Por Gustavo Ortolán, Isadora de Lara Stipler e Mikael Servilha
Após 20 anos de negociações, concluídas há um ano, o tratado precisa ser ratificado por parlamentos nacionais. Agora começam a surgir resistências e críticas, dirigidas essencialmente ao Brasil
As primeiras discussões sobre o Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia se iniciaram em 1999, mas somente no final de junho de 2019 foi anunciada a conclusão das negociações.[1] Naquele momento, Jair Bolsonaro e Mauricio Macri eram os maiores entusiastas sul-americanos do acordo e almejavam um desfecho positivo e rápido.[2] Contudo, com a derrota do argentino na eleição presidencial, que elegeu a chapa formada por Alberto Fernández e Cristina Kirchner, agora crescem as incertezas sobre seu futuro. A possibilidade de aproximação entre Brasil e Argentina, sustentada na identidade ideológica e liberalização comercial entre os vizinhos, perdeu força.
Resistências europeias
No interior da União Europeia aparecem também posições políticas de resistência. Bélgica, França e Holanda, por exemplo, em diferentes medidas já expressaram contrariedade à ratificação do acordo em razão dos problemas decorrentes da política ambiental do governo Bolsonaro e outras questões sensíveis negociadas. O cenário de recessão global intensificado pela pandemia da Covid-19 e as questões sobre as ambiguidades dos termos no âmbito socioeconômico corroboram para o prolongamento das discussões em torno do eixo comercial do acordo. Trata-se de uma parte de um Acordo de Associação, que ainda poderá incluir componentes de política e cooperação mais abrangentes[3].
Uma vez finalizada a revisão jurídica, o texto final será traduzido em todos os idiomas dos Estados-membros europeus para, então, se iniciarem os procedimentos internos de encaminhamento para aprovação no Conselho e no Parlamento Europeu, além da aprovação nos congressos nacionais para as partes políticas do acordo.[4] No plano sul-americano, caberá a cada parlamento nacional a sua ratificação ou não e, uma vez ratificado pela UE, poderá entrar em vigor para os sócios do Mercosul individualmente, à medida que cada um concluir seu processo de ratificação. [5]
Se ratificado por todas as partes envolvidas, além de representar um passo significativo de aproximação com o mercado comum sul-americano, o acordo possibilitará aos europeus um aumento nas exportações em setores como o automotivo, o agroalimentar e de produtos químicos. Entre outras áreas da economia, permitirá a abertura bilateral do mercado de compras governamentais de bens e serviços, expondo as empresas sul-americanas à concorrência europeia em licitações públicas. As negociações entre os blocos mostram-se, também, vantajosas para a União Europeia no comércio internacional de serviços. Segundo dados da Eurostat, em 2018 as exportações de serviços do bloco europeu para o Mercosul somaram € 23,8 bilhões, resultando em um saldo positivo de aproximadamente € 12,1 bilhões para a União Europeia.
Ratificação incerta
Como referido, no entanto, a ratificação pode esbarrar em posturas de resistência intrabloco, com o francês Emmanuel Macron figurando como o principal chefe de governo opositor ao acordo no contexto atual. Recentemente, na ocasião da derrota do seu partido para os “verdes” nas eleições municipais em cidades-chave, Macron declarou que não assinaria nenhum pacto com países que desrespeitem o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, em referência ao Brasil. Na mesma linha, o parlamento holandês aprovou uma moção e o Parlamento da Valônia, na Bélgica, uma resolução contra a ratificação do documento. Sob a administração Bolsonaro, o Brasil registou no último mês de junho, segundo o INPE, 2.248 focos de queimadas na Amazônia.[6]
Outra líder política capaz de influenciar as próximas etapas do processo é a chanceler alemã Angela Merkel, que assumiu a presidência semestral do Conselho em 1º. de julho de 2020 e desempenhará um relevante papel na definição da agenda europeia, a qual nos próximos meses deverá no focar no estímulo da economia do bloco para frear o impacto da pandemia, protelando as discussões sobre o acordo com o Mercosul.[7]
O principal objetivo do acordo pelo lado sul-americano seria a facilitação das exportações agrícolas ao mercado europeu por meio da desgravação tarifária e das cotas preferenciais no setor. Esse sempre foi um tema de difícil negociação em virtude do protecionismo e dos subsídios oferecidos aos produtores locais por meio da Política Agrícola Comum (PAC), com um grande debate em torno da possibilidade de sucesso em romper com estas barreiras nos números finais do acordo[8].
