10 de abril de 2021
Por Ana Beatriz Aquino, Gustavo Mendes de Almeida, Mirella Acioli e Rafael Sales
Segundo turno das eleições coloca frente a frente dois projetos opostos. Imerso em grave crise econômica e sanitária, estão em cena o legado dos dois últimos presidentes, Rafael Correa e Lenin Moreno. Resultado pode apontar se o continente entra novamente em um rumo progressista e democrático.
Abrindo os ciclos eleitorais na América do Sul em 2021, no domingo, 11 de abril, os equatorianos comparecem às urnas para decidir quem será o novo presidente do país. Após um primeiro turno conturbado pela demora em definir o segundo colocado, a etapa derradeira contará com Andrés Arauz (UNES), que saiu na frente com 32,72% dos votos, e Guillermo Lasso (CREO), segundo colocado com 19,74%. Será uma escolha entre a volta do correísmo – após quatro anos do fim do governo de Rafael Correa (2007-17), do qual Arauz foi ministro -, e a manutenção do receituário neoliberal iniciado por Lenín Moreno, ex-aliado de Correa. É uma orientação que deve prosseguir e ser aprofundada caso o direitista Lasso saia vencedor. Apesar de ser uma clássica disputa entre esquerda e direita, o Equador passa por um momento crítico em sua história e novos rumos precisam ser definidos, seja qual for o resultado.
O novo chefe do Executivo precisará lidar com a crise econômica e sanitária que foram agravadas pela pandemia, além de enfrentar os escândalos de corrupção nas instituições políticas. Ademais, terá que considerar o descontentamento popular e o peso das reivindicações indígenas, visíveis nas maciças manifestações de 2019. Essas, em grande parte, colaboraram para a candidatura de Yaku Pérez, do movimento de unidade plurinacional Pachakutic, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, com 19,39% dos votos, apenas 0,35% atrás de Lasso. O protagonismo indigena nos recentes acontecimentos demonstra que o movimento está organizado, com capacidade de mobilização de votos e ativo no jogo da política nacional.
A memória histórica do período conhecido como “correismo” também terá seu mérito nas escolhas sobre os novos caminhos a serem seguidos, já que foi um ciclo de importantes mudanças estruturais e que gerou importantes desdobramentos tanto na força política de Rafael Correa quanto nas definições dos governos posteriores ao seu.
Os tempos de Rafael Correa
Em 2006, Rafael Correa foi eleito presidente e recebeu um país imerso em uma crise política e econômica, além de uma desigualdade social latente, acentuada no período neoliberal que o antecedeu.
Talvez nenhuma outra nação da região tenha ido tão longe na aplicação dos processos de ajuste estrutural quanto o Equador. O país abriu mão de sua moeda nacional em 2000, no bojo de um processo hiperinflacionário e de profundas crises política e econômica, que dissolveram a credibilidade das instituições e empobreceram sua população. Ao valer-se desse instrumento extremo, não há como o Estado ter uma política monetária ou mesmo dirigir a economia. Entre 1996 e 2007, o Equador teve, ao todo, sete presidentes.
Em um referendo popular realizado em 2007, mais de 80% dos equatorianos votantes decidiram que o país deveria ter uma nova Constituição. A Carta foi redigida e aprovada em 2008, prevendo maior participação do Estado no desenvolvimento socioeconômico, o que possibilitou um crescimento vertiginoso e uma gradual redução da desigualdade social e da pobreza. Demandas indígenas também foram atendidas, com a introdução do conceito de buen vivir – uma espécie de Estado social ampliado – e da plurinacionalidade, embora tenham ocorrido algumas contradições no governo Correa por conta do modelo econômico extrativista que marcou o período. Ademais, foram incorporados ao texto legal o direito à água como um bem público – sendo impossibilitada sua privatização -, a educação universal e gratuita, abrangendo até o nível universitário, além da soberania alimentar como um objetivo estratégico do Estado.
Devido a essas mudanças, o período ficou conhecido como “Revolução Cidadã”, e correspondeu a um crescimento médio de 3,4% do PIB por ano, além de um decréscimo de 10% da pobreza durante os dez anos do governo Correa. A nacionalização petrolífera em um país com grandes reservas, além de uma auditoria da dívida pública e sua posterior renegociação que gerou uma economia de US$ 7,5 bilhões, foram molas propulsoras para o país alcançar ótimos resultados econômicos, que possibilitaram um maciço investimento estatal em saúde, educação, infraestrutura e em políticas públicas de distribuição de renda.
Entretanto, por ser uma economia dolarizada e dependente da exportação de petróleo, as oscilações do mercado internacional têm transmissão instantânea no plano interno. Quando o valor do barril caiu no mercado internacional em 2014, uma forte crise econômica acabou prejudicando o projeto desenvolvimentista encabeçado por Correa.
