Por Bruna Belasques, Bruno Castro, Gabriel Carneiro, Rafael Abrão, Vitor Hugo dos Santos e Ana Tereza Marra
A agressividade diante da China promovida por membros do governo federal não encontra eco entre governadores e prefeitos. Num quadro de expansão do novo coronavírus, estados e municípios têm estreitado suas relações com o país asiático, em especial na área de saúde
A cooperação entre entidades subnacionais brasileiras (Estados e municípios) com a China tem sido um fenômeno notável, que pode, contudo, ser explicado não somente como resultado da intensificação das relações bilaterais, mas também como um produto das incertezas nas relações sino-brasileiras no governo Bolsonaro. Dois são os fatores para entendermos as crescentes relações subnacionais Brasil-China na conjuntura recente: a retórica anti-China de parte do governo federal e a pandemia de Covid-19.
No que se refere ao primeiro fator, a retórica agressiva direcionada à China por agentes de alto escalão do governo, em conjunto com o mau encaminhamento das relações bilaterais pelo chanceler Ernesto Araújo, têm feito com que a gestão das interações Brasil-China seja na prática transferida do Itamaraty para outros atores com visão mais pragmática, entre os quais se destacam a as unidades subnacionais, de forma individual ou reunidas por meio de consórcios. Durante 2019, governadores ou vice-governadores de São Paulo, Paraíba, Bahia, Paraná, Alagoas e Distrito Federal foram à China. Ainda, o Consórcio Nordeste realizou uma visita em comitiva ao país, visando estreitar as relações econômicas, e o Estado de São Paulo inaugurou um escritório comercial da InvestSP em Xangai visando abrir frentes de negócio.
Na contramão das hostilidades
Em tempos de pandemia, em um contexto em que Bolsonaro tenta culpar as entidades subnacionais por problemas econômicos e sociais gerados pelo isolamento, e em que Ministério da Saúde não teve capacidade para coordenar ações de combate ao Covid-19, vários estados e municípios recorrem a China, intensificando-se mais as relações subnacionais. Na contramão da hostilidade do governo federal, prefeitos, deputados, governadores e consórcios regionais têm firmado parcerias subnacionais, como foi o caso do Consórcio Nordeste e do Consórcio da Amazônia Legal, que enviaram cartas ao embaixador da China solicitando colaboração no enfrentamento da Covid-19.
A aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), respiradores e serviços necessários para devida manutenção desses aparelhos médicos configura-se como um dos principais meios pelos quais têm se manifestado as relações entre a China e as entidades subnacionais. Os Estados de São Paulo e do Pará, por exemplo, compraram, respectivamente, 1000 e 400 respiradores, enquanto Minas Gerais além da aquisição, buscou serviços técnicos para o conserto de alguns dos seus equipamentos. Contudo, as doações chinesas de materiais têm dado o tom da cooperação. A lista é vasta e envolve iniciativas de províncias, empresas e, inclusive, comunidades sino-brasileiras. Outro contorno que as parcerias têm adquirido é o compartilhamento de know-how chinês em relação à pandemia, que tem sido direcionado aos entes subnacionais e também ao Ministério da Saúde, a despeito dos atritos diplomáticos com o governo federal.
Parcerias paulistas
Em termos absolutos, São Paulo concentra a maior parte das iniciativas de cooperação, com destaque para a parceria entre o Instituto Butantã e o laboratório Sinovac Biotech, cuja iniciativa visa a realização da Fase 3 do ensaio clínico da vacina intitulada “CoronaVac”. O valor estimado para a realização do estudo é de cerca de R$ 85 milhões, que serão desembolsados pelo instituto brasileiro. Cerca de 9 mil voluntários, oriundos de todo o Brasil, deverão ser testados nessa fase.
Caso a eficácia da vacina seja comprovada, o Instituto Butantã produzirá doses em larga escala e estas serão distribuídas gratuitamente via Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo entrevista do presidente do Instituto, Dimas Covas, apesar do acordo inicial prever a produção da vacina, ainda é necessária a assinatura de termos aditivos, que serão firmados de acordo com o sucesso dos estudos e de seu desenvolvimento.
A Sinovac é um laboratório privado chinês focado em pesquisa, desenvolvimento, produção e comercialização de vacinas. A empresa, com sede em Pequim, foi fundada em 2001 e é responsável pela produção e comercialização de diversas vacinas na China. Foi o primeiro laboratório do mundo a produzir a imunização contra o H1N1 em 2009, e, atualmente, está construindo uma nova planta para fabricar aproximadamente 100 mil doses de vacinas contra o Covid-19 por ano. O acordo com o Instituto Butantã prevê que parte da produção da Sinovac possa ser enviada ao Brasil, o que garante a abertura do mercado nacional à empresa chinesa.
Deve-se ressaltar, apesar das relações subnacionais de São Paulo com a China, que o interesse em testar a CoronaVac no Brasil pouco tem a ver com as relações diplomáticas. A escolha está muito mais associada ao fato de o país ter se tornado o epicentro da pandemia. Como virologistas e infectologistas vêm chamando a atenção, não é permitido que uma pessoa seja exposta ao risco de se contaminar somente para testar a eficácia de uma vacina.
Desse modo, como no Brasil a exposição ao vírus tem se tornado cada vez mais provável, criou-se um precedente para que os testes em larga escala sejam realizados aqui. Os detalhes do processo de escolha dos voluntários e a data exata do início dos testes ainda não foram divulgados, sendo a estimativa oficial de que se iniciem em julho. Assim, o Brasil saiu do “fim da fila” da vacina, embora o governo federal não tenha participado de nenhuma grande iniciativa de cooperação em saúde visando tal objetivo.
Por fim, cabe destacar que a ala dos seguidores mais fiéis e fanáticos a Bolsonaro se posicionou nas redes sociais de maneira contrária à parceria. Eles, novamente, incorporaram a retórica de que o vírus teria sido produzido no país asiático – sendo que um estudo publicado na renomada revista científica Lancet já comprovou que isso não é verdade. Além disso, levantam teorias de que o governador de São Paulo e o governo chinês estariam conspirando contra o presidente. Entre as declarações que criticam a vacina, destacam-se os tweets de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, e de Roberto Jefferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e aliado de Jair Bolsonaro.