Governo Bolsonaro e os EUA: O nacionalismo às avessas

Por Tatiana Berringer, Gabriel Carneiro, Gabriel Soprijo, Leonardo Martin de Souza e Larissa de Oliveira Barros [1]

Texto apresentado em workshop do OPEB

Introdução

A política externa do governo Bolsonaro tem sido marcada pelo discurso de mudança. A relação com os Estados Unidos ganhou um peso muito grande no discurso diplomático e da equipe do presidente, haja vista o discurso da vitória eleitoral, o artigo do Ministro das Relações Exteriores “Trump e o Ocidente” e a visita do Presidente aos Estados Unidos em março de 2019. A subordinação aos Estados Unidos incluiu uma agenda ampla de liberalização comercial, cessão de soberania, e um discurso anti-globalista (com saída brasileira do Pacto de Migrações e a mudança da política climática), além da tentativa de mudança da embaixada brasileira em Israel. Neste texto apresentaremos as principais pautas e ações das relações bilaterais nos primeiros 150 dias de governo Bolsonaro, tendo como foco o acordo da Base de Alcântara no Maranhão, a candidatura do Brasil para entrar na OCDE e o papel do Brasil no conflito EUA-Venezuela.  Na conclusão trataremos um pouco dos conflitos e desdobramentos de cada um dos pontos 3 meses após a visita do Presidente aos Estados Unidos. Defendemos que se trata de uma política de “nacionalismo às avessas” tendo em vista a contradição entre o discurso, as ideias e a prática política.

Relações Brasil EUA

Durante o processo de impeachment da presidenta Dilma a política externa acabou sendo alvo da oposição aos governos PT que a acusou de “ideologizante”, isolacionista e “bolivarianista”. Diante disso, a política externa sofreu fortes alterações no governo Temer, especialmente, na relação com a América do Sul e a criação do grupo de Lima para atuar face à crise da Venezuela, e com as negociações econômicas internacionais, em especial, o acordo Mercosul-UE e a candidatura do Brasil à OCDE. 

Do ponto de vista discursivo a mudança parece estar sendo ainda mais profunda no governo Bolsonaro, sinalizando um alinhamento com o governo Trump e com a extrema direita dos Estados Unidos. Isso pode ser visto na atuação de Steve Bennon nas campanhas eleitorais dos dois países, na mudança da atuação do Estado brasileiro no âmbito da ONU (ao votar em duas resoluções contra Palestina e em questões de direitos humanos convergentes com a posição dos Estados Unidos), na saída do Estado brasileiro do Pacto de Migrações, na não sediação das conferências climáticas e na tentativa de mudança da embaixada de Israel para Jerusalém.

É a primeira vez que a política externa é citada no discurso de posse do governo, e que as relações bilaterais atingem tamanha prioridade na agenda política da equipe governamental. No discurso da vitória eleitoral na sua casa o presidente disse:

“Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos. O Brasil deixará de estar apartado das nações mais desenvolvidas. Buscaremos relações bilaterais com países que possam agregar valor econômico e tecnológico aos produtos brasileiros. Recuperaremos o respeito internacional pelo nosso amado Brasil”.

A escolha do embaixador Ernesto Araújo para chefiar o Ministério das Relações Exteriores, cujas ideias sintetizadas no artigo  “Trump e o Ocidente” [2],  indicam se tratar de um alinhamento com o governo Trump e sua ideologia “ocidental” e “pan-nacionalista”, baseada em uma estratégia de caráter civilizacional, norteada por valores de defesa da família e de Deus em contraposição aos direitos sexuais e ao chamado “globalismo”  – conjunto de regimes internacionais de direitos humanos, migrações e meio ambiente – que supostamente, para essa extrema-direita, restringiriam a soberania dos Estados em nome da construção de uma sociedade civil internacional sob os auspícios da ONU.

Um dos principais pontos da mudança da política externa brasileira foi o apoio dado à invasão da Venezuela, descartando os princípios de não-intervenção, autodeterminação dos povos e a busca pela estabilidade regional. Além disso, o programa de governo se baseia em políticas de cunho neoliberal e de cessão de soberania, tais como o treinamento conjunto das forças militares na Amazônia, a venda da Embraer para a Boeing, a cessão da base de Alcântara no Maranhão, os leilões do Pré-sal, a candidatura do Brasil à OCDE, uma série de privatizações de empresas estatais, etc.

Em março de 2019, Jair Bolsonaro visitou os Estados Unidos, acompanhado de seu filho Eduardo e de seis ministros. O presidente se encontrou com Donald Trump e esteve na CIA. Houve também um encontro com Olavo de Carvalho, jornalista que se tornou o “guru” do governo Bolsonaro. A agenda política da visita resumiu-se em quatro grandes pontos: o combate à corrupção, a cessão da base de Alcântara do Maranhão, a candidatura brasileira na OCDE e a crise política na Venezuela, sendo que estas questões ainda estão na agenda das relações bilaterais. Abaixo relataremos cada um dos pontos tratados na viagem e nas considerações finais falaremos um pouco dos desdobramentos e contradições nos três meses após a visita. 

