10 de abril de 2021
Por Mikael Servilha, Natalia Ferreira e Felipe Lelli
Em meio à corrida por imunizantes contra a Covid-19 em curso, o nacionalismo da vacina vem impondo obstáculos para a promoção da vacinação em todos os países e abrindo espaço para alguns Estados do Sul Global expandirem sua influência por meio da diplomacia da vacina.
Em conferência virtual de imprensa da Organização Mundial da Saúde (OMS) realizada em 4 de setembro de 2020, Tedros Adhanom, diretor-geral da organização, expressou suas expectativas positivas em relação às vacinas contra a Covid-19, que naquele momento ainda se encontravam em fase de desenvolvimento. Na oportunidade, destacou que a prioridade, ao menos enquanto a oferta de doses fosse limitada, deveria ser “vacinar algumas pessoas em todos os países [referindo-se aos trabalhadores essenciais e os grupos de riscos de cada país], ao invés de vacinar todas as pessoas em alguns países”. Em seguida, Adhanom alertou que, se os países de baixa e média renda forem deixados para o final da fila, o vírus continuaria a se espalhar e a recuperação da economia global seria dificultada. Assim, seguiu o diretor-geral, “deve ser do interesse nacional de cada país a distribuição equitativa das vacinas como um bem público global” (1).
Passaram-se sete meses da conferência e desde então diversas vacinas seguras e eficazes vem sendo produzidas. No entanto, a distribuição de forma equitativa das doses não se concretizou. Segundo dados do Duke Global Health Innovation Center, até o dia 2 de abril de 2021 aproximadamente 8,6 bilhões de doses de vacinas haviam sido negociadas. Desse total, cerca de 53% foram compradas por países e regiões de alta renda, que incluem Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia (UE), Canadá, Japão, entre outros. De outro lado, 17% das doses foram negociadas com países de renda média, como Brasil, México, Argentina e África do Sul, enquanto outros 12% foram negociados pelo Covax. Os cerca de 18% das doses de vacinas restantes foram negociados por países de renda baixa e média baixa. As primeiras negociações com os países de renda baixa ocorreram somente em janeiro de 2021, por meio da aquisição conjunta da União Africana (2).
Quatro categorias
No quadro da corrida pelas vacinas, os países dividem-se basicamente em quatro categorias. A primeira é a de países que são produtores finais de vacinas, como o Brasil, que vem produzindo duas vacinas já aprovadas para uso no país, a da Oxford-AstraZeneca pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a da SinoVac pelo Instituto Butantan. No entanto, o país ainda depende da importação de insumos para a produção. Há também países que produzem somente os insumos para as vacinas, como a Malásia. Um terceiro grupo é o de países produtores de vacinas e de insumos, como Índia, China, Rússia, Estados Unidos e Reino Unido, os quais são autossuficientes na produção. Por último, vem o maior grupo, que inclui os países que não produzem vacinas e nem os insumos (3). Esses últimos são também os que mais dependem do Covax.
Na conjuntura atual, percebe-se sobretudo duas tendências expressas no campo das Relações Internacionais. A primeira, referida como diplomacia da vacina, apresenta elementos de cooperação internacional, mas também é orientada a partir de interesses geopolíticos e, em um primeiro momento, vem sendo conduzida por determinados governos de países do Sul Global. A segunda, é marcada pela estratégia “eu primeiro” adotada por alguns atores internacionais e que no atual contexto convencionou-se chamar de “nacionalismo da vacina”. Pode-se perceber eventualmente inflexões da diplomacia para o nacionalismo da vacina em alguns casos a depender, em especial, de pressões internas nesses países para a imunização das suas populações. O inverso, a mudança de direção do nacionalismo para a diplomacia da vacina, também pode ser esperado, sendo protagonizado então pelos países desenvolvidos após a imunização das suas populações.
Nacionalismo e estratégia
Sob a perspectiva do comércio internacional, o nacionalismo da vacina pode ser lido como estratégia de governos que vem implementando políticas nacionalistas para favorecer a imunização de suas populações. Tais políticas vão diretamente de encontro com as orientações da OMS, geram ineficiência na cadeia de produção global de vacinas e implicam na exclusão de muitos países do acesso aos imunizantes. De modo geral, os territórios desses governos estão inseridos na cadeia produtiva das vacinas contra a Covid-19 e os mesmos são referidos como nacionalistas, principalmente por fecharem compras antecipadas de grandes quantidades de doses diretamente com os fornecedores e/ou por terem implementando algumas restrições para exportações de doses ou de insumos essenciais para produção dos imunizantes. Priorizam a expansão da imunização da sua população enquanto muitos países ainda não iniciaram suas campanhas de vacinação ou então a fazem em ritmo bem lento. Atualmente, sobretudo União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos apresentam esses elementos. A Índia também recebe críticas, voltadas ao controle exercido sobre as exportações de vacinas e insumos relacionados a sua produção.
