Por Flávio Francisco, Kethelyn Santos e Maryanna Sagio Alves
O movimento não somente expôs as dinâmicas do racismo contemporâneo nos Estados Unidos, mas também serviu de eixo organizador de outras pautas que estavam sendo articuladas pela esquerda com a participação de lideranças negras em vários países
No dia 25 de maio, em uma abordagem policial, George Floyd foi assassinado pelo policial Derek Chauvin, que se ajoelhou sobre seu pescoço para contê-lo. O vídeo com o procedimento inadequado dos policiais viralizou, provocando uma profunda indignação que logo se transformaria em uma onda de protestos pelos Estados Unidos. As ruas das principais cidades do país foram ocupadas por jovens e grupos organizados que denunciaram o caráter sistemático da violência das forças policiais. A liderança das manifestações contou com um papel importante do Black Lives Matters, uma articulação de ativistas negros que, desde 2013, questionava as operações policiais nas comunidades afro-americanas, que em várias ocasiões teve como consequência a morte de homens e mulheres negros.
O Black Lives Matter, que havia demonstrado a sua capacidade de organização com os protestos na cidade de Ferguson, no estado de Missouri, em 2014, mobilizava protestos continuamente. No entanto, o assassinato de Floyd deu uma outra repercussão ao debate racial. A pandemia, à medida que atingia cada vez mais cidadãos estadunidenses, revelava as desigualdades sociais e as dificuldades das autoridades de organizar recursos e protocolos para conter a propagação do vírus. O caso Floyd detonou um represamento de demandas traduzidas em agendas econômicas e sociais articuladas pelos movimentos sociais.
Eixo organizador
Ao tomar a frentes dos protestos contra a abordagem da polícia, o Black Lives Matter não somente expôs as dinâmicas do racismo contemporâneo nos Estados Unidos, mas também serviu de eixo organizador de outras pautas que estavam sendo articuladas pela esquerda com a participação de lideranças negras, como o aumento do valor do salário mínimo para 15 dólares a hora. Parte dos jovens brancos que aderiram às manifestações, e que apoiaram os políticos de esquerda no Partido Democrata, reforçaram a conexão entre racismo, Estado de Bem-estar Social e meio ambiente.
O movimento, de maneira pragmática, popularizou o debate sobre o financiamento das forças policiais e o papel dos operadores da justiça no funcionamento do racismo, mas também colaborou para o questionamento da ideia de prosperidade estadunidense organizada pelas narrativas do Sonho Americano. Nesse sentido, o Black Lives Matter não restringiu a pulsão das ruas somente aos interesses dos afro-americanos, mas também promoveu o debate sobre as desigualdades sociais utilizando o racismo estrutural como porta de entrada. Ao apontar as conexões das experiências afro-americanas com outros processos de construção de assimetrias sociais, abriu-se um espaço para que outros sujeitos políticos pudessem associar outras questões ao eixo das relações raciais. A amplitude sistemática e histórica da perspectiva do BLM estimulou o engajamento de brancos e também de ativistas e organizações políticas situadas em outros contextos nacionais. A emergência de manifestações em países como o Reino Unido, a França, África do Sul e Brasil, mais do que meras importações de pautas estadunidenses, foram manifestações efusivas de demandas reprimidas.
Protestos na Europa
Embora as políticas segregacionistas como as do Jim Crow nos Estados Unidos não tenham se reproduzido em solo europeu, o racismo não é menos frequente nem menos intenso no continente. A memória de George Floyd acendeu um debate a respeito do racismo na Europa e jovens de todo continente, bem como ativistas e movimentos da sociedade civil, foram para as ruas para defender o fim da violência policial contra as minorias, sobretudo os negros. No caso da França, os jovens voltaram a ocupar politicamente os espaços públicos, retomando questões debatidas em levantes nos subúrbios franceses em 2005, quando dois jovens de origem árabe morreram eletrocutados em uma estação de energia enquanto fugiam da polícia. No Reino Unido as manifestações também foram comparadas a eventos historicamente recentes como no bairro de Tottenham, em 2011, em Londres, que se alastraram para outras cidades num período de cinco dias.
