e o sistema RTA, o qual passa a ser controlado inteiramente pelo interventor.

 

Em junho de 2024, Milei modificou, também por decreto, a Lei de Acesso à Informação, ampliando as possibilidades de restrição de informações solicitadas ao Poder Público, alegando falta de interesse público. Segundo artigo do El País Argentina, mais de 60 organizações apontaram que a medida afasta o país dos padrões internacionais de direitos humanos e da luta anti-corrupção, pois possibilitar aos agentes públicos decidir sobre a disponibilidade das informações é reduzir a capacidade de controle, fiscalização e responsabilização das autoridades. 

 

No dia 13 de agosto de 2024, a deputada macrista Soher El Sukaria do Partido PRO, base do governo, foi nomeada como interventora na Defensoría del Público de Servicios de Comunicación Audiovisual, órgão público com o objetivo de promover, difundir e defender o direito à comunicação democrática dos públicos dos meios audiovisuais em todo o território nacional, que Milei deseja encerrar. A oposição alega que a indicação do titular cabe a uma comissão bicameral, inativa quando da indicação.

 

Liberdade de Expressão e Pacote anti-protestos (Repressão)

 

A liberdade de expressão vem sendo atacada tanto no aumento da violência à mídia e seus profissionais como por meio do aumento da repressão e violência para conter manifestações antigoverno. Em 9 de fevereiro de 2024, diversas organizações de imprensa enviaram denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), apontando para uma degradação sistemática e intencional da liberdade de imprensa no país, quando do desmonte dos marcos jurídicos de direitos.

 

Para conter a insatisfação popular frente a regressividade dos direitos no país, a Ministra de Segurança Patricia Bullrich – que disputou o primeiro turno das eleições presidenciais em 2023, pelo partido de Macri – anunciou um pacote de medidas para reprimir protestos populares, principalmente os bloqueios de ruas – populares na Argentina por meio de represálias aos participantes. De acordo com a ministra, o bloqueio de ruas será combatido por agentes de segurança com “forças proporcionais” a resistência dos manifestantes, havendo sanções por danos ambientais e para os responsáveis que estiverem com crianças. Além disso, também foi incluído no pacote a criação de um registro de organizações envolvidas e cobertura dos gastos das operações pelos próprios manifestantes e organizações.

 

Política externa e controle ideológico sobre a chancelaria

 

Após o país votar a favor de Cuba na ONU contra o embargo estadunidense – tradicional posição argentina nesse tema – Milei demitiu sua chanceler, Diana Mondino – tida como uma das membras moderadas do gabinete do presidente – e a substituiu pelo embaixador argentino em Washington, o empresário Gerardo Werthein. Em comunicado oficial, a Presidência afirmou que o país atravessa mudanças profundas que exigem que seu corpo diplomático “reflita em cada decisão os valores de liberdade, soberania e direitos individuais que caracterizam as democracias ocidentais”.

 

Ato contínuo a esse episódio, Milei anunciou uma medida de enquadramento da diplomacia argentina à política do governo, em nítida posição persecutória a diplomatas – lembrando que a diplomacia argentina é majoritariamente uma carreira de Estado. Segundo o jornal argentino La Nación, Werthein chega à chancelaria em um momento em que o governo acelera mudanças no Palacio San Martín, com o objetivo alegado de “homogenizar o discurso e evitar ‘erros’ como os de Mondino”. Além disso, o governo Milei decidiu iniciar uma investigação interna sobre os diplomatas visando identificar quem havia aconselhado a chanceler e levar a cabo uma “auditoria”, que, conforme o veículo argentino  Página 12, tem por objetivo “identificar incitadores de agendas inimigas da liberdade”.

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