Segundo os dados do Duke Global Health Innovation Center, os dois primeiros contratos de compra de vacinas contra a Covid-19 foram assinados em maio de 2020, quando os Estados Unidos e o Reino Unido negociaram com a Oxford-AstraZeneca a compra de 400 milhões de doses. As 300 milhões de doses negociadas com os Estados Unidos seriam suficientes para vacinar 46% da sua população. A vacina desenvolvida pela Oxford-AstraZeneca só obteve aprovação para uso no início de dezembro de 2020. Ainda em julho de 2020, os Estados Unidos já haviam fechado a aquisição de outras vacinas com mais três desenvolvedores: Sanofi, Novavax e Pfizer-BioNTech. Com isso, totalizavam 610 milhões de doses negociadas até então, o suficiente para imunizar 93% da sua população.
De acordo com a Universidade Johns Hopkins, até o dia 4 de abril de 2021 os Estados Unidos administraram cerca de 165 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19, atingindo a marca de 17,5% da sua população completamente vacinada. Além disso, o país pretende iniciar na primeira quinzena de abril a vacinação para toda a população acima de 16 anos de idade (4). Para efeitos de comparação, também até o dia 4 de abril, cerca de 2,2% da população do Brasil foi vacinada completamente. A África do Sul vacinou completamente 0,5% da sua população; o México 0,9%; e a Argentina 1,5%. Em relação ao continente africano, não há dados disponíveis no site da Johns Hopkins para a maior parte dos países do continente.
Nesse cenário, além de privilegiar as compras antecipadas de grandes quantidades de doses de vacinas contra a Covid-19, os Estados Unidos vem recebendo críticas, principalmente da Índia, por restringir a exportação de matéria-prima. Adar Poonawalla, presidente-executivo do Serum Institute – maior produtor de vacina no mundo com projeção de entregar até o final de 2021 um total de 1 bilhão de doses da vacina Oxford-AstraZeneca – criticou a restrição de exportações de algumas matérias primas – essenciais, por exemplo, para a produção da vacina Novavax no Instituto indiano – que o governo estadunidense implementou invocando a Lei de Produção de Defesa (DPA, sigla em inglês) (5). Criado na década de 1950, o Defense Production Act (DPA), é um instrumento utilizado pelas autoridades presidenciais estadunidenses para agilizar e expandir a produção industrial de bens considerados necessários para promover a defesa nacional do país.
Ritmo acelerado
A campanha de vacinação do Reino Unido, assim como nos Estados Unidos, vem sendo realizada em ritmo acelerado em comparação com a maior parte do mundo. Os dados da Universidade Johns Hopkins mostram que até o 04 de abril de 2021 mais de 36 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 foram administradas e cerca de 8,1% da população do Reino Unido já está completamente vacinada. Além disso, ao menos até o final de março de 2021, Boris Johnson já havia fechado negociações com sete laboratórios, acertando, assim, a compra de 457 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 no total. Apesar do Reino Unido não restringir abertamente a exportação de doses, o governo acertou em contrato com a AstraZeneca que as doses dessa vacina que forem produzidas em solo inglês devem ser entregues aos britânicos primeiro (6).
A União Europeia, que coordena negociações com laboratórios e distribui as doses adquiridas entre os países membros, fechou os dois primeiros contratos em agosto de 2020, quando acertou a compra de 300 milhões de doses da vacina AstraZeneca e 225 milhões da biofarmacêutica alemã CureVac, totalizando 525 milhões de doses, o que seria suficiente para imunizar quase 60% da população do bloco. Segundo o Duke Global Health Innovation Center, em outubro a UE já havia garantido a reserva de mais de 1 bilhão de doses no total, quantidade mais que suficiente para imunizar toda sua população. Ainda assim, o bloco europeu seguiu fechando negociações, como a compra de 300 milhões de doses da vacina Pfizer-BioNTech, acertada em 11 de novembro de 2020.
Em relação à campanha de vacinação no bloco europeu, segundo dados so Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças, até 2 de abril de 2021 cerca de 89 milhões de doses foram distribuídas aos países membros. Desse total, aproximadamente 64% são da vacina da Pfizer-BioNTech e cerca de 22,5% da vacina da Oxford-AstraZeneca. Até o dia 2 de abril a Oxford-AstraZeneca entregou para a UE pouco mais de 20,2 milhões dos 300 milhões de doses dessa vacina que o bloco europeu comprou. Sobre o número de doses administradas, até a mesma data, 5,9% da população recebeu duas doses da vacina. Em janeiro de 2021 a Comissão Europeia havia divulgado que planejava vacinar 70% da sua população adulta até agosto de 2021.
Recentemente a União Europeia vem tornando públicas críticas direcionadas à AstraZeneca. A Comissão acusa o laboratório anglo-sueco, que desenvolveu a vacina em parceria com a Universidade de Oxford de não cumprir com as entregas de doses previstas em contrato e de favorecer o Reino Unido na entrega do imunizante. Com essa justificativa, em 24 de março o bloco europeu divulgou em comunicado à imprensa novos critérios a serem considerados para autorização de exportação de vacinas. De acordo com essa medida, as exportações para o Reino Unido e para outros países devem ser suspensas. Sob as acusações de que o bloco europeu estaria implementando uma política nacionalista, o comunicado afirmou que desde 30 de janeiro foram atendidos 380 pedidos de exportações para 33 países, totalizando cerca de 43 milhões de doses exportadas.