Nas cidades britânicas, milhares de pessoas foram às ruas para se juntar aos levantes antirracistas, denunciando também as forças policiais e o racismo entre os britânicos. Uma das principais manifestações correram na cidade de Bristol, onde os insurgentes derrubaram uma estátua do traficante de escravos do século XVII, Edward Colston, e a afundaram nas águas do porto, gerando um amplo debate sobre os monumentos em homenagem a figuras históricas ligadas ao tráfico negreiro e à colonização britânica na Ásia e na África, expondo ainda mais a polarização da política britânica em tempos pós-Brexit.
Muitos parlamentares representantes da ala conservadora condenaram a ação dos manifestantes de Bristol, defendendo a manifestação pacífica como a melhor forma de defender a vida dos negros e demandar justiça social de forma democrática. O primeiro-ministro Boris Johnson descreveu a remoção da estátua de Colston como um “ato criminoso”. Embora tenha afirmado não ter dúvidas quanto à existência de discriminação e racismo, ele discorda que o Reino Unido seja um país racista. Em sua declaração, o primeiro ministro afirmou: “não vou apoiar nem tolerar aqueles que infringem a lei, atacam a polícia, ou depredam monumentos públicos.”
Por outro lado, representantes da ala progressista, sobretudo do Partido Trabalhista, saíram em defesa dos manifestantes. A parlamentar Zarah Sultana propôs que “em vez de erguer estátuas glorificando racistas e assassinos traficantes de escravos em nossos centros urbanos, vamos ensinar a brutalidade do colonialismo britânico em nossas escolas”. Já David Lammy, parlamentar trabalhista, comparou os manifestantes a Martin Luther King, acrescentando: “Tenho certeza de que os jovens que derrubaram aquela estátua sabiam que estariam enfrentando a lei. Mas esse era um preço que eles estavam dispostos a pagar.”
Morte em Paris
Na França, tomados pelas ondas de protestos estadunidenses, cerca de 20 mil manifestantes antirracismo se reuniram no centro de Paris para protestar não só pela memória de George Floyd, mas também por Adama Traoré, um jovem de 24 anos que foi preso pela polícia após fugir de uma abordagem no subúrbio de Paris por não portar documento de identidade. Ele morreu em uma delegacia de polícia horas depois. A causa de sua morte foi ferozmente contestada e várias investigações produziram resultados conflitantes. Sua memória se tornou um manifesto contra a violência policial na França, que atingem tanto pessoas negras quanto outras minorias étnicas.
As manifestações levaram o ex-ministro do Interior, Christophe Castaner, a anunciar que haveria “tolerância zero” ao racismo na aplicação da lei e a proibir o método de estrangulamento – onde a pressão é aplicada ao pescoço de um suspeito. No entanto, tempo depois o governo francês voltou atrás na decisão, devido à pressão dos sindicatos da polícia. Dessa forma, o estrangulamento não seria mais ensinado durante a formação de policiais, mas a medida ainda poderia ser usada com “cautela” durante as abordagens enquanto não há uma melhor alternativa.
A polícia francesa afirma não ter dados sobre todas as mortes sob custódia policial. Eles informam que 19 pessoas morreram no ano passado durante intervenções, mas esses dados não são contemplados por um recorte étnico racial, pois é ilegal coletar tais informações na França, bem como em outros países da Europa. A razão por trás disso é que o debate acerca de questões raciais é visto com muito ceticismo na França, já que se entende que a identidade que deve prevalecer sobre os demais recortes é a francesa. Portanto, tanto o levantamento de dados quanto discussões ou políticas que destacam um determinado grupo – com base na etnia, por exemplo – são consideradas como práticas anômalas à tradição republicana. Apesar disso, muitas das minorias étnicas e ativistas afirmam que este ideal de “igualdade” ao redor da identidade nacional contribui para a permanência do racismo, já que é impossível enfrentá-lo sem ao menos quantifica-lo para compreensão de sua natureza estrutural.