Cautela argentina
A convergência momentânea de agendas entre os dois maiores países do Mercosul durante os governos de Bolsonaro e Macri, fundamental para a conclusão do acordo, se transformou drasticamente com a eleição de Alberto Fernández na Argentina. O país agora demonstra uma postura claramente mais cautelosa diante do acordo, ainda que recentemente tenha afirmado que não pretende rever o mesmo e deixará para o Congresso a sua aprovação ou não[9]. Ainda há uma evidente preocupação quanto aos efeitos da abertura comercial aos produtos europeu sobre a indústria doméstica.
O objetivo diplomático evidente por parte do governo brasileiro com a assinatura do acordo está alinhado à busca do estreitamento de relações com os países desenvolvidos e à representação simbólica do seu alinhamento às chamadas democracias liberais ocidentais. A mudança de foco na integração reage às críticas direcionadas por Bolsonaro ao que seria uma excessiva ideologização do Mercosul ao longo dos governos de Lula e Dilma, que deveria ser substituída por um uso mais pragmático e comercialmente centrado do bloco[10].
Ainda que Bolsonaro se orgulhe da assinatura do tratado que esteve em negociação pelos últimos 20 anos e que o aponte como um resultado concreto e positivo de seu governo, as posições anticientíficas e o negacionismo climático podem colocá o acordo em xeque no longo processo de ratificação que se apresenta.
[1] BRASIL,Texto do acordo Mercosul – União Europeia. MRE, nota 180, 12 de julho de 2019. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/20626-texto-do-acordo-mercosul-uniao-europeia. Acesso em 20/07/2020.
[2]Acordo Mercosul-UE foi para ajudar Macri na eleição argentina, analisa Celso Amorim. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/21/acordo-mercosul-ue-foi-para-ajudar-macri-na-eleicao-argentina-analisa-celso-amorim. Acesso em 20/07/2020.
[3] NONNENBERG, M. J. B; RIBEIRO, F. J. Análise preliminar do acordo Mercosul- -União Europeia. Carta de Conjuntura, IPEA, n. 44, p.1-14, 2019.
[4] EUROPEAN COMMISSION. Overview of FTA and other trade negotiations. May, 2020. Disponível em: http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/december/tradoc_118238.pdf. Acesso em 22/07/2020.
[5] Resumo Acordo Mercosul. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/images/2019/2019_07_03_-_Resumo_Acordo_Mercosul_UE.pdf. Acesso em: 22/07/2020
[6] Mercosur leaders look to close EU deal despite Macron’s resistance. Disponível em: https://www.bilaterals.org/?mercosur-leaders-look-to-close-eu&lang=en. Acesso em 20/07/2020.
[7] União Europeia define um salto histórico em seu modelo orçamentário para frear a crise da covid-19. Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2020-07-21/ue-define-um-salto-historico-em-seu-modelo-orcamentario-para-frear-a-crise-da-covid-19.html?rel=listapoyo
[8] Acordo EU/Mercosul tem impacto limitado no comércio agrícola. Disponível em: https://exame.com/economia/acordo-ue-mercosul-tem-impacto-limitado-no-comercio-agricola/. Acesso em 22/07/2020
[9] ‘Brasil protege sua economia e deixa a pandemia se expandir’, afirma chanceler argentino. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/07/17/argentina-protege-a-saude-em-1-lugar-brasil-protege-a-economia-e-deixa-a-pandemia-se-expandir-compara-chanceler-argentino.htm
[10] Da crítica à comemoração: como Bolsonaro suavizou o discurso em relação ao Mercosul. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48806512. Acesso em 22/07/2020