A Argentina na Agenda de Política Externa do Governo Bolsonaro

Por Larissa Rosevics [1], Gustavo Ortolan [2] e Milena Gonçalves [3]
Texto apresentado em workshop do OPEB

Introdução

Brasil e Argentina, os dois maiores países da América do Sul, estão historicamente conectados por diversos interesses econômicos, políticos e geopolíticos em comum. Seus posicionamentos pendem, desde o século XIX, entre a convergência e a divergência [4]. A tensão entre as duas potências sul-americanas chegou a níveis preocupantes no século XX durante os seus governos militares, em que o interesse pelo desenvolvimento de tecnologia nuclear levou os dois Estados a uma quase corrida armamentista.

O projeto de integração regional entre Brasil e Argentina, consolidado nos anos 1990 como a constituição do Mercosul, faz parte de um processo amplo de conciliação das relações políticas, econômicas e militares dos dois países. O processo de redemocratização em ambos os países, contribuiu para a retomada do diálogo em prol de maior transparência nos seus projetos estratégicos. Além disso, a falta de apoio dos Estados Unidos à Argentina, durante a Guerra das Malvinas (1982), gerou descrença entre os militares brasileiros e argentinos quanto a eficácia do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e a proteção estadunidense em caso de agressão externa à região.

No entanto, antes mesmo do início do mandato de Jair Bolsonaro, em outubro de 2018, o então futuro Ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou em entrevista para jornalistas que a Argentina e o Mercosul não seriam prioridades para o novo governo [5] e, mesmo após a posse, as ações concretas do presidente eleito, e de seus Ministros de Estado, corroboram com as afirmações de Guedes. O descaso com o Mercosul leva a crer que, para parte do grupo político que hoje ocupa o governo federal, a Argentina deixou de ser uma prioridade econômica e geopolítica regional.

Relações Brasil - Argentina

A proximidade e as boas relações entre as duas potências regionais se refletem nas frequentes visitas presidenciais. Desde 1980, os presidentes brasileiros foram a Buenos Aires mais de 20 vezes, com destaque as cerimônias de posse e visitas em início de mandato [6]. Como ato de reciprocidade e compreensão da importância conferida as relações com o Brasil, os presidentes argentinos compareceram as cerimônias de posse de Collor à Dilma.

Até a eleição de Bolsonaro, a visita a Argentina foi a primeira, dentre os países da América do Sul, a ser realizada pelos presidentes brasileiros eleitos em primeiro mandato. Todavia, ainda em 2018, concomitante as declarações de Paulo Guedes, o Deputado Onyx Lorenzoni, escolhido para Ministro da Casa Civil, afirmou que o Chile, e não a Argentina, seria o primeiro destino internacional de Bolsonaro na região [7]. Essa decisão corrobora com a aproximação ideológica com o Governo de direita de Sebastián Piñera no Chile, e com ao apreço que Paulo Guedes e sua equipe têm pelos modelos econômicos chilenos de liberalização da economia e previdenciário. Do lado argentino, o presidente Maurício Macri informou que estenderia suas férias em família em um vilarejo da Patagônia e, por esse motivo, não compareceria a cerimonia de posse de Jair Bolsonaro, no dia primeiro de janeiro [8], designando o Chanceler Jorge Faurie para representar o país.

A princípio parece um contrassenso que o Governo de Maurício Macri, crítico aos governos de esquerda de Nestor e Cristina Kirchner, pudesse ter desentendimentos com o Governo de Jair Bolsonaro. Ambos partilham da agenda liberal de ajustes fiscais e abertura econômica internacional e de visões ideológicas próximas em relação aos Estados Unidos. Enquanto parceiros comerciais estratégicos, a expectativa era de que houvesse coordenação entre ambos nos processos de mudança e flexibilização propostos para o Mercosul.

É importante destacar que Macri e Bolsonaro se encontram em momentos políticos e econômicos distintos. Jair Bolsonaro acaba de ser eleito com promessas de reformas econômicas liberalizantes e, apesar de suas declarações inadequadas e inércia política, ainda desfruta de certa popularidade. Já Maurício Macrí está em final de mandato, com um país em sérios problemas econômicos, praticamente nenhum resultado prático de suas promessas de campanha e uma reeleição ameaçada pela inflação crescente.

