27 de março de 2021
Por Bruno Castro Dias da Fonseca, Gabriel Santos Carneiro, Mariana Pessoa de Freitas, Nicolas Ronaldo Silva Modesto e Renata Nogueira Alencar [1]
Em um processo de perda gradativa de poder do Estado como agente promotor do desenvolvimento, a soberania em diversos setores brasileiros continua esvaziando-se, e os setores intensivos em tecnologia não são exceção.
Calcula-se que a capacidade mundial de produção de vacinas contra o novo coronavírus , para 2021, é apenas de um terço do necessário. Este cenário de escassez, contudo, não se deve apenas a assimetrias econômicas, mas expressa a falta de políticas adequadas em países com potencial de desenvolver vacinas próprias (o caso do Brasil) e resistência fornecida por países desenvolvidos e empresas detentoras das patentes na difusão dos direitos de produção dos insumos da vacina. A socialização dessas patentes mobilizaria mais fábricas e laboratórios do mundo no aumento da capacidade de produção global. Ademais, mesmo antes das primeiras vacinas contra a covid-19 serem devidamente aprovadas pelos órgãos de Saúde nacionais e internacionais, iniciou-se uma corrida interestatal pela compra das remessas.
Nesta disputa, os países com maior poder de compra e visão estratégica saíram à frente, fechando acordos de vultosas encomendas dos primeiros lotes, relegando ao resto do mundo o final das filas internacionais da vacina. Assim, a limitação de estoque que, num primeiro momento, manifesta-se meramente como uma consequência das condições econômicas mundiais, consiste no resultado de arranjos políticos que favorecem o acesso ao imunizante para os países desenvolvidos.
Fala-se muito na diplomacia da vacina para a covid-19. O que se vê por trás disso, no entanto, é o crescente hiato entre países e empresas que têm ou não domínio das tecnologias e base industrial. Os poucos países emergentes que desenvolveram vacinas são aqueles que apostaram em políticas industriais e tecnológicas para o complexo de saúde. A corrida pela vacina para a Covid19 faz parte de um processo mais amplo, que o especialista da Fiocruz Carlos Gadelha chama de “complexo econômico-industrial da Saúde 4.0”.
Ou seja, a saúde é um dos setores estratégicos das transformações tecnológicas em curso e que envolve, por exemplo, cada vez mais digitalização (5G), inteligência artificial e uso de big data. Um sistema de saúde coletiva precisa de uma base industrial-tecnológica. Assim, a pandemia mostrou também o impacto negativo de decisões políticas de países que tiveram condições de entrar nessa disputa, mas ao longo dos anos desistiram de montar sua base nacional. É o caso do Brasil. Sobrevieram a Fiocruz, o Instituto Butantan e o SUS, mas sem o respaldo de uma indústria de saúde dinâmica.
A indústria da saúde é complexa. Envolve o setor químico (farmacêutica, vacinas), mecânico-eletrônico (equipamentos como ventiladores) e o de informação-conectividade. Um elemento importante para estimular essa base industrial é usar o poder de compras públicas, o que os EUA, por exemplo, estão fazendo com a lei “Buy American Act”. No Brasil, o comprador é o próprio SUS. A pandemia provocou em muitos países a consciência de que uma base nacional tecnológica e produtiva na área de saúde é fundamental para a defesa da soberania. A diplomacia da vacina – ou a guerra pelas vacinas – é, portanto, somente o topo do iceberg. Uma reflexão sobre o que está acontecendo com as vacinas na crise sanitária atual é fundamental para pensar as políticas necessárias para o mundo pós-pandemia.
As vacinas e a questão nacional
As principais desenvolvedoras e produtoras de vacinas até agora são empresas privadas que orientam suas vendas com base na rentabilidade. Mas contaram com forte apoio de seus governos que, em troca, obrigaram as produtoras nacionais a darem prioridade ao fornecimento interno, como foi o caso dos EUA e do Reino Unido.
TABELA 1: Lista de vacinas atualmente em uso e países de origem
Embora chame a atenção a presença de produtores importantes da China, Rússia e Índia, há um profundo desequilíbrio na compra dessas vacinas, uma vez que as encomendas são concentradas nos países desenvolvidos.
