Por Ingrid Meirelles, João Victor Pennachio, Talita de Paula Duarte e Thauany Nazarethe Cirino
A subserviência da política externa aos interesses estadunidenses não é novidade no governo Bolsonaro. No entanto, nos últimos meses, observa-se uma radicalização no abandono de princípios fundamentais e constitucionais das relações internacionais do país. Esse processo representa o afastamento de mais de um século de uma diplomacia autônoma e independente, transformando mais uma vez a diplomacia brasileira em “coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo”.
O republicano Donald Trump foi eleito, em 2016, o 45º presidente dos Estados Unidos. Ao longo da campanha, construiu uma plataforma eleitoral com ataques xenófobos direcionados aos imigrantes latinos – grupo que, naquele ano, representava cerca de 14,7 milhões de eleitores. Em meio a promessas duvidosas, Trump se comprometeu a construir um muro entre os Estados Unidos e o México. Após a vitória, o novo presidente parece ter sido confrontado com a realidade: a América Latina é uma importante esfera de influência e a China avança cada vez mais sobre a região.
Trump cortou parte da ajuda humanitária à América Central, mas assegurou o alinhamento dos governos latinoamericanos a Washington. É feito notável, especialmente se considerarmos a fidelidade incondicional do presidente Jair Bolsonaro, o cerceamento à Venezuela e o desmonte do governo progressista de Evo Morales, na Bolívia. Ao que tudo indica, o aprofundamento desses laços e delimitação de diferenças é fundamental para a reeleição de Trump.
A visita do Secretário de Estado Americano
Em setembro último, Mike Pompeo, secretário de Estado de Trump, viajou à América Latina em meio à campanha reeitoral de seu país. Passando por Suriname, Guiana, Colômbia e Brasil, Pompeo teve como pauta principal o governo de Nicolás Maduro. A viagem reforçou a política externa de Washington de aberta oposição a Caracas e tem considerável importância para o resultado das eleições de 3 de novembro. A vitória de um candidato à presidência nos Estados Unidos precisa de 270 votos no Colégio Eleitoral, dos quais 29 (10%) são da Flórida, um eleitorado expressivo e composto principalmente por latinos, dentre eles cubanos anticastristas e venezuelanos que fugiram do regime chavista. Sendo assim, a estratégia de campanha de Trump na região tem sido afirmar sua influência e reforçar sua meta de derrubar Maduro.
Mike Pompeo fez uma curtíssima escala de pouco mais de três horas em Boa Vista (RR), dia 18 de setembro, onde foi recebido pelo chanceler Ernesto Araújo. Em sua visita ao posto de triagem da Operação Acolhida, tentou ressaltar a devastação econômica causada pelo chavismo na Venezuela e a colaboração dos Estados Unidos com repasses realizados pela Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) à Operação, criada em 2018 para receber os refugiados. No entanto, as fronteiras estão fechadas desde março devido à pandemia do coronavírus.
Araújo e Pompeo reiteraram apoio a Juan Guaidó, que vem perdendo relevância na Venezuela, e não devem reconhecer as eleições legislativas no país caribenho, marcadas para dezembro. Contrariando princípios diplomáticos brasileiros, Araújo negou a possibilidade de mediar uma negociação entre Maduro e opositores, referindo-se ao governo chavista como “narco regime”.
O último ato de radicalização da política externa brasileira durante a corrida eleitoral estadunidense foi o descredenciamento dos diplomatas da embaixada venezuelana em Brasília, logo após o encontro de Araújo e Pompeo e exatas duas semanas após a declaração dos representantes da Venezuela como personas non gratas. Com isso, perdem o status diplomático e direitos correspondentes.
O périplo do Secretário gerou reações negativas no sistema político brasileiro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, publicou dura nota, assinalando que a visita teria afrontado “as tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa”. Uma carta de chanceleres de vários governos – Fernando Henrique Cardoso, Francisco Rezek, Celso Lafer, Celso Amorim, José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, além do embaixador Rubens Ricupero – condenou “a utilização espúria do solo nacional por um país estrangeiro como plataforma de provocação e hostilidade a uma nação vizinha” e apoiou a manifestação de Maia”.
A visita de Pompeo contraria as bases constitucionais que norteiam a política externa brasileira, como o princípio de autodeterminação dos povos, não-intervenção e solução pacífica dos conflitos, revelando os fortes impactos da corrida pelos votos do eleitorado latino sobre a política externa brasileira na região.
A retórica do alinhamento automático
Em seu discurso na abertura da Assembléia Geral da ONU, no dia 22 de setembro, Bolsonaro reafirmou seu alinhamento à potência. Em meio a falas polêmicas, o atual presidente do Brasil pouco se referiu à América Latina e quando o fez, falou sobre a Venezuela e sobre a “ordem democrática” na região, revelando o distanciamento do atual governo em relação aos vizinhos e às pautas regionais concernentes a integração, assim como o alinhamento às pautas prioritárias da política externa estadunidense.
