Por Nicole Lima, Rafael Sales, Gustavo Almeida e Gilberto Maringoni
A eleição de Luís Arce, na Bolívia, e a realização do plebiscito sobre a constituinte no Chile representam inegáveis vitórias de setores democráticos e progressistas diante de forças de direita autoritárias e neoliberais. Nos últimos dois anos, a centroesquerda ganhou nas eleições presidenciais do México e a Argentina. Tais eventos seriam suficientes para se afirmar que a onda conservadora enfrenta uma crise no continente?
Dois eventos ocorridos na América do Sul, no intervalo de uma semana, mostram que o avanço conservador na região pode não ter fôlego longo. São eles a realização e o resultado do plebiscito sobre uma nova Constituição no Chile, em 25 de outubro, e a vitória de Luís Arce, do Movimento ao Socialismo (MAS), na Bolívia, no dia 18 do mesmo mês. Se adotarmos um período de tempo mais longo, é possível colocar nessa convergência a eleição do peronista Alberto Fernández, na Argentina há um ano, e a vitória de Andrés Manuel López Obrador, em julho de 2018, no México.
É cedo para se afirmar a existência de uma nova onda de centroesquerda no continente, semelhante àquela observada entre 1998 – eleição de Hugo Chávez na Venezuela – e 2016 – golpe contra Dilma Rousseff no Brasil. No entanto, a seta política nesses quatro episódios aponta uma clara reprovação popular às políticas neoliberais e à violência estatal.
Se não se pode ainda verificar a existência de um movimento mais profundo na região, é possível examinar as marcas de cada dinâmica nacional. Vamos a elas.
Pá de cal na ditadura
No último dia 25, o povo chileno celebrou uma vitória histórica com participação recorde em plebiscito que decidiu pela convocação de uma nova Constituição para o país, já que a vigente foi herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). A consulta popular, caracterizada pela maior participação eleitoral desde que o voto deixou de ser obrigatório, em 2012, foi possível a partir das manifestações e pressões populares, iniciadas em 2019, após anúncio de aumento das tarifas do metrô em Santiago. Estudantes organizaram diversos protestos, logo apoiados por outros setores da população.
Agora, pela primeira vez, há no país um processo constituinte a ser realizado de forma aberta e transparente. Entre 1825, após a independência da Espanha, e 1980, o país teve três Constituições, todas elaboradas por acordos entre as elites.
Um total de 78,3% dos eleitores votou pela abertura do processo constituinte e 21,7% se colocou contra. Além disso, os constituintes serão eleitos exclusivamente com o propósito de redigir e aprovar a nova Carta. É possível comparar os resultados com o de outra consulta popular. No plebiscito anterior, realizado em 1988 para se decidir a continuidade ou não do regime militar, a diferença foi menor, 56% pelo seu fim e 44% a favor de sua continuidade.
Embora a Constituição em vigor tenha sofrido reformas em vários aspectos – entre elas a eliminação de restrições à participação da esquerda nas eleições, o fim da indicação de senadores biônicos pelo Poder Executivo e da existência de um Conselho de Segurança Nacional, indicado pelas Forças Armadas -, a Carta foi desenhada para impedir mudanças estruturais no país.
O Chile elegeu democraticamente sete governos com mandatos de quatro anos, desde 1990. Duas dessas administrações foram comandados pelo Partido Renovação Nacional, de direita, e cinco por presidentes da Concertação, aliança de centroesquerda formada pelos partidos Democrata Cristão e Socialista. Nenhum deles pretendeu ou conseguiu alterar aspectos autoritários da Carta.
Resultado do “estalido”
A realização do plebiscito é resultado direto das maciças manifestações populares de outubro de 2019, as maiores da história do Chile, iniciadas como protesto contra a alta dos preços dos bilhetes de metrô. Na verdade, o “estalido” social, como dizem os chilenos, catalisou uma torrente de descontentamentos que vinha desde a primeira década do século. As contrariedades vão desde a penúria dos aposentados por força da privatização da Previdência, até as altas mensalidades dos estabelecimentos educacionais, a grande maioria também privados. O Chile é, desde o golpe de 1973, um grande campo de testes de políticas neoliberais.
Os crescentes protestos do ano passado suplantaram a pesada repressão policial e colocaram o governo do direitista Sebastián Piñera contra a parede. A conduta do presidente em declarar que o país estava em “estado de guerra” e aplicar toques de recolher evidenciou a incompetência do governo em lidar com a situação e estimulou a ascensão da repressão estatal, que resultou em 34 mortes, 445 feridos e mais de 6 mil prisões (muitas ilegais), além da existência de centros de tortura clandestinos comandados pelos “carabineros”, polícia ostensiva chilena. As manifestações trouxeram à cena política uma novíssima geração de ativistas que sequer era nascida quando a ditadura acabou.
Promissor e desigual
Há décadas o Chile tem sido visto como o país mais promissor da América Latina, por apresentar o maior PIB per capita da região e um alto Índice de Desenvolvimento Humano(IDH). No entanto, esses progressos, além de apenas econômicos, são consequências de uma abertura ao capital externo e uma série de privatizações que tiraram das mãos do Estado o comando da água, da educação e da previdência social, e que prejudicaram em larga escala a população. A negligência dos governos pós-Pinochet em atuar contra a mercantilização da vida resultou no agravamento de uma crise estrutural de naturezas econômica, social, ambiental e, a partir da pandemia, sanitária. Mesmo sob condições desafiadoras, o povo chileno tomou as ruas mais uma vez e fez valer sua voz.