O leninismo de direita
Em 2017, Rafael Correa encerra seu ciclo presidencial e, apesar dos desgastes provocados pela crise e por denúncias de corrupção, consegue manter altos índices de popularidade. Consegue eleger seu vice-presidente, Lenin Moreno, como sucessor e representante da esquerda. Tudo apontava para uma continuidade dos ideais defendidos pela Revolução Cidadã, através do movimento político Alianza País (AP).
Lenin esteve junto ao governo de Correa de 2007 até 2013, quando foi enviado para Genebra, na Suíça, com o intuito de atuar na Organização das Nações Unidas. Seu retorno se deu diante da necessidade de um nome capaz de prosseguir com o projeto político do correísmo. Lenin assume esta missão durante toda a campanha eleitoral, apesar de sempre se apresentar como “conciliador” e “mais aberto ao diálogo” do que seu padrinho político.
Após uma disputa acirrada, Lenin vence as eleições de 2017 com 51,16% dos votos válidos. Seu adversário foi o atual presidenciável Guillermo Lasso, que obteve 48,84% dos votos, que alegou fraude no processo, sem apresentar provas.
O resultado apertado acendeu o sinal de alerta para os dois programas políticos em disputa. Se a direita viu o fortalecimento de seu discurso perante a opinião pública, para a esquerda foi um aviso de que a projeção nacional do correísmo carecia de renovação. A polarização torna-se cada vez mais acentuada no cenário político e é agravada pelo enfoque exacerbado que a mídia nacional deu a escândalos de corrupção relacionados ao governo de Correa, colocando o novo governo na defensiva.
Base fragmentada
Como se não bastasse, Lenin enfrenta os seus primeiros meses no poder com sua base ideológica e partidária fragmentada na Assembleia Nacional, e se vê sem forças para implementar sua agenda política. E assim, numa tentativa de encontrar apoio, ele se desvincula do programa político para o qual foi eleito e tenta afastar sua imagem do correísmo. Para isso, faz aproximações com grandes grupos econômicos, incluindo os de comunicação, até aderir ao projeto neoliberal defendido pelo seu adversário nas eleições. A manobra fez com que o seu governo traísse o eleitorado, ao executar o contrário do que prometera em campanha
Em 2019, Lenin aplica um pacote econômico, formulado após acordo com o Fundo Monetário Internacional, sem passar pela aprovação da Assembleia Nacional. A população toma as ruas em outubro daquele ano, em violentos protestos. O estopim para os 11 dias de revoltas foi o aumento do preço do combustível, além da aceleração do desemprego e da inflação. Diversos grupos sociais foram às ruas, com destaque especial para o protagonismo dos movimentos indígenas.
Diante da violência nas ruas e do aumento dos protestos, o país entra em estado de sítio e o exército toma as principais cidades. Greves, levantes, ataques e confrontos eram tão frequentes, que foram decretados inúteis toques de recolher. Sem saída, Lenin não teve outra opção a não ser ceder e negociar. Ambas as partes concordaram em revogar o decreto que estabelecia as novas medidas econômicas e formaram uma comissão conjunta para a elaboração de novas políticas relacionadas ao tema. O movimento indígena saiu vitorioso, pois além de liderar as reivindicações, lançou ao debate público temas sensíveis, como a exploração em terras indígenas e cobrou.
No início de 2020, o mundo começou a enfrentar a pandemia causada pelo coronavírus. Com seu tecido social fragmentado e suas instituições fragilizadas, o Equador não consegue ter êxito na condução de políticas públicas para o enfrentamento da crise. É com um colapso no sistema funerário e falta de transparência e confiabilidade na divulgação dos números sobre a pandemia que Lenin Moreno encerra seu período na presidência, marcado por muitas contradições e ineficiência.
O candidato Arauz
Andrés Arauz Galarza tem 36 anos, é economista, trabalhou na Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento, foi diretor-geral do Banco Central equatoriano e também Ministro do Conhecimento e Talento Humano, durante o governo de Rafael Correa. É candidato pela UNES (Unión por la Esperanza), uma coalizão que reúne movimentos de esquerda e centro-esquerda que se uniram como partido em 2020, após o racha na antiga matriz do correísmo, o Alianza País (AP). A organização agora é controlada pelo presidente Lenín Moreno.
Arauz não desconsidera, caso eleito, realizar uma nova consulta popular acerca de uma nova Assembleia Constituinte e, além disso, pretende fazer uma nova auditoria da dívida externa.
Em um eventual governo, Arauz pretende tratar como prioridades as emergências sanitária e econômica. Em relação à Pandemia, a prioridade é o acesso à vacina (Arauz já anunciou acordos preliminares com a Rússia para adquirir a Sputnik V e negocia com a Argentina a vacina de Oxford produzida no país), o fortalecimento do sistema público de saúde, além da criação de um comitê científico encarregado da política epidemiológica. Para a recuperação econômica, Arauz propõe uma progressiva reforma tributária e, além disso, uma renda de US$1 mil para até um milhão de famílias, financiada pelas reservas monetárias que o Equador possui na Europa.