Contrariando os princípios de solução pacífica de controvérsias e não intervenção, Bolsonaro culpou a Venezuela pelo derramamento de óleo no litoral nordestino que ocorreu em setembro de 2019. As investigações, contudo, ainda não conseguiram identificar culpados mas sim suspeitos, dentre os quais um navio grego.
O presidente se referiu à Venezuela como uma ditadura e disse que trabalha “pela preservação e promoção da ordem democrática” na América Latina. Vale lembrar que o atual governo apoia fortemente o Grupo de Lima e se empenhou no estabelecimento do Foro para o Progresso da América do Sul (PROSUL). O primeiro grupo reúne chanceleres de alguns países do continente americano (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru) para abordarem a situação da Venezuela. Já o segundo bloco tem um caráter em tese integracionista, com um escopo focado na cooperação entre países de direita da América do Sul, na intenção de substituir a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL).
Dois dias depois, Ernesto Araújo seguiu o mesmo roteiro, ao prestar esclarecimentos à Comissão de Relações Exteriores do Senado. Seu depoimento foi surpreendente para um ministro de um país soberano. Entre outras coisas, ele afirmou:
“Hoje o parceiro que mais pode nos ajudar a cumprir a Constituição, a independência, os direitos humanos e outros objetivos são os EUA. Não tenho vergonha nenhuma de que seja um parceiro tão importante, eles podem nos ajudar a transformar o Brasil do jeito que queremos fazer, numa real democracia e economia de mercado, respeitados no planeta”.
A surpreendente sucessão no BID
O alinhamento automático do Brasil aos EUA se mostrou ainda mais claro com a recente escolha do novo presidente do BID.
Fundado em 1959, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) é uma das principais fontes de financiamento para o desenvolvimento na América Latina e Caribe, e visa promover a integração comercial em toda região. Administra um volume anual de empréstimos de cerca de 12 bilhões de dólares e tem os Estados Unidos como seu maior acionista, detendo 30% do poder de voto na organização.
Como forma de contrabalancear o peso econômico dos EUA, a presidência do BID fora chefiada por latinoamericanos ao longo de toda sua história. Mas tal tradição rompeu-se com a vitória de Mauricio Claver-Carone, que tornou-se o primeiro dirigente estadunidense do organismo.
Pela tradição, o Brasil ou a Argentina teriam as maiores chances de nomearem o presidente do Banco. Contudo, em um ato de claro alinhamento, o Brasil abriu mão de fazer sua própria indicação e foi um dos primeiros países a apoiar o norte-americano, que também teve os votos da Colômbia, Bolívia e Paraguai. Em contrapartida, o governo argentino solicitou – sem sucesso – o adiamento da escolha no BID para depois das eleições americanas e criticou a convergência regional em favor de Washington.
O alinhamento brasileiro enfatiza a supremacia e a liderança – ‘’America First’’ – , marcada por discurso orientado pela construção de assimetrias e hierarquias. Isso implica que a vitória de Mauricio Claver-Carone representa a perda de um importante espaço de liderança regional e balanceamento dos poderes no Banco Interamericano de Desenvolvimento.
A ruína do interesse nacional
O comércio exterior brasileiro também tem sido afetado diretamente pelos interesses de Trump em agradar seu eleitorado. Em 2018, com o objetivo de preservar a indústria siderúrgica americana, os Estados Unidos anunciaram novas restrições às importações de aço e alumínio de diversos países, fixando uma taxa de 25% e 10% ao aço e alumínio importados pelo país, respectivamente. Neste ano, Trump anunciou que serão reduzidas as cotas de importação de aço semi-acabado do Brasil a partir de agosto deste ano, dificultando a entrada do produto no país que é o segundo maior exportador de aço para os Estados Unidos.
A despeito disso, em setembro de 2020, o Brasil renovou para até o final deste ano a isenção de tarifa vigente desde o ano anterior sobre a cota de etanol estadunidense, contrariando os interesses dos produtores brasileiros. O país expandiu em mais de 187 milhões de litros a quantidade de etanol americano que poderia entrar em território brasileiro sem pagar imposto de importação. A expectativa, segundo o chanceler Ernesto Araújo, é a de que o país consiga uma melhor posição para negociações acerca do aumento de acesso ao mercado de etanol e açúcar brasileiro nos EUA.
Ambas as concessões também ocorreram a menos de três meses das eleições presidenciais estadunidenses e visam justamente fortalecer a campanha eleitoral de Trump, que busca capitalizar os votos do chamado “rust belt’’ – cinturão da ferrugem – nos quais concentram-se os estados baseados na indústria siderúrgica americana e do ‘’corn belt’’ – o cinturão do milho – cujos estados tem como principal atividade econômica a produção de milho, matéria prima do etanol realizado pelos norte-americanos. Ambos os setores viabilizaram a vitória eleitoral de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016.
A subserviência da política externa aos interesses estadunidenses não é novidade no governo Bolsonaro. No entanto, nos últimos meses, observa-se uma radicalização no abandono de princípios fundamentais e constitucionais das relações internacionais do país. Esse processo representa o afastamento de mais de um século de uma diplomacia autônoma e independente, transformando mais uma vez a diplomacia brasileira em “coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo”.