Acessos diferenciados
A profunda diferença no acesso ao mercado de vacinas se tornou um prato cheio para os diplomatas russos e chineses — e indianos até certo ponto — que aproveitam o momento para expandir sua capacidade de influência global e, no caso chinês, colocar também os pés no mercado de saúde mundial que movimenta cerca de $8.4 trilhões anualmente.
O Ministério de Relações Exteriores Chinês prometeu a entrega de lotes de vacinas de COVID-19 gratuitos para 69 países e exportações comerciais para pelo menos outros 28, incluindo o Brasil. No México, entre conversas telefônicas acaloradas, López Obrador e Putin anunciaram juntos um acordo para o envio de 24 milhões de doses da Sputnik V, o de maior quantidade da vacina na América. Dada a situação atual, os países pobres que não possuem setores farmacêuticos industriais desenvolvidos não têm qualquer perspectiva de vacinação em curto/médio prazo sem ajuda externa.
O caso da Índia é especial já que, por um lado, respondeu às ofertas da China para Bangladesh e Nepal com suas próprias promessas de fornecer vacinas aos seus aliados, desafiando assim os esforços de Pequim na região. Por outro, o governo vem restringindo exportações de insumos e vacinas com o mesmo argumento utilizado por todos os outros países desenvolvidos ocidentais, isto é, a priorização da imunização de sua própria população. O governo indiano e seus diplomatas agem de forma cautelosa quanto à implantação de uma política de diplomacia da vacina abundante semelhante à da China e da Rússia.
Eficiência chinesa
Esse avanço geopolítico em direção ao mundo subdesenvolvido, em especial o sino-russo, já preocupa líderes europeus como o presidente francês Emmanuel Macron, que alertou a suposta falta de transparência das vacinas chinesas como forma de tentar conter seu avanço ao mesmo tempo que critica a passividade do bloco europeu. É um “claro sucesso diplomático”, disse Macron, descrevendo a eficiência da China em produzir e exportar doses globalmente como “um pouco humilhante para nós”. Os dados mais recentes sobre doações de vacinas apontam justamente nessa direção, onde Índia e China lideram com, respectivamente, 9.53 e 11.94 milhões de doses doadas cada, recebidas principalmente por países periféricos.
Em artigo para o America’s Quarterly, George Lozano afirma que as políticas externas dos países latino americanos podem dar uma guinada brusca em direção ao Oriente, podendo se tornar um problema sério para a hegemonia dos Estados Unidos e seu poder no continente americano. Além de buscarem expandir o alcance da sua influência, Alisson Carragher do EUObserver diz que a China e a Rússia vendem também validações para seus modelos de Estado.
Entre a diplomacia e o nacionalismo da vacina em curso, e sem um imunizante produzido integralmente no país, o Brasil perece sob o governo Bolsonaro. Até o momento, o país depende das importações de matéria prima para a produção das duas vacinas em uso no Brasil. A atuação do governo federal foi marcada pela inação em negociações de compra de vacinas com os fabricantes, bem como pela não movimentação para aproximação com os países do Sul Global produtores de vacinas, em especial a China. Mais do quae isso, o governo brasileiro insistiu deliberadamente em um discurso anti-China ao longo de 2020, assim como se opôs à proposta indiana e sul-africana de suspensão das patentes de vacinas para a Covid no âmbito da OMC.
NOTAS:
[1] OMS, COVID-19 Virtual Press Conference – 4 September 2020. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/transcripts/covid-19-virtual-press-conference-4-september.pdf?sfvrsn=6504a1bd_2. Acesso em 02 de abril de 2021.
[2] DUKE GLOBAL HEALTH INNOVATION CENTER. Tracking Covid-19 Vaccine Purchases across the globe. Disponível em: https://launchandscalefaster.org/covid-19/vaccineprocurement. Acesso em: 02/04/2021.
[3] EVENETT, S. J. el al. The Covid-19 Vaccine Production Club will Value Chains Temper Nationalism? Policy Research Working Papers. Março de 2021. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/35244. Acesso em 03/04/2021.
[4] SALDANHA, N. Maioria dos estados nos EUA planejam abrir vacinação para todos acima de 16 anos. CNN Brasil. 03 de abril de 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/03/maioria-dos-estados-nos-eua-planejam-abrir-vacinacao-para-todos-acima-de-16-anos. Acesso em 04/04/2021.
[5] MARS, Amanda. Como os EUA conseguiram aceleram sua campanha de vacinação em massa. El País Brasil. 04 de abril de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-04-04/como-os-eua-conseguiram-acelerar-sua-campanha-de-vacinacao-em-massa.html. Acesso em 04/04/2021.
[6] CHRYSOLORAS, Nikos. Astra Chief´s Response to EU´s Vaccine-Delay Claims: Main Points. Bloomberg. 27 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-01-27/astra-chief-s-response-to-eu-s-vaccine-delay-claims-main-points. Acesso em 04/04/2021.