24 de abril de 2021
Por Bruna Belasques, Gabriel Carneiro, Hanna Campeche e Naomi Takada (1)
Assistimos ao desmonte da estrutura de ciência e tecnologia e ao esvaziamento dos centros de pesquisa universitários que deveriam ser parte central para inserir o Brasil na nova revolução industrial-tecnológica.
As transformações no mundo automobilístico
Com o recente anúncio do Plano Biden, contendo US$ 174 bilhões destinados à promoção de carros elétricos e à construção de estações de recarga, os Estados Unidos juntam-se definitivamente à China e à União Europeia na corrida pelo desenvolvimento da nova geração da indústria automobilística: a dos carros elétricos. O plano ambiciona construir 500 mil novas estações de recarga até 2030 e oferecerá incentivos tributários para fomentar a compra de novos carros elétricos.
Do outro lado do mundo, a China já largou na frente com a estratégia de oferecer subsídios e apoio estatal para empresas privadas de veículos elétricos focadas na internacionalização, como a Geely e a BYD, a atual líder no mercado global de veículos elétricos. A União Europeia também vem caminhando a passos largos desde o lançamento da European Battery Alliance, em 2017, que consiste em uma aliança da UE com indústrias e a comunidade científica cujo objetivo é investir em pesquisa e inovação de baterias elétricas, visando ao alcance, em 2050, da neutralidade de carbono do bloco.
Além de ser uma grande mudança em termos de sustentabilidade, a transição para a nova indústria automobilística vai promover a criação de empregos em larga escala. Para se ter uma ideia, estima-se que a European Battery Alliance criará 4 milhões de novos empregos até 2025. Somam-se ainda os ganhos de encadeamento que uma indústria de alta complexidade como esta promovem dentro de uma economia, estimulando a demanda por componentes, peças e serviços associados à cadeia produtiva do carro elétrico.
Mundo em transformação e a indústria automobilística brasileira
Diante dessa série de transformações na Europa, nos EUA e na China, cabe perguntar: como fica a indústria automobilística brasileira? A saída da Ford no ano passado está ligada diretamente a este novo cenário de grande reestruturação que está acontecendo no mundo. Parte das razões pelas quais os industriais justificaram a necessidade de essas multinacionais deixarem o Brasil está associada ao que chamam “Custo Brasil”, que, em síntese, é “um sistema tributário complexo, com excesso de burocracia, enormes gargalos logísticos e uma insegurança jurídica que não impulsiona investimentos ao país”, nas palavras do Portal da Indústria