As singularidades dos protestos africanos
Embora pouco tenha sido mostrado, os protestos chegaram à África e em especial à África do Sul, por ser um país que, historicamente, constituiu uma hierarquia racial e violenta através do Apartheid. Contudo, segundo segundo Moky Makura, diretora executivo da Africa no Filter (ONG que busca dar voz aos africanos para mudar a narrativas que prejudicam o continente), o movimento atingiu também, outros países africanos que não partilharam da mesma experiência sul-africana, mas que reuniram pessoas, principalmente jovens adultos como tem sido ao redor do mundo, para apoiar o movimento. Indo além de Johanesburgo, na África do Sul, houve protestos que se destacaram em Nairobi, no Quénia, e em Lagos, na Nigéria, contra a violência policial. Neles, milhares de cidadãos empunharam cartazes com slogans como “Stop Killer Cops” (“Parem os agentes assassinos”) ou “I Can’t Breathe” (“Não consigo respirar”).
Para a diretora, a estrutura colonial que se instalou na maioria dos países do continente, causando séculos de subjugação e dominação estrangeira predominantemente branca, levou os africanos a aderirem à causa em solidariedade aos afrodescendentes americanos e europeus. Contudo, apesar da reverberação das manifestações no continente, o doutor congolês em Relações Internacionais Mbuyi Kabunda, explica o porquê delas não terem tido a mesma força que no norte global. Para ele, embora os países africanos vejam as manifestações positivamente, um misto de repressão governamental, de desinformação geral e de preocupação com problemas cotidianos ligados à própria sobrevivência faz com que a militância africana não ecoe com a mesma força o ruído que movimentos como o BLM provocam. Ele pontua ainda que, um dos principais episódios do movimento BLM, que foi a derrubada de estátuas ligadas ao passado colonialista e escravagista dos EUA e da Europa, não se repete hoje na África por já ter acontecido no passado, principalmente na época das lutas pela independência.
É importante ressaltar que a solidariedade africana às manifestações BLM deu-se também pelo fato da polícia africana não ser, no geral, bem recebida pela população. Annette Weber, pesquisadora na fundação alemã de ciência e política (Stiftung Wissenschaft und Politik) afirma que “as maiores vítimas da violência policial nos países africanos são os pobres e também pessoas pertencentes à minorias étnicas […]”.
Violência policial
Na África do Sul, por exemplo, Gareth Newham, especialista do Instituto de Estudos de Segurança (ISS) em questões de violência policial, explica que a brutalidade da polícia com relação à população não se dá pela diferença racial, uma vez que os policiais são em sua maioria negros, mas sim pela distinção de classe social. Em época de pandemia, inclusive, a violência das ações policiais tem sido ainda mais clara a julgar pelo modo com que as políticas de restrições demandadas para conter a Covid-19 têm sido implantadas. O Quênia, por exemplo, é um dos países que já sofria, conforme apontam diversos relatos, de abuso policial. Só em 2019, a Polícia Independente – instituição com atributos de corregedoria – registrou 3 mil incidentes de abuso da polícia sobre a população. Atualmente, com as restrições da pandemia, ativistas de direitos humanos no país já relataram vinte e duas mortes por violência policial. Foram também os ativistas que, na África do Sul, no início de junho, denunciaram pelo menos dez mortes pela polícia enquanto esta impunha as restrições da Covid-19.
Assim como nos demais países, as lideranças e organizações políticas africanas, que se insurgiram contra as desigualdades sociais na esteira das manifestações dos Estados Unidos, perceberam no debate internacional sobre os levantes a oportunidade para denunciar a violência policial que reproduz o legado no colonialismo no continente. Na África do Sul, os protestos, apesar do protocolo rigoroso das autoridades para conter o Covid-19, apontaram para limites da democracia multirracial arquitetada pelo governo de Nelson Mandela. A supremacia branca sul-africana foi desconstruída com desmantelamento do regime do Apartheid, mas as dinâmicas raciais e de classe continuam orientadas pelo privilégio branco que se reconfigurou no processo de democratização das instituições políticas do país.
Nesse sentido, as expressões de ultraje com as práticas de racismo através de cartazes e dos brados de manifestantes não foram os únicos elementos em comum nos levantes que ocorreram nos Estados Unidos, na Europa e na África, mas outro aspecto importante foi a capacidade dos protestos organizarem narrativas e imagens que desvelam as dinâmicas dos racismos contemporâneos.
Racismo pós-segregação
Uma das grandes conquistas do Black Lives Matter foi a de difundir, para além dos círculos acadêmicos e ativistas, o argumento de que existe um racismo pós-segregação que se constituiu no momento em que setores da sociedade estadunidense passaram a acreditar na formação de uma ordem pós-racial, anunciada com a eleição de Barack Obama. A militância do BLM enfatizou o papel dos operadores da justiça e o fenômeno do encarceramento em massa, além de, ao lado das organizações antifas, apontar para o flerte do presidente Donald Trump com supremacistas brancos.