A criação de uma comissão da verdade também deve ocorrer caso Arauz saia vencedor, tendo como objetivo apurar a violência contra os direitos humanos nas manifestações de 2019.
Na política externa, se espera de um eventual governo de Arauz uma linha pragmática e de autonomia, além de uma maior integração com os países latino-americanos.
O candidato Lasso
Guillermo Lasso, de 65 anos, é o principal nome de oposição ao governo e à figura de Rafael Correa. Banqueiro, liberal e conservador, reúne em si todas as pautas dos opositores e críticos dos movimentos populares no país. Disputou a presidência em 2013 e em 2017, sempre levando o segundo lugar. Candidato pela coalizão direitista, a principal reivindicação de sua campanha é derrotar o correismo, sem nunca mencionar qual exatamente seria o legado ainda vigente de Rafael Correa e nem de que forma o derrotará.
Esta não é a melhor fase política de sua vida. Nas eleições de 2017, por exemplo, perdeu as eleições de modo acirrado e por pouca margem de diferença, obtendo um pouco mais de 44% dos votos. Desta vez, quase ficou em terceiro lugar na corrida presidencial e a porcentagem de votos ao seu favor caiu para um pouco mais de 19%. Mesmo após a fragmentação da esquerda pós-Moreno e com o apoio de importantes grupos financeiros, Lasso não consegue convencer os eleitores moderados de que seria a melhor opção para governar o país. Ademais, carrega em sua história a marca da crise econômica de 1999, que levou a dolarização da economia. À época, Lasso era governador da província de Guayas, membro da Associação Privada de Bancos do Equador e chegou a ser ministro da economia.
A crise gerou o maior êxito da história equatoriana, porém, contraditoriamente, foi o período em que Lasso aumentou seu patrimônio. Como proposta, promete criar uma campanha de vacinação em massa logo nos primeiros cem dias de governo, manter as posições conservadoras em relação às pautas sociais e virar a página da corrupção que assola o país.
Participação indígena
Logo no início de abril, Jaime Vargas, líder da Confederação Nacional Indígena do Equador (CONAIE), manifestou “respaldo absoluto” à candidatura de Andrés Arauz à presidência. Após a derrota de seu candidato, o líder indígena Yaku Pérez, no primeiro turno das eleições, a CONAIE havia decidido pela linha do voto nulo. A opção pela mudança é fundamental para o desempenho de Arauz nas eleições presidenciais, tanto pelo ponto de vista eleitoral, quanto pelo histórico político de lutas lideradas por essa população.
Apesar de representarem apenas 10% da população equatoriana, os povos indígenas possuem um movimento bastante articulado. Exercem grande influência nas zonas rurais, principalmente referente aos conflitos envolvendo mineradoras multinacionais, formando, em conjunto com o setor de transportes, uma resistência poderosa que já ajudou a derrubar três presidentes equatorianos, entre os anos de 1997 e 2005, e que liderou as manifestações populares de outubro de 2019.
Entretanto, durante a reunião do último dia 3, na comunidade Kofán Dureno, na província de Sucumbíos, que decidiu pelo apoio ao candidato progressista Andrés Arauz, o líder da CONAIE enfatizou a necessidade do governo efetivamente atender às demandas da população indígena e de cumprir com o compromisso de promover a educação intercultural e a liberdade dos perseguidos políticos. Determinado posicionamento sinaliza uma clara crítica às controvérsias e traições do governo popular de Rafael Correa, padrinho político de Arauz, em relação à cooperação com o movimento indígena do país.
Assembleia Nacional
Além de realizar o primeiro turno das eleições presidenciais em 7 de fevereiro de 2021, os equatorianos também elegeram os membros do poder Legislativo. A disputa influencia diretamente a aprovação dos projetos do futuro governo. Com o resultado da apuração, nenhum dos partidos alcançou 69 cadeiras, o necessário para se garantir a maioria no Congresso, o que aponta para a exigência de realizar alianças com outras forças a fim de garantir a governabilidade.
Todavia, o cenário é favorável para Arauz, já que seu partido, a UNES, foi a força que conquistou o maior número de eleitos (49 cadeiras). Além disso, o candidato destacou o sucesso de grupos progressistas, como o Pachakutik, de Yaku Pérez, com 27 deputados, e a Izquierda Democrática, com 18 cadeiras. Em 2017, ambos os partidos tinham apenas 4 lugares no Legislativo, o que sinaliza a vitória tanto do novato UNES, fundado no ano passado, quanto de partidos de esquerda já consolidados, estabelecendo uma nova configuração no congresso equatoriano.
Já o partido de Lasso, o CREO, conquistou apenas 12 lugares, o que representa uma clara derrota em relação ao pleito anterior, no qual a aliança CREO-SUMA obteve 34 cadeiras. O PSC, também seu aliado, alcançou 18 cadeiras, um aumento de três em relação à disputa anterior. Assim, é esperado que o representante da direita no país enfrente uma forte oposição no congresso, caso vença as eleições do dia 11.