O anuncio da visita de Macri ao Brasil na segunda semana de janeiro gerou a expectativa de melhora nas relações entre os dois governos. O presidente argentino desembarcou em Brasília no dia 16 de janeiro com sua comitiva, participou de algumas solenidades e assinou com o Presidente Bolsonaro uma Declaração Conjunta [9], na qual destacam as áreas prioritárias para cooperação entre seus governos.

Dentre diversos temas abordados na Declaração Conjunta, e segundo o sentido de prioridade, destacam-se as áreas da segurança interna e segurança regional dos Estados, o combate ao crime organizado e à corrupção. Em relação a necessidade de “aperfeiçoamento dos instrumentos bilaterais de cooperação jurídica e de combate ao crime transnacional”, é anunciada a assinatura de novo Tratado de Extradição Bilateral.

Os temas presentes na Declaração Conjunta revelam proximidade com os interesses estadunidenses de combate ao crime organizado na região. Ainda em concordância com a posição norte-americana, o presidente Mauricio Macri, em pronunciamento feito no Planalto, declarou preocupação com a situação dos venezuelanos e avaliou Nicolas Maduro como “ditador” que se perpetua no poder com “eleições fictícias” [10].

De maneira geral, o que se percebe das relações entre Jair Bolsonaro e Maurício Macri neste início de governo é um alinhamento ideológico com pautas políticas e de segurança dos Estados Unidos, como a condenação do regime venezuelano, e similaridades no discurso econômico liberalizante. O processo de adesão à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é outro ponto em comum entre os dois governos, e possível motivo de disputa por espaço entre os dois Estados.

Para as relações comerciais, não há propostas concretas na Declaração Conjunta, apesar da importância que a área tem para a economia dos dois países. E em relação ao Mercosul, os presidentes reiteram o compromisso em rever a Tarifa Externa Comum (TEC), impulsionar negociações promissoras e avaliar novas negociações com outros parceiros. 

O trigo e as relações comerciais entre Brasil e Argentina

A visita do presidente Mauricio Macri ao Brasil parecia ter arrefecido as rusgas entre os dois governos. Contudo, o anúncio conjunto do Presidente Bolsonaro e do Presidente Trump em relação à cota de 750 mil toneladas de trigo sem a TEC de 10% do Mercosul, durante a visita do presidente brasileiro a Washington, em março de 2019, reacendeu a desconfiança das elites econômicas argentinas em relação ao governo Bolsonaro.

A Argentina é tradicionalmente a maior exportadora de trigo para o Brasil, tanto por questões de proximidade geográfica e relações já traçadas entre os atores privados, quanto por preferências obtida por meio do Mercosul. Em 2018, o Brasil importou 5,9 milhões de toneladas do trigo argentino, representando 80% das compras de trigo brasileiras. Segundo a relatório econômico da Bolsa de Cereales argentina [11], o trigo é um dos poucos produtos que compensam o déficit argentino dentro do Mercosul, que tem no Brasil seu principal parceiro econômico e do qual importa, em grande medida, produtos manufaturados, especialmente da área automobilística.

O acordo entre Trump e Bolsonaro teve reflexos diretos nas bolsas de valores da Argentina e dos Estados Unidos que negociam trigo. Na Bolsa de Comércio de Rosário, na Argentina, a tonelada do trigo caiu US$ 6, enquanto no Mercado de Chicago o trigo teve uma leve alta. [12]

A princípio, não há uma ameaça real a posição argentina de maior exportadora de trigo para o Brasil. Segundo o relatório econômico da Bolsa de Cereales, o acordo reforça a necessidade de maior competitividade por parte dos produtores argentinos de trigo, com o atenuante de que em 2019 é esperado um aumento na produção de trigo argentino.

