O que está por trás do combate ao investimento produtivo chinês?

Ano 0, 19 de fevereiro de 2019

Por Giorgio Romano 
Publicado originalmente na Carta Capital

Nos últimos meses, surgiu um debate sobre os fluxos de investimentos produtivos chineses para o Brasil. Após ter se tornado o principal parceiro comercial de muitas nações, desde 2009 a China começou, de fato, a se apresentar também como grande investidor e financiador.

O Brasil é destino prioritário dos Investimentos Externos Diretos (IED) chineses, muito embora estes se espalhem ao redor de todo o mundo. A escalada da disputa entre os Estados Unidos e a China apenas fomenta esse debate.

É sabido que, embora chamada resumidamente de “guerra comercial”, esta competição vai além, alcança o controle de tecnologias, a capacidade de apropriação do valor ao longo das cadeias produtivas. Os IED há tempos se tornaram o principal elo da internacionalização da produção do planeta, tendo crescido, sobretudo a partir de meados da década de 1980, a taxas superiores ao crescimento do comércio e das próprias economias nacionais.

Exemplo desta realidade é que hoje as subsidiárias das multinacionais estadunidenses operando na China tenham uma venda local – em torno de 200 bilhões de dólares – superior ao total das exportações dos EUA para este país –130 bilhões (dados referente a 2017).

IED

Na era da globalização neoliberal, a promessa era a de que a simples abertura das fronteiras e a desregulamentação para atrair IED iria contribuir para o crescimento global. A atração destes investimentos iria, automaticamente, promover o desenvolvimento nos diversos países receptores.

O que se viu foram os fluxos produtivos crescerem quase 3,5 vezes mais do que as economias nacionais desde o início da década de 1990. Grande parte do aumento se deu por aquisições de ativos existentes.

As implicações estratégicas e político-econômicas dessas operações – que se relacionam a um processo de concentração de poder tecnológico e financeiro – tinham sido no passado objeto de debates críticos, sobretudo nos países periféricos.

Agora, está de volta, por um só motivo: a China se tornou exportador de capital produtivo. Quer dizer: os investimentos anuais de empresas chinesas, estatais ou não, superam os investimentos das multinacionais dos demais países na própria China.

Então, enquanto os fluxos de investimentos produtivos eram oriundos dos países centrais, em particular dos EUA, não se observava os mesmos debates e preocupações que ensejam o momento atual.

Todo o cenário era apresentado como um reflexo natural do processo de globalização, não dando a devida atenção ao que isso significava para as relações de poder no sistema internacional. Agora, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, considera os investimentos chineses uma potencial ameaça à segurança nacional.

Ele questiona as regras que a China impõe às multinacionais que entram no país referentes à transferência obrigatória de tecnologia. Foi nesse espírito que ele reforçou e ampliou o mandato da Comissão de Investimentos Estrangeiros nos EUA (Cfius, na sigla inglesa). Nisso ele tem apoio dos Democratas.

Também na Europa (em particular na Alemanha) e na Austrália deu-se início a uma discussão sobre o significado dos IED chineses. Exemplos são a desconfiança dos alemães com relação ao envolvimento do Huawei na sua rede 5G ou dos australianos com sua rede elétrica.

No início do mês passado, a Alemanha lançou o documento “Política Industrial Nacional 2030”, no qual explicita que o governo vai proteger setores considerados estratégicos de aquisição pela concorrência estrangeira.

E o Brasil?

A importação da abordagem crítica aos investimentos chineses, como ao gosto do atual governo, está sendo rejeitada por vários setores. Em primeiro lugar, por aqueles que se identificam com os interesses brasileiros envolvidos, em particular do agronegócio.

Segundo, por quem defende a ideia de abertura irrestrita para todo tipo de capital. E, terceiro, por aqueles que entenderam a hipocrisia em questionar somente os interesses geopolíticos detrás dos IED chineses.

No fim, seria ingênuo imaginar que os EUA não tenham um interesse na compra da Embraer pela Boeing ou pela compra de áreas estratégicas do pré-sal pela Exxon, ambos movimentos que surgiram pós-golpe contra a presidenta Dilma Rousseff.

É fato que houve um aumento expressivo dos IED chineses para o Brasil. Isso reflete dois outros movimentos: a mencionada entrada da China no grupo seleto de países exportadores de capitais produtivos, de um lado, e de outro o fato de o Brasil ter se tornado há vários anos um dos principais destinos dos fluxos globais de IED, não só da China.

Em 1990, os IED para o Brasil eram pouco superiores a 1 bilhão de dólares por ano. A partir de 2010, esse valor esteve sistematicamente superior a 60 bilhões, colocando o país no período entre 2010 e 2018 entre os cinco maiores receptores de IED do mundo. Um fenômeno que deve ser entendido e analisado no contexto da dinâmica dos fluxos globais.

