China na política externa de Bolsonaro: pragmatismo econômico e esvaziamento político?

Por Ana Paula Teixeira, Bruna Belasques e Bruno Castro com colaboração de Ana Tereza Marra e Giorgio Romano

Por Ana Paula Teixeira, Bruna Belasques e Bruno Castro
com colaboração de Ana Tereza Marra e Giorgio Romano

Texto apresentado em workshop

Passados sete meses de governo Bolsonaro, ainda permanecem as contradições entre o pragmatismo versus ideologia nas relações Brasil-China, mas a balança continua pendendo para a defesa do pragmatismo econômico. Neste texto abordaremos as relações dos países, levando em consideração acontecimentos recentes, a partir de três eixos: o multilateral, a guerra comercial e a agenda bilateral.

O Brasil de Bolsonaro no multilateralismo: BRICS e no G-20

No final de junho, foi realizado o encontro da cúpula do G-20 em Osaka, no Japão. Naquilo que diz respeito à participação brasileira, cabe destacar: i) a reunião informal dos BRICS realizada por meio de seus presidentes ou primeiros-ministros; ii) o encontro de Bolsonaro com Trump, Macron e Merkel; iii) além de uma reunião que deveria ocorrer com Xi Jinping, mas que não ocorreu em função do atraso do presidente chinês, sendo que Bolsonaro tinha um voo logo em seguida.

Durante o encontro dos BRICS, os membros do bloco destacaram a importância do multilateralismo, da reforma da OMC, o combate ao terrorismo, reafirmaram a importância da energia limpa e se disseram comprometidos com o Acordo de Paris. Ademais, destacou-se o papel do Novo Banco de Desenvolvimento, “no financiamento de infraestrutura e no desenvolvimento sustentável e ressaltamos a necessidade de esforços intensificados e contínuos para a construção de um portfólio de projetos forte, equilibrado e de alta qualidade”. Sendo assim, o documento produzido nesta reunião informal dos BRICS seguiu a tradição de outros encontros prévios similares a este.

Um ponto que teve grande repercussão em alguns núcleos foi a reunião dos RIC (encontro entre Rússia, Índia e China). Muitos chegaram a dizer que isto seria decorrente do apequenamento brasileiro nas relações internacionais durante o governo Bolsonaro. É verdade que o presidente brasileiro e o Ministro das Relações Exteriores, ao não terem uma conduta propositiva nos BRICS e optarem por um alinhamento pró-ocidental (representado Europa e EUA), podem acabar colocando o Brasil de lado na proposição de agendas que fomentem uma reforma do sistema internacional atual. No entanto, é válido lembrar que em 2017, na Argentina, já tivemos uma reunião informal dos RIC também em âmbito do G-20. Em linhas gerais, estes encontros trilaterais parecem estar propondo a defesa do multilateralismo, o desejo em evitar conflitos na Eurásia, a proposição de cooperação entre os países e uma nítida oposição à política de Trump.

No que diz respeito ao Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), espera-se que até outubro deste ano seja aberto um escritório em São Paulo e uma representação em Brasília. Atualmente, o NBD já aprovou o financiamento de quatro projetos no Brasil. Além disso, foi realizada uma proposta pela prefeitura de Sorocaba (SP) que visa à promoção de infraestrutura urbana. Ainda não foi aprovado, o valor total previsto para a implementação do projeto é de US$ 50 milhões, sendo que 10 milhões seriam financiados pela prefeitura e os outros 40 milhões via NBD. A tabela abaixo mostra os projetos já aprovados e os valores dos aportes advindos do NBD e outras fontes.

Fonte: Novo Banco de Desenvolvimento. Sistematização própria.

Projetos ligados ao NBD

Projeto Região Descrição Implementação Aporte do NBD (US$) Valor Total do Projeto (US$) Outros atores envolvidos nos financiamentos
Infraestrutura sustentável na Petrobrás

Minas Gerais 

Rio de Janeiro

Busca reduzir a emissão de gases poluentes e poluição da água.
Estimativa de implementação entre 2016-2021
200 milhões
340 milhões

Petrobrás
140 milhões

Infraestrutura e logística
Maranhão
Bucará desenvolver infraestrutura que permita conectar o estado de norte a sul, contribuindo para o desenvolvimento sócio-econômico do estado.
Estimativa de implementação entre 2019-2022
71 milhões
190 mihões

CAF
77 milhões

Governo do Maranhão
42 milhões

Infraestrutura
Pará
Desenvolver saneamento básico, promover o acesso a internet e mobilidade urbana. Isto será realizado por meio da melhoria da gestão de resíduo, expansão da quantidade fibra ótica e pavimentação e drenagem de rodovias.
Estimativa de implementação entre 2018-2021
50 milhões
125 milhões