Visita de Bolsonaro à CIA - o combate à corrupção

No segundo dia de sua missão diplomática aos Estados Unidos da América, Bolsonaro fez uma visita fora de sua agenda oficial à Agência Central de Inteligência (CIA), algo inédito na história da diplomacia brasileira, em companhia do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e do seu filho, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro. Moro subscreveu um documento de cooperação entre Polícia Federal Brasileira e a Polícia Federal Americana. O filho do presidente foi o responsável por divulgar a informação via Twitter, classificando a CIA como umas “das agências de inteligência mais respeitadas do mundo”. Após a reunião, o presidente “desapareceu”, e a imprensa ficou duas horas sem saber o local em que ele estava.

O General Rêgo Barros, porta-voz de Jair Bolsonaro, concedeu uma entrevista ainda nos Estados Unidos, na qual afirmou que o chefe de Estado brasileiro se apresentou no intuito de confirmar o seu posicionamento em relação ao combate do crime organizado (leia-se: corrupção), além de querer estabelecer uma comunicação com a inteligência norte-americana, para que ocorra “uma integração na atividade de inteligência no âmbito da nossa América”. O General afirma que a decisão da visita aconteceu enquanto a delegação estava a caminho dos Estados Unidos, por isso não incluía na agenda oficial, sabe-se que ele foi recebido pela diretora, Gina Hespel. O “desaparecimento” do presidente foi justificado como uma “atividade privada”. E após Rêgo ser pressionado por uma jornalista que perguntava se ele poderia compartilhar mais algum detalhe ou se havia acordos previstos, o porta-voz ironiza a repórter, perguntando o que é CIA? e responde a própria pergunta. Afirma que a sigla significa Agência de Inteligência Americana, em tom de ironia fala que foi uma “visita de cortesia” e retoma as pautas que já havia comentado.

Brasil na OCDE

Durante a Conferência na Casa Branca, dentre vários elogios e agradecimentos que Jair Bolsonaro dirigiu ao presidente Trump, uma de suas falas que se destacaram foi: “o apoio americano ao ingresso do Brasil na OCDE será entendido como um gesto de reconhecimento, que marcará ainda mais a união que buscamos.” Porém, como se dará e quais seriam os prós e contras desse possível ingresso brasileiro no “Clube dos países ricos”?

Em primeiro lugar, é importante destacar que o apoio dos Estados Unidos à entrada do Brasil na OCDE se daria em troca da renúncia do país a tratamento especial e diferenciado na OMC. Tendo em vista que o Brasil já possui uma posição privilegiada em sua relação com a OCDE, como “key partner”, o que o país ganharia com a adesão plena a essa organização? Ou ainda, quais grupos de interesse iriam se beneficiar com essa adesão?

Como a própria OCDE aponta, o processo de acesso de um membro pleno, “não é mera formalidade, mas sim o resultado de uma rigorosa etapa de revisão das políticas públicas nacionais”. Na prática, as decisões da OCDE tem que ser acatadas por seus membros como atos vinculantes (binding acts). Os chamados “Códigos de Liberalização” são, na verdade, acordos de promoção e proteção de investimentos, isto é, defesa dos interesses do capital privado em detrimento da soberania e do desenvolvimento.

O Acordo de Alcântara

Na viagem também foi assinado o Acordo Sobre Salvaguardas Tecnológicas para uso da Base de Alcântara no Maranhão para lançamento de foguetes, que ainda deve ser aprovado pelo Congresso. No final do governo FHC, um acordo semelhante havia sido rejeitado pelo congresso e foi arquivado pelo Presidente Lula no início do seu mandato. De modo geral, o atual acordo consiste numa cópia quase idêntica do antigo somado a alguns novos pontos questionáveis.

Em primeiro lugar, destacam-se as restrições para o uso do recurso do suposto aluguel da base estimado em R$3,5 bilhões por ano [3]. O acordo impede que o governo brasileiro invista os recursos financeiros obtidos em programas nacionais de aquisição e desenvolvimento de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados [4]. Além disso, o Brasil fica restrito a um conjunto de apenas 35 países [5] para fechar novos acordos de uso de Alcântara, sendo a China, parceira histórica do Brasil no desenvolvimento de tecnologia aeroespacial, excluída.

O acordo ainda prevê o estabelecimento, por parte das partes contratantes, de “áreas restritas” dentro do centro de lançamento, que consistem em locais em que o acesso só será permitido a pessoas autorizadas pelos Estados Unidos. Em outras palavras, quem definirá quem entra e quem sai destas “áreas restritas” dentro do território brasileiro será os EUA.[6] Por fim, o acordo não prevê o uso militar da base, mas também não o restringe. Há uma cláusula de sigilo militar e pelo formato do acordo, a possibilidade de uso militar não é descartada.

Brasil, Estados Unidos e a Crise na Venezuela

Entre Janeiro e Fevereiro, o governo do presidente Jair Bolsonaro, demonstrando clara consonância com o governo Trump, declarou que Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, era ilegítimo, reconheceu o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como presidente interino, ofereceu sua fronteira para ingressar ajuda humanitária no país vizinho e recebeu o líder opositor em Brasília.