A eleição da Comissão Constitucional, que terá como característica inovadora a equidade de gênero nas 155 vagas que a compõem, será realizada em 11 de abril do próximo ano e os constituintes terão 12 meses para escrever o novo texto, que deverá ser aprovado em plebiscito convocado até 90 dias após o término das sessões. Assim sendo, o processo que começou em 2019 deve terminar apenas em 2022. Entre os principais temas devem figurar um novo pacto federativo – com maior autonomia regional, serviços públicos, direitos sociais – o que inclui direitos indígenas -, limites às privatizações e o papel do Estado na economia. Estará em pauta também a definição de uma plena cidadania diante do Estado.
Mudanças no altiplano
Na Bolívia, um ano após a conturbada eleição presidencial de 2019, que culminou com um golpe de Estado e a renúncia do ex-presidente Evo Morales, os cidadãos foram às urnas novamente em 18 de outubro. Isso se deu após dois adiamentos e sob um governo interino que desrespeitou quaisquer regras de legitimidade constitucional. A vitória em primeiro turno de um correligionário do presidente deposto demonstra a anomalia de um golpe avalizado pela OEA. Três setores saíram derrotados: o imperialismo estadunidense, as oligarquias locais e a extrema-direita representada pelo candidato Luis Fernando Camacho. O golpe de Estado escancara a real intenção das elites regionais em permitir que o país siga submetido a experimentos neoliberais, como no início dos anos 2000.
O vencedor das eleições bolivianas é Luis Alberto Arce Catacora, 57 anos, candidato pelo mesmo partido de Evo Morales, que governou o país por 14 anos, o Movimento ao Socialismo (MAS). Arce ganha as eleições ainda no primeiro turno, como ocorreu com Morales em 2019. Logo após a vitória, o novo presidente postou em suas redes sociais: “Recuperamos a democracia e retornaremos a estabilidade e a paz social. Unidos, com dignidade e soberania!” A vitória de Arce abre certo espaço para a reentrada da Bolívia em um cenário progressista, após um ano de intensas manifestações populares e forte presença repressiva das Forças Armadas.
O novo presidente é economista e foi Ministro da Economia do governo Evo Morales. Arce foi o responsável pelas políticas econômicas do chamado “milagre econômico boliviano”, período de mais de uma década em que a Bolívia manteve uma média de crescimento anual em torno de 5%, e entre os anos de 2014 e 2019 o maior da América do Sul. No início do governo Morales, Luis Arce foi muito importante no episódio da nacionalização dos hidrocarbonetos, que impulsionou o crescimento econômico e permitiu investimentos estatais que promoveram significativas melhoras em indicadores socioeconômicos. As iniciativas também possibilitaram o aumento das reservas internacionais, que foram de US$700 milhões para US$20 bilhões na primeira década do governo Morales.
Desafios imediatos
No entanto, os desafios que Arce terá que enfrentar são muitos. Além das consequências da má gestão do governo provisório de Jeanine Añez e de uma grave crise econômica, há o crítico cenário causado pela pandemia de coronavírus. Concomitantemente com o objetivo de restaurar o crescimento do país, há a necessidade de acalmar os ânimos das forças sociais e comprometer-se com atender as demandas da população.
No plano internacional, é possível que a nova administração adote uma posição pragmática, que permita o diálogo com outros países e a manutenção da credibilidade internacional. Arce já demonstrou interesse em renegociar os termos do acordo comercial de gás natural com o Brasil e se mostra otimista em relação ao fluxo econômico entre os dois países. Todavia, o governo brasileiro, que durante a corrida eleitoral boliviana apoiou abertamente a queda de Morales e dialogou com outros líderes da onda conservadora, dificilmente tentará um diálogo mais profundo com a nova liderança fronteiriça.
O continente sul-americano ainda é caracterizado pelo fenômeno do subdesenvolvimento, por um modelo primário-exportador e pela dependência do capital externo. A América Latina definitivamente precisa superar as políticas neoliberais conservadoras que perpetuam um alinhamento passivo aos Estados Unidos, um isolamento diplomático e um ódio ao multilateralismo e, no lugar delas, inserir no continente um diálogo mais amplo em que se busque melhor inserção internacional e a cooperação multilateral.
E o Brasil?
A pergunta recorrente desta semana é: se há uma onda antiliberal, ela chegará ao Brasil? Trata-se de algo difícil de responder. Na Bolívia e na Argentina, tanto o peronismo quanto o MAS opuseram-se firmemente às políticas neoliberais e seguiram merecendo confiança de suas bases sociais, articuladas em décadas de disputas políticas. No Chile, onde parte da esquerda – o Partido Socialista – transformou-se em força auxiliar do establishment, o que pode estar acontecendo é uma transição geracional e organizacional da esquerda. Os protestos de 2019 não tiveram em sua direção nenhuma agremiação em especial, mas o Partido Comunista – fundado em 1912 e que teve quatro direções nacionais assassinadas pela ditadura – ressurge como legenda importante, ao lado de outras.
O caso brasileiro é muito mais complexo. O Partido dos Trabalhadores – eleito quatro vezes consecutivas para a presidência da república – decidiu, em 2015-16, aplicar um duro ajuste fiscal que dobrou os índices de desemprego e levou a economia a uma inédita depressão. Houve uma perda de legitimidade da principal força de esquerda em relação à sua base social. Há uma reflexão a ser feita sobre a fraca reação popular ao golpe de 2016 e o entusiasmo com um aventureiro de claras tinturas fascistas. Tudo o que não se pode fazer é culpar o povo. O debate sobre rumos a tomar é urgente nos meios progressistas e democráticos brasileiros.