O Brasil, inclusive, já utilizou cotas com tarifa zero para importação de trigo dos Estados Unidos, por meio da Lista de Exceções à TEC, uma normativa do Mercosul que permite que até 100 produtos possam ser importados pelos países do bloco sem a TEC. Nestas ocasiões, a oferta de trigo argentina havia sido afetada e, com o objetivo de evitar desabastecimento e aumento interno dos preços, o Brasil colocou o trigo na Lista de Exceções. A diferença entre as situações, segundo a Bolsa de Cereales, está no caráter temporário das medidas adotadas no passado, diferente da indicação da proposta atual assinada entre os governos de Brasil e Estados Unidos de tornar permanente a cota anunciada.

O fato é que ainda não está claro por qual meio a cota será aplicada. Para a Ministra da Agricultura do Brasil, Tereza Cristina, a cota de 750 mil toneladas com tarifa zero estaria ligada a um compromisso assumido pelo Brasil no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) durante a Rodada do Uruguai em 1994, o que a torna aberta para todos os países membros da OMC, inclusive a Argentina [13]. Contudo, no comunicado conjunto do presidente Jair Bolsonaro e Donald Trump, está explícita a intenção de privilegiar o trigo estadunidense [14].

A repercussão negativa do acordo do trigo entre Brasil e Estados Unidos na imprensa argentina reflete a incerteza sobre o papel que a Argentina ocupa na política externa do Governo Bolsonaro. O êxito da visita do Presidente Macri à Brasília, que teria amenizado as preocupações sobre a relação comercial entre os dois países, foi questionada, bem como as ações de seu Chanceler Jorge Faurie [15]

Conclusão

As declarações de um Presidente da República em visita oficial a outro país têm papel simbólico significativo para as relações exteriores, ainda que não apresentem resultados práticos imediatos. Tratando-se de um governo recém-eleito, do qual sabe-se pouco sobre suas prioridades e agenda política, como o Governo de Jair Bolsonaro, as declarações feitas no exterior ganham proporção ainda mais intensa, especialmente em relação aos parceiros regionais do Brasil.

A pouca importância conferida as relações do Brasil com a Argentina no início do mandato de Bolsonaro, ainda pode ser revertida. No início do mês de abril, o Chanceler Ernesto Araújo esteve em Buenos Aires para explicar o que ele considera como sendo a “nova política externa brasileira”. No dia 12 de abril, a vice-presidente da Argentina, Gabriela Michetti, esteve em visita oficial ao Brasil com o vice-Presidente brasileiro, Hamilton Mourão. Durante o encontro, os dois vice-Presidentes discutiram a possibilidade da criação de missões comerciais conjuntas para o Mercosul, para a promoção dos produtos agrícolas produzidos pelos países da região [16]. E o Itamaraty confirmou para 6 de junho a primeira visita do presidente Jair Bolsonaro à Argentina, um mês antes da cúpula do Mercosul, que ocorrerá no país vizinho [17].

Por parte da Argentina, a postura brasileira reforça os esforços do país vizinho em diversificar a sua pauta de comércio exterior, sendo a China e Estados Unidos os principais interessados tanto no agronegócio argentino, quanto no seu mercado interno de bens de consumo. Avanços nesse sentido podem acarretar perdas significativas de mercado para o Brasil.

Notas

[1] Professora visitante da UFABC e membro da OPEB

[2] Graduando em Relações Internacionais da UFABC e membro da OPEB

[3] Graduanda em Relações Internacionais da UFABC e membro da OPEB

[4] SARAIVA, Miriam Gomes. Encontros e Desencontros: o lugar da Argentina na política externa brasileira. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.