O apoio brasileiro à manutenção das patentes na OMC
Uma alternativa proposta por alguns países em desenvolvimento tem sido flexibilizar o acesso às patentes farmacêuticas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em outubro do ano passado, os representantes da África do Sul e da Índia, liderando um grande bloco de países em desenvolvimento, propuseram um waiver – suspensão temporária de um ano – para algumas cláusulas do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS).
Contrariando sua notável tradição de atuação a favor da quebra de patentes farmacêuticas na OMC, a delegação brasileira se posicionou contra o waiver, sendo a única nação em desenvolvimento que não apoiou a proposta indiana e sul-africana.
É verdade que, no curto prazo, a quebra das patentes dificilmente levaria a um aumento considerável da produção de vacinas, pois faltaria capacidade industrial e tecnológica às nações em desenvolvimento.
Mas o acesso às tecnologias utilizadas na produção de vacinas é algo necessário para que países em desenvolvimento se tornem menos dependentes na produção futura de vacinas para variantes do coronavírus e para outras doenças. Assim, ao se posicionar contra a suspensão das patentes, o Brasil abriu mão de uma estratégia de desenvolvimento industrial e, ao mesmo tempo, de maior soberania e independência no combate a futuras epidemias e novas doenças que estão por vir.
A vitória perdida com o BRICS
Em nova perda de oportunidade, o governo brasileiro pouco explorou a potência do espaço de discussão proporcionado pelo agrupamento do BRICS, principalmente com os membros que estão produzindo suas próprias vacinas: China, Índia e Rússia.
Um dos objetivos do agrupamento é justamente o de cooperação nos setores de desenvolvimento em ciência e tecnologia, saúde e inovação, entre outros. Contudo, o Brasil não utilizou de suas possibilidades enquanto membro do grupo para formar parcerias com os demais, ao contrário, manteve-se isolado e ressaltando as divergências entre a agenda do governo Bolsonaro e a postura da potência chinesa, um dos pilares da vacinação no Brasil e no mundo.
Atualmente, diferentemente dos demais países membros do BRICS, dos quais China, Rússia e Índia possuem seus próprios projetos de produção de vacinas da Covid-19, o Brasil é um caso de insucesso no enfrentamento da pandemia. O desenvolvimento da vacina no Brasil, seja ela de produção própria ou com a importação de insumos, poderia ter sido muito mais relevante, quantitativa e qualitativamente, caso o governo tivesse aproveitado a oportunidade privilegiada proporcionada pelo BRICS.
Por fim, vale lembrar que as parcerias existentes atualmente com instituições e laboratórios chineses, russos e indianos para a produção de vacinas da Covid-19 no Brasil não foram originadas por esforços do governo federal dentro do agrupamento.
A crise sanitária e a dependência brasileira
O Brasil está enfrentando a pior fase já vivida da pandemia de coronavírus em seu território e, apesar do grande volume de vacinas a serem entregues pelas parcerias estabelecidas tardiamente pelo Ministério da Saúde com as farmacêuticas internacionais, todas estas questões envolvendo o acesso às vacinas só refletem, mais uma vez, a condição de dependência do Brasil.
Em um processo de perda gradativa de poder do Estado como agente promotor do desenvolvimento, a soberania em diversos setores brasileiros continua esvaziando-se, e os setores intensivos em tecnologia não são exceção.
Quando se trata do almejo de produção autônoma da vacina, é possível ver como a dependência tecnológica e política são intrínsecas. O Brasil produz muito pouco dos insumos que a indústria farmacêutica utiliza, necessitando da importação tecnológica. Não é coincidência que as duas vacinas protagonistas no país, a Coronavac e a Oxford Astrazeneca, atualmente são importadas. A falta de investimento por parte do governo e a manutenção das patentes no âmbito da OMC impossibilitam a construção de um projeto soberano de produção de vacinas. Ao invés disso, se continua a importar a maior parte dos componentes, decisão que é politicamente apoiada pelo governo atual e que contribui para a naturalização dessa situação. O termo de “colaboração” continua sendo um eufemismo para a trágica dependência tecnológica que o Brasil vive há décadas. Assim como a escassez internacional de vacinas é resultado da articulação política dos países produtores, a frágil posição do Brasil neste cenário, de país dependente de importação de vacinas e de know-how, também é.
[1] Os autores agradecem a colaboração do professor Giorgio Romano Schutte.