Durante a visita do presidente aos Estados Unidos, em março, este foi um tema central. Jair Bolsonaro disse a Trump que todas as opções estavam à mesa, dando a entender que havia disposição brasileira em apoiar uma intervenção militar na Venezuela. A declaração foi tão enfática que o presidente dos Estados Unidos disse que essa opção não seria necessária.

Considerações Finais

A relação do Brasil com os Estados Unidos tem gerado algumas divergências internas no governo e na sociedade brasileira. Infelizmente, o ponto que foi pouco debatido e contestado até agora foi a base de Alcântara do Maranhão, que ainda passará pelo Congresso. Apesar do acordo de Salvaguardas ferir frontalmente a soberania e restringir o desenvolvimento tecnológico do país, até mesmo o governador Flávio Dino (PC do B) pareceu aceitar a cessão territorial.

A adesão à OCDE, que oficialmente ganhou apoio dos Estados Unidos no dia 23 de maio no encontro do grupo, e ainda aguarda a posição dos demais Estados-membros, só foi questionada internamente por especialistas, militantes sindicais, lideranças de movimentos populares, e alguns diplomatas. Sem atingir a opinião pública e ganhar espaços no editoriais dos principais jornais. 

Três questões que geraram desavenças internas foram:  a crise da Venezuela, a visita à CIA e a relação com a China. 

A postura do Presidente e do Ministro das Relações Exteriores em relação à Venezuela configura um giro na política regional do Estado brasileiro, revertendo o caminho traçado com a criação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-americano que tinha como premissa a busca por autonomia regional. O cume deste giro foi a criação do Pró-sul, grupo de governos na América do Sul subordinados aos Estados Unidos, que apoia as sanções à Venezuela. Mas o vice-presidente e os militares resistem em apoiar a intervenção militar, provocações ou atividades de desestabilização no país vizinho, parecem ser mais cautelosos e seguidores do princípio de não-intervenção e do respeito às fronteiras estabelecidas entre o Brasil e os países vizinhos.

A visita à CIA gerou questionamentos de deputados do PSOL e do PT. E no começo de junho, o site The Intercept – Brasil, publicou três matérias que pontuam que o Ministro e ex- Juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, estava agindo de maneira parcial durante os julgamentos do processo, em conjunto com o Ministério Público. Segundo trechos revelados por Glenn Greenwald, as mensagens evidenciam a intenção de interferência do judiciário no cenário político eleitoral, que passou pela prisão do presidente Lula para impedir a sua candidatura e a proibição de ele conceder entrevista para Folha de São Paulo, buscando limitar a transferência de votos para Fernando Haddad (PT), candidato pelo PT para a presidência da República.

Uma das questões conflituosas está relacionada ao papel da China – se o alinhamento com os norte-americanos se desdobra em um afastamento da relação com os chineses. Neste sentido, apareceram contestações por parte do setor do agronegócio e do próprio vice-presidente Hamilton Mourão. Neste ponto, é preciso considerar o peso das exportações brasileiras para a China e sua importância na política internacional contemporânea. A balança comercial brasileira está bastante atrelada aos fluxos com a China desde 2008. Será que é possível desconsiderar este elemento? 

Ainda parece cedo para saber qual o impacto deste alinhamento e se ele vai se manter ao longo do governo. Como buscamos demonstrar existem muitas contradições no interior da sociedade brasileira para que esse giro se cristalize. Do ponto de vista discursivo, nos parece um alinhamento ideológico ao governo Trump, bastante centrado em uma proposta de ocidentalismo-cristão-conservador-xenófobo, mas de um  “nacionalismo às avessas”. A política macroeconômica brasileira, de neoliberalismo radicalizado, e a subordinação aos Estados Unidos, o Acordo de Salvaguardas e a cessão onerosa do Pré-sal, são o contrário do que se espera de um projeto nacional e de um governo com composição orgânica de militares.

Notas

[1] Integrantes do subgrupo Brasil – EUA do OPEB.

[2] Araújo, Eresto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente. IN: Cadernos de Política Exterior. Brasília: FUNAG, Ano III, nº6, 2º semestre de 2017.

[3] Estimativa apresentada pelo ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes. Disponível em: <https://bit.ly/2KyAstp>.

[4] No texto do acordo, isto é encontrado na menção à restrição de uso dos recursos para o desenvolvimento de sistemas da Categoria I do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR). De modo geral, a categoria I do MTCR consiste em foguetes e sistemas de veículos aéreos não tripulados capazes de levar cargas maiores de 500kg a um alcance de pelo menos 300km.

[5] Países signatários do MTCR.

[6] Além disso, o acordo também é estruturado de forma que o governo brasileiro não poderá inspecionar os equipamentos norte-americanos em nenhum momento, inclusive durante o transporte até a base, sendo estes transportados em containers lacrados e o acesso controlado pelo governo norte-americano.