O que chamou muito a atenção, e surpreendeu os famosos analistas do mercado, foi a persistência desses fluxos mesmo diante dos problemas econômicos e das tais expectativas (negativas) durante o governo Dilma.

Já o crescimento durante o governo Temer refletiu sem dúvida o processo de desnacionalização estimulado por aquela administração, que deve ter continuidade na atual.

Confira o gráfico Investimentos Diretos Estrangeiros no Brasi, em US$ bilhões Fonte: BC

Não há, portanto, por que questionar especificamente os IED chineses para o Brasil. Também não é uma característica específica das empresas chinesas focar em aquisições. Esta modalidade é exatamente a dinâmica do crescimento dos investimentos produtivos mundialmente, e também no Brasil.

Por que o Brasil, por exemplo, teria de desconfiar da StateGrid e não da Enel, empresa italiana, com forte participação estatal, que comprou a Eletropaulo? Uma vez rejeitado o foco específico nos investimentos produtivos chineses, vale a pena aproveitar o debate para recolocar em discussão o processo de desnacionalização que está tomando conta do Brasil e problematizar a contribuição dos IED para o desenvolvimento do país analisando suas várias facetas. Uma discussão que se perdeu diante da ideologia da globalização neoliberal e pela ênfase por parte de setores mais críticos nos fluxos financeiros.

Há uma tradição longa no Brasil a ser retomada. Difícil encontrar a defesa de um fechamento para os IED, estratégia adotada em outros tempos por Japão e Coreia do Sul.

Celso Furtado, por exemplo, enfatizou o desafio de desenvolver políticas que integram o capital externo às aspirações de desenvolvimento nacional: “Devemos ter um estatuto legal que discipline a ação do capital estrangeiro, subordinando-o aos objetivos do desenvolvimento econômicos e da independência política.”

O autor considerava que não poder-se-ia relegar ao capital estrangeiro a prerrogativa do desenvolvimento nacional, uma vez que “os mercados internacionais tendem a ser controlados por grupos de empresas, cartelizados em graus diversos”. Uma reflexão que não perdeu sua atualidade.

O Brasil passou pela experiência de atração dos IED no âmbito do plano de metas quando a abertura para as montadoras internacionais veio acompanhada de políticas para garantir o surgimento de uma indústria de autopeças nacionais.

Depois da crise da dívida externa e do período da alta inflação, foi somente com o Plano Real que ressurgiu um interesse por parte das multinacionais, estimulado por políticas de privatizações e desregulamentações, além da própria âncora cambial que garantia o valor das remessas de lucros.

Nessa época, o Brasil estava de fato com pouco poder de barganha, precisando de qualquer forma de dólares para pagar a dívida externa. Havia um longo período de desconfiança a ser superado. Mas agora faz muitos anos que o país está entre as prioridades das multinacionais, não obstante a insistência de setores liberais em argumentar que é preciso sempre melhorar o tal ambiente de investimentos para atrair os IED.

De lá para cá, inclusive, o país se tornou credor em dólar, tendo reservas internacionais superiores à sua dívida externa. Há de se perguntar o motivo do interesse mesmo nesse período de baixo crescimento no período Dilma, que tanta desconfiança provocava no mercado e depois no governo Temer.

As multinacionais comparam potenciais destinos em uma perspectiva de mais longo prazo. Para entender esse fenômeno, deve-se levar em conta a abundante oferta de capitais para investimentos, de um lado, e de outro os recursos estratégicos, o tamanho do mercado do Brasil, além de outras vantagens competitivas. Isso significa que o Brasil tem uma margem de negociação não explorada.

Projeto nacional

É altamente questionável que fosse preciso mudar o marco regulatório do pré-sal e flexibilizar as exigências do conteúdo local para conseguir parcerias para a exploração das riquezas em questão, altamente atrativas por sua produtividade. Ou seja, havia um potencial para repensar o papel dos investimentos produtivos externos dentro de um projeto de desenvolvimento para o país.

Quais setores o Brasil quer desenvolver? Como? Que tipo de parcerias? Quais as contrapartidas que podem ser exploradas? As aquisições de ativos internacionais por multinacionais significam a transferência de centros de decisão para o exterior. Isso vale tanto para empresas chinesas quanto para as europeias ou estadunidenses.

Vale a pena aproveitar a falsa discussão sobre os investimentos chineses para retomar o debate sobre o papel das multinacionais para o desenvolvimento do Brasil. Inclusive porque as políticas ultraliberais propostas pela atual gestão devem intensificar o processo de desnacionalização com pouco preocupação em contribuir com um projeto de desenvolvimento nacional.