Na França e no Reino Unido, o xenorracismo organiza o legado do colonialismo e a racialização das comunidades de imigrantes. O Brexit, entre os britânicos, não promoveu somente o debate econômico, mas também acionou, através de fakenews, o ressentimento racista das classes populares, transformando o referendo numa decisão entre uma nação branca e outra multicultural. Após a confirmação da decisão da saída do Reino Unido da União Europeia, uma onda de violência racial, não tão explorada na imprensa, revelou-se em algumas cidades, com inúmeros casos de abusos sobre mulheres muçulmanas registrados pela polícia. Entre discursos de integridade nacional de britânicos e franceses, as dimensões multiculturais das duas sociedades são desafiadas pelas extremas-direitas.
Efeito BLM no Brasil
No Brasil, ainda que as manifestações não tenham tido a mesma escala das britânicas, o debate sobre a questão racial ganhou bastante espaço na imprensa. Os temas que orientaram as discussões foram basicamente o significado do antirracismo e o caráter estrutural do racismo brasileiro. O antirracismo entrou na ordem do dia com o questionamento dos jornalistas dos canais de notícias sobre a grande presença de jovens brancos nos protestos. Os especialistas em relações étnico-raciais, convocados para analisar as situações do Brasil e dos Estados Unidos, pontuaram as nuances do racismo brasileiro e o repertório específico das organizações do movimento negro brasileiro, demonstrando que não havia um atraso do ativismo negro em relação ao estadunidenses mas uma trajetória política distinta construída em uma sociedade com legado escravocrata, instituições e ideologias singulares.
O tema do antirracismo também estimulou o debate sobre o papel dos brancos na luta contra o racismo e as práticas necessárias para construção dos sujeitos antirracistas, sendo eles negros ou brancos.
Racismo estrutural
A repercussão dos acontecimentos nos Estados Unidos também possibilitou a discussão sobre o racismo estrutural no Brasil. Embora o termo não tenha sido aplicado por intelectuais negros que foram percursores no campo das relações raciais, a noção de raça como elemento estruturante das relações sociais e das instituições esteve presente nos escritos de figuras como Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos. Dados sobre a saúde, a educação e a violência organizados em torno de categorias raciais têm sido divulgados em uma frequência maior, mas ideia de racismo estrutural enquanto um conjunto de práticas racistas reproduzidas pelas instituições, as relações sociais, os códigos culturais e as dinâmicas econômicas não estava consolidada na esfera pública. Os intelectuais negros e antirracistas que tomaram parte no debate assumiram a responsabilidade de montar o quebra-cabeça do racismo brasileiro. No processo de articulação dos elementos do racismo estrutural realizados em artigos e entrevistas, surgiam paralelamente as notícias de mortes de crianças e jovens assassinados em operações policiais em favelas e comunidades pobres, que revelavam a dramaticidade da questão.
O espaço que o tema do racismo ganhou na imprensa brasileira não se refletiu nas ruas, já que os protestos estavam limitados pela pandemia de Covid-19. Contudo, as poucas manifestações articuladas nas grandes cidades levaram para as ruas a luta contra o racismo e as práticas autoritárias no país. De modo geral, o debate pautado pelos ativistas e intelectuais negros no Brasil esteve alinhado às demais manifestações contra o racismo que revelaram também o mal estar com os limites das democracias liberais, que se demonstraram incapazes de contemplar as demandas sociais. Ao longo da década de 2010, explosões populares e protestos como a Primavera Árabe, o Ocuppy Wall Street, os protestos de 2013 no Brasil, assim como a revolta dos coletes amarelos na França, evidenciaram a insatisfação das classes populares com as instituições democráticas. Dessa vez, o fenômeno Black Lives Matter desencadeou uma onda de protestos que trouxe questões como os racismos sistêmicos (conexão entre racismos e dinâmicas do capitalismo) e os legados coloniais, em um momento em que o Brasil se transforma internacionalmente em referência negativa de desrespeito aos direitos humanos e desmantelamento de políticas públicas.