O neopentecostalismo chega à política externa brasileira

Por Flávio Francisco, Maryanna Sagio Alves e Kethelyn Santos

Após forte expansão em Angola, Igreja Universal do Reino de Deus enfrenta denúncias de racismo, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e desrespeito a costumes locais. A religião ganha agora o apoio do governo brasileiro, o que pode transformar a disputa em uma questão político-religiosa multifacetada, capaz interferir nas relações Brasil-Angola

O recuo do Brasil em sua agenda estratégica para a África teve consequências não somente para a operação de empresas brasileiras, mas também para outros atores que desfrutaram do contexto de projeção do país sobre o continente. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por exemplo, que se instalara em Angola no início da década de 1990, impulsionou os seus negócios no país na década seguinte, acompanhando a agenda da política externa brasileira.

A instituição religiosa, em seu processo de internacionalização do proselitismo, expandiu o número de fiéis em um momento de reorganização política da sociedade angolana após anos de conflitos civis. A crise mundial que teve impacto negativo para brasileiros e angolanos obrigou a IURD a reconsiderar os seus investimentos no país e, como observa Mathias Alencastro, dar início à sua própria política de austeridade, revelando os problemas internos sempre presentes na relação entre os bispos brasileiros e angolanos.

 

Religião e colonização

A atual crise da revolta dos bispos e pastores contra a IURD pode ser melhor entendida por meio do contexto que levou ao expansionismo do neopentecostalismo em Angola, resultando nas mais de 230 igrejas da IURD existentes hoje no país e que garante para a instituição uma de suas dez maiores arrecadações. Relembrando ainda a partilha da África em 1880, é importante ressaltar que a Angola, assim como o continente africano, teve a religião como um dos meios fundamentais para a colonização do seu território, na premissa de que o ato missionário, partindo da raça branca “superior”, salvaria o continente. Assim, deve-se compreender que, ainda na época do reino do Kongo, com a presença missionária de europeus no século XVI e depois, com a colonização portuguesa e introdução do cristianismo, a religião foi a principal instância de organização política e social.

No início, as práticas cristãs eram reservadas ao poder real para que fosse possível reorganizar o reino em torno dessa religião. Apenas mais tarde, práticas como o batismo se tornaram comuns à população, o que desencadeou uma mistura de costumes africanos e cristãos, especialmente naqueles colonizados por portugueses, como a Angola.

Dessa forma, é possível compreender a aproximação do povo angolano com as religiões cristãs, o que facilitou a expansão pentecostal e seu segmento, o neopentecostalismo, principalmente a partir de 1990.

A IURD, fundada no Rio de Janeiro em 1977 pelo bispo Edir Macedo, é atualmente uma das principais representantes desta última vertente que se pauta pela Teologia da Prosperidade; ou seja, prega que os cristãos devem buscar a felicidade e realização de seus empreendimentos, enquanto lutam contra o Diabo e seus seguidores ainda na Terra. Para isso, a IURD se baseia na estratégia de oferecer serviços mágicos religiosos, de cunho terapêutico e taumatúrgico, prometendo realizações materiais e pessoais. Tais promessas atraem e convertem principalmente, populações mais vulneráveis, de lugares mais pobres e carentes. Partindo desses fundamentos, estudiosos chamam a atenção para o protagonismo brasileiro no que se refere à reconfiguração global do sagrado, muito devido à expansão do neopentecostalismo, justamente pela pregação simbólica e pragmática de um evangelho que foca em prosperidade, saúde e riqueza.

 

Ações sociais e irregularidades

Com inúmeras ações sociais empreendidas pela IURD em Angola, que vão desde coleta de sangue à construção de centros profissionalizantes, a igreja neopentecostal cativa hoje 2,7% de sua população. Contudo, também se vê no centro de debates polêmicos, como o evento por ela organizado em 31 de dezembro de 2012, num estádio esportivo, que prometia entregar o fim dos problemas vividos pelos cristãos.

Devido à falta de estrutura e segurança no local do evento, seis adultos e quatro crianças faleceram encurralados pela multidão. Além disso, a igreja é alvo de críticas quanto ao desrespeito em relação aos costumes africanos, com a imposição da vasectomia aos pastores, por exemplo, e por atitudes racistas e preconceituosas que partem geralmente dos líderes para com os fiéis africanos.

Os conflitos internos da IURD são de longa data, mas se acentuaram e trouxeram à tona as diversas contradições da instituição a partir de um manifesto pastoral assinado por bispos e pastores angolanos em novembro de 2019, demandando que a administração da instituição passasse a ser angolana.

Além das acusações de racismo descrita pela reserva de postos mais baixos da hierarquia aos africanos, foram ressaltados a evasão de divisas através do envio ilegal do dinheiro arrecadado para o Brasil, a lavagem de dinheiro por meio de transações de imóveis, bem como irregularidades no pagamento de segurança social aos pastores e a proibição de que estes visitassem seus familiares.

O conflito ganhou um novo capítulo quando os pastores reformistas tomaram cerca de 40% dos templos espalhados pelo país e declararam que as catedrais estariam sob controle angolano para reaver as injustiças e desvios cometidos pelos brasileiros. Por outro lado, a ala brasileira encabeçada pelo bispo Honorilton Gonçalves identifica os angolanos reformistas como rebeldes e os acusa de xenofobia, desvios de condutas morais e atos criminosos, acrescentando que estes teriam expulsado os membros brasileiros de suas residências e os agredidos. Logo, segundo a ala brasileira, a manifestação dos pastores angolanos é motivada por questões individuais e financeiras que nada tem a ver com o “ganho de almas”.

Intervenção de autoridades

Em meio a essa disputa, vê-se uma mudança de postura das autoridades em relação à IURD, e também às outras instituições do segmento neopentecostal, como consequência da crescente preocupação acerca da mudança de configuração da sociedade angolana que essas instituições protagonizam. Isso foi expresso pela abertura de um inquérito no fim do ano passado pelas Procuradoria-Geral da República visando apurar a situação da IURD no país africano. Além disso, com a cisão recente, o governo angolano abriu uma investigação para apurar a denúncia feita por ambas as partes envolvidas e chegaram a fazer buscas nos templos e nas casas de membros brasileiros para procurar alguma prova material que corroborasse as denúncias feitas.

Da perspectiva do Estado angolano, a relação com as instituições religiosas, dentre elas a IURD, foi sempre complicada. As lideranças da Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) sempre olharam com desconfiança para a popularização de movimentos religiosos.

O governo Jair Bolsonaro, que conta com bastante apoio de Edir Macedo, foi pressionado a intervir. Bolsonaro enviou uma carta ao presidente de Angola João Manoel Lourenço, expressando sua preocupação com os episódios recentes e pedindo uma maior proteção aos membros brasileiros da igreja, sob a justificativa da reciprocidade de tratamento a qual os cidadãos de ambos os países usufruem noutro território.

Após a aprovação na Comissão de Relações Exteriores do pedido de envio de parlamentares brasileiros à Angola para apurar o impasse, uma comissão de deputados e senadores poderá visitar o país no próximo mês para garantir a proteção dos membros brasileiros da Universal.

Dessa forma, o que se delineava como uma disputa interna de uma instituição de cunho religioso com certo potencial  de promover transformações no âmbito nacional de Angola, poderá se escalar e vir a se tornar uma questão política, religiosa, multifacetada e capaz de promover transformações nas relações Brasil-Angola com a interferência do governo brasileiro, dependendo de como os próximos eventos irão se delinear.

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