[5] CARMO, Marcia. Bolsonaro presidente: declarações de Paulo Guedes sobre Mercosul surpreendem membros do Bloco. BBC News, 30 out.2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46026331

[6] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. República Argentina. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/ficha-pais/4785-republica-argentina

[7] COLOMBO, Sylvia; CARNEIRO, Mariana. Bolsonaro planeja trocar Argentina por Chile e preocupa país vizinho. Folha de São Paulo, 29 out.2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/bolsonaro-planeja-trocar-argentina-por-chile-e-preocupa-pais-vizinho.shtml

[8] MOLINA R. Federico. El País. Mauricio Macri e Bolsonaro inauguram um relacionamento difícil no twitter. O Globo, 1, mar. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/mauricio-macri-bolsonaro-inauguram-um-relacionamento-dificil-no-twitter-23341888

[9] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, REPÚBLICA ARGENTINA. Declaração Conjunta emitida por ocasião da visita de trabalho ao Brasil do presidente da Nação Argentina, Maurício Macri – Brasília, 16 de janeiro de 2019. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/19965-declaracao-conjunta-emitida-por-ocasiao-a-visita-de-trabalho-ao-brasil-do-presidente-da-nacao-argentina-mauricio-macri-brasilia-16-de-janeiro-de-2019

[10] MAZUI, Guilherme. No Planalto, Macri diz que Maduro é “ditador” que quer se perpetuar no poder com “eleições fictícias”.G1-Mundo 16, jan.2019 Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/01/16/ao-lado-de-bolsonaro-macri-diz-que-maduro-quer-se-perpetuar-no-poder-com-eleicoes-ficticias.ghtml

[11] GERENCIA DE ESTUDIOS ECONÓMICOS. El trigo en el centro de la relación Argentina – Brasil: efectos de posible pérdida de preferencias. Bolsa de Cereales – Fundacion INAI.  Buenos Aires, 2019.  Disponível em: http://www.bolsadecereales.com/descargar-archivo-8647/archivos-06e0627d5fca6dc393414bfd122073dc

[12] LA POLÍTICA ONLINE. Se derrumbaron los precios del trigo por el acuerdo entre Trump e Bolsonaro .La Política Onlline, Buenos Aires, 23 de março de 2019. La Política Online. Disponível em: https://www.lapoliticaonline.com/nota/118337-se-derrumbaron-los-precios-del-trigo-por-el-acuerdo-entre-trump-y-bolsonaro/  Acesso em: 08 de abril de 2019

[13] LA POLÍTICA ONLINE. Los radicales culpam a Faurie por el desplante de Bolsonaro a Macri com el trigo. La Política Onlline, Buenos Aires, 23 de março de 2019. Disponível em: https://www.lapoliticaonline.com/nota/118281-los-radicales-culpan-a-faurie-por-el-desplante-de-bolsonaro-a-macri-con-el-trigo/ Acesso em: 08 de abril de 2019

[14] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASL. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Comunicado Conjunto do Presidente Jair Bolsonaro e do Presidente Donald J. Trump – 19 de março de 2019  Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/20186-comunicado-conjunto-do-presidente-donald-j-trump

[15] LA POLÍTICA ONLINE. Los radicales culpan a Faurie por el desplante de Bolsonaro a Macri com el trigo. La Política Online. 21 mar.2019. Disponível em: https://www.lapoliticaonline.com/nota/118281-los-radicales-culpan-a-faurie-por-el-desplante-de-bolsonaro-a-macri-con-el-trigo/

[16] EFE. Mourão analisa missões comerciais conjuntas do Mercosul com vice argentina. Agência EFE, 12 abr.2019. Disponível em: https://www.efe.com/efe/brasil/brasil/mour-o-analisa-miss-es-comerciais-conjuntas-do-mercosul-com-vice-argentina/50000239-3951801

[17] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. NOTAS À IMPRENSA. Visita do senhor presidente da República à Argentina – Buenos Aires, 6 de junho de 2019. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/20324-visita-do-senhor-presidente-da-republica-a-argentina-buenos-aires-6-de-junho-de-2019

Sobre a Coordenadora do Subgrupo

Larissa Rosevics

Coordenadora - Comércio Internacional

Professora Visitante na Universidade Federal do ABC. Doutora em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas sobre: política externa brasileira contemporânea; integração regional; economia política internacional; e segurança e defesa. É membro do Grupo de Pesquisa “Integração Sul: autonomia e desenvolvimento”, na linha de pesquisa: “Produção do Conhecimento, Ciência & Tecnologias."