CAF
50 milhões

Governo do Pará
25 milhões

Aporte ao BNDES
Não se aplica
Serão financiados 5 subprojetos associados à energia sustentável/desenvolvimento sustentável
O BNDES será responsável pela escolha, avaliação e monitoramento dos subprojetos
300 milhões
Aproximadamente 600 milhões

BNDES
ao menos 300 milhões* 

* caso o valor dos projetos excedam montante inicial, o BNDES irá promover o restante do aporte
Fonte: Novo Banco de Desenvolvimento

Dessa forma, percebe-se que o NBD tem fornecido empréstimos especialmente a bancos nacionais de desenvolvimento ou diretamente ao próprio governo (seja para a união, estados ou municípios), há a expectativa de que em breve estes sejam fomentados ao setor privado. É válido destacar que o Brasil é o país dentre os BRICS que menos recebeu aportes do banco. Há expectativa por parte do empresariado acerca de um aumento nos financiamentos promovidos pelo NBD a partir da abertura do escritório em SP. A mobilização dos recursos dessa instituição financeira poderia ser fundamental para impulsionar a economia, sobretudo em um cenário doméstico marcado pela queda do PIB no primeiro trimestre. Contudo, será necessária uma grande capacidade de articulação tanto do poder público, quanto do privado, dado que os empréstimos são concebidos com base nos projetos que forem apresentados ao NBD. Como salientou o vice-presidente Mourão “nós não estamos usando o banco”, acrescentando que “Temos que usar esses recursos. O problema é ter projetos”.

Em tese, o Brasil teria uma vantagem em termos de visibilidade e responsabilidade, visto que em 2019 presidimos os BRICS e que em 2020 indicaremos o novo presidente do NBD. Este cenário torna-se, no entanto, nebuloso uma vez que não está claro qual seria o nível de articulação governamental em âmbito nacional para a obtenção de empréstimos. É fundamental apontar que a política fiscal contracionista do governo (isto é, aquela que busca reduzir o déficit fiscal) tem feito com que os investimentos do BNDES se reduzam. Temos uma contradição do governo federal: ora aponta-se que se deve fomentar investimento público via NBD, ora critica-se a atuação do banco de desenvolvimento público brasileiro.

Quando o assunto é a concessão de financiamentos visando à promoção de infraestrutura, torna-se necessário mencionar o Fundo Brasil-China de Capacidade Produtiva, que é de US$ 20 bilhões (10 vezes maior do que os projetos financiados pelo NBD no Brasil). Criado em 2015, durante o governo Dilma, o primeiro aporte deveria ter se realizado no final de 2018. No entanto, encontra-se paralisado, estima-se, pela retórica anti-China de Bolsonaro.

Naquilo que diz respeito fundamentalmente aos encontros dos BRICS, vale lembrar que este ano o Brasil sediará a XI Cúpula durante os dias 13 e 14 de novembro, em Brasília. O mote da reunião é “crescimento econômico para um futuro inovador”, tendo assim como objetivo fomentar a cooperação técnica, desenvolvimento tecnológico e inovação, tema que está no centro da guerra comercial entre EUA e China e que deverá testar a política externa brasileira quanto ao seu alinhamento com os EUA.

Repercussões da Guerra Comercial

A princípio, alguns comemoraram os benefícios que a guerra comercial entre EUA e China poderia trazer ao Brasil no curto prazo; a Confederação Nacional da Indústria (CNI), por exemplo, apontou que houve crescimento das exportações brasileiras sendo que a expansão se deu tanto com produtos já exportados – como a soja -, quanto na abertura de novos mercados – tabaco, carne bovina, algodão, sucos de laranja, caixas de marchas e suas partes para veículos e automotores e castanha do Pará.

Já com relação aos EUA, foi apontado que não houve ganhos expressivos decorrentes da guerra comercial, frustrando assim uma expectativa existente acerca da expansão de exportações brasileiras de manufaturados para a economia estadunidense. Em longo prazo espera-se que tal conflito possa prejudicar o crescimento do comércio e das economias mundiais, afetando a todos os países. Como o Brasil deveria se comportar diante dele?

Em abril deste ano, o presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP/CIESP), Paulo Skaf, afirmou ao chanceler Ernesto Araújo, durante evento realizado pela organização, que é fundamental o Brasil ter bom relacionamento com todos os países. Na ocasião não foram feitas menções diretas à guerra comercial, mas a fala de Skaf pode ser interpretada como um apelo à via pragmática da política externa.

O pragmatismo do Brasil perante a guerra comercial foi reforçado na visita do vice-presidente Mourão a China em maio, quando se encontrou com o presidente da Huawei. Mesmo diante das pressões dos EUA sobre seus aliados para barrarem a atuação da empresa, afirmou-se que ela é bem-vinda no Brasil e não terá suas atividades restringidas. Lembra-se que junto com a também chinesa ZTE, a Huawei foi essencial para a implementação das redes 3G e 4G no Brasil.

Como afirmado Mourão “Somos um país pouco integrado digitalmente”. Com relação a pressão dos EUA sobre o Brasil para limitar a atuação da Huawei acrescentou: “Não, não. Aqui não” […]. Lembra-se que em 2020 o Brasil pretende realizar leilão de frequências para operação da tecnologia 5G. A Huawei detém grande expectativa sobre esse leilão e pressiona para que ele não seja adiado.  A empresa já testou com sucesso a rede de alta velocidade com quatro operadoras de telefonia brasileiras e assinou com o Distrito Federal uma parceria para ter um espaço no Parque Tecnológico de Brasília (BioTIC) dedicado à demonstração da tecnologia de conexão 5G.

Destaca-se ainda que no relatório que o vice-presidente fez a Bolsonaro sobre sua visita à China, no que concerne à guerra comercial, o aconselhou que o “nosso posicionamento é de flexibilidade e pragmatismo. Porque, em uma guerra comercial dessa natureza, a gente tem que saber explorar as oportunidades”, sinalizando que o Brasil deve aproveitar as brechas para obter vantagens tanto com a China, como com os EUA.

A agenda bilateral

Em 6 de maio desse ano, a ministra Tereza Cristina e sua comitiva do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) embarcaram numa viagem de 16 dias à Ásia, tendo o Japão, o Vietnã, a Indonésia, e, principalmente, a China em seu itinerário. Durante sua estadia neste último país, a agenda da ministra oscilou entre encontros com empresários, reuniões com membros do governo e visitas a centros de pesquisa.

Tereza Cristina angariou promessas de investidores para projetos em setores como ferrovias, biotecnologia, suinocultura e infraestrutura, sendo que parte delas foram ativamente demandadas pelos investidores, principalmente no âmbito de licitações. Os chineses revelaram interesse em obras ferroviárias, como a Ferrogrão, a Fiol e a Norte-Sul.

Teve sucesso, também, em encaminhar a China uma lista (embora num número inferior ao desejado) com novos frigoríficos, principalmente de carne suína, a serem avaliados em futuras visitas dos técnicos chineses, para exportar para a China. Firmou parcerias de cooperação científica voltadas à pesquisas de veterinária entre a Universidade de São Paulo e universidades chinesas. Em adendo, obteve do governo chinês, para o segundo semestre deste ano, um representante fiscal, que deverá ser alocado na embaixada da China no Brasil, para auxiliar o setor agropecuário brasileiro nas questões sanitárias necessárias para a exportação. Por fim, a ministra também conseguiu a liberação da exportação de gordura comestível de suínos, que foi, inclusive comemorada por Jair Bolsonaro em seu twitter.

Ainda em maio, a despeito do aceno de Ernesto Araújo ao candidato da Geórgia – apoiado por Trump – a presidência da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a ministra Tereza Cristina oficializou o apoio do Brasil ao candidato chinês e se dispôs a ajudar a China conquistar mais votos na América Latina. O candidato chinês foi eleito com 108 votos para o cargo. Dos outros candidatos, a francesa Catherine Geslain-Laneelle recebeu 71 votes, e o candidato da Geórgia apenas 12 votos. Qu Dongyu, que é vice-ministro de agricultura e assuntos rurais da China, sucederá o brasileiro José Graziano Da Silva, que havia sido eleito em 2011 com forte apoio chinês.

O mês de junho, por sua vez, acarretou algumas notícias ruins para o agronegócio brasileiro. A suspensão automática da exportação de bovinos entre 3 e 13 de junho devido a detecção a partir do Programa Nacional de Prevenção e Vigilância da EEB (PNEEB) de um animal com caso atípico de EEB (Espongiforme Bovina) no Mato Grosso, doença popularmente conhecida como “vaca louca” impactou as exportações de bovinos em junho para a China. No que se refere à soja, também houve uma retração das vendas na comparação com o 1º semestre do ano passado associada à gripe suína, que está matando os porcos na China. A menor demanda chinesa por soja, ocasionada pela crise, é preocupante, pois o país é responsável pela aquisição de quase 75% de toda a exportação de soja brasileira. Como resultado, o superávit com a China na balança comercial que em 2018 foi de US$15,09 bilhões no primeiro semestre de 2018, caiu para US$12,38 bilhões em 2019.

País/BlocoExportações (U$S Milhões)Participação nas ExportaçõesImportações(U$S Milhões)Participação nas ImportaçõesSaldo (U$S Milhões)
China30.354,927,6%17.97421,5%12.380,9
Estados Unidos14.705,8813,4%13.786,7316,5%919,15
Argentina5.156,14,69%5.305,26,33%-149,1
União Europeia17.259,8115,9%15.637,1418,67%1.822,67
Mercosul7.626,256,94%6.469,917,72%1.156,34

Dados relativos a Jan-Jun de 2019
Fonte: Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços

No que se refere a investimentos, de acordo com o Boletim de Investimentos Estrangeiros Diretos do Ministério da Economia entre 2003 e 2019, os investimentos chineses no Brasil representam somente 13% dos projetos totais, mas compreendem 37% de todo o volume investido no Brasil, chegando a US$ 71.293,13 milhões. No ano de 2019, por enquanto a China desponta como a segunda maior investidora do Brasil, e seus investimentos se centralizam no setor energético mais especificamente na área de geração e transmissão como mostra a compra de três usinas de energia renovável no Nordeste pela CGN Energy, maior operadora de energia nuclear da China, por US$ 785 milhões. Há uma expectativa de que ocorra uma retomada dos investimentos chineses no país, que foram de U$S 11,3 bilhões em 2017 para U$S 2,8 bilhões em 2018. Nessa retomada dos investimentos chineses, espera-se que o programa governamental de privatizações e concessões, a retomada da economia e uma contínua relação pragmática com Pequim tenham papel importante.

Foi com o objetivo de explicitar à China a sua importância estratégica para o Brasil que Mourão visitou-a no fim de maio. Além de reafirmar a posição de neutralidade do Brasil perante a guerra comercial, almejava-se retomar as reuniões da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN). Os encontros dessa entidade foram concebidos para serem coordenados pelos vices-presidentes do Brasil e da China, porém, com a instabilidade política no Brasil, principalmente a partir do golpe de 2016 e a ausência da figura de vice-presidente brasileiro, esses encontros estavam suspensos.  Mourão anunciou que aspira não apenas retomar as reuniões, mas também torná-las “não meros fóruns de debate”.

Enquanto esteve na China por cinco dias, o vice-presidente desenvolveu uma lista intensa de atividades. Esteve na bolsa de Xangai, na Academia Chinesa de Tecnologia Espacial, no Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, em reuniões com os membros da COSBAN e eventos com membros do governo chinês. Durante esse itinerário, o vice-presidente discursou em favor do aumento do valor agregado da diversificação das exportações brasileiras; dos investimentos chineses no país; enfatizou a promessa da implementação de uma agenda liberal na economia, com a continuidade das privatizações; a facilitação do processo de ingresso de sucursais de empresas estrangeiras; e, por pressão chinesa, admitiu uma possível integração do Brasil na Belt and Road Initiative (BRI). Ainda na visita, em uma demonstração da importância atribuída pela China ao Brasil, Mourão foi recebido pelo presidente chinês, Xi Jinping.

Considerações finais 

Apesar de o Brasil ter reduzido neste primeiro semestre o superávit com a China, tal fato não parece estar relacionado à política que o país vem adotando. A retórica anti-China da cúpula do MRE não se repercutiu concretamente nas relações comerciais entre os dois países, as possíveis tensões nesse âmbito foram amenizadas a partir das viagens de maio de Hamilton Mourão e Tereza Cristina. Contudo, ainda não está claro o porquê de ser mantido o adiamento dos financiamentos do Fundo Brasil-China de Capacidade Produtiva, que possui muito mais recursos e amplitude de atuação (em termos de setores a serem financiados) do que o NBD.

No âmbito político houve uma continuidade naquilo que concerne às proposições realizadas pela reunião informal dos BRICS, durante o G-20. Isto, no entanto, não significa que a cúpula do governo brasileiro tenha neutralizado suas discordâncias políticas em relação aos países que integram os BRICS como, a exemplo disso, a posição distinta do Brasil frente à China e à Índia no que tange à reforma da OMC – aqui, vê-se o alinhamento brasileiro às pautas defendidas pelos EUA; ou a questão da Venezuela com Rússia e China. Sendo assim, os BRICS não deixam de ser um elemento importante para a PEB, mas tampouco é prioritário. Dá-se continuidade e aprofunda-se o esvaziamento do conteúdo político do agrupamento que se tornou evidente já no governo Temer, assim, há uma tendência em reduzir os BRICS a um fórum de relações econômicas. Após 7 meses da política externa do Ernesto Araújo, a China, que até 2015 aparecia então como uma possibilidade de alavancagem da posição do Brasil na política internacional, tende – e em função da pressão das frações pragmáticas do governo – a ser reduzida a um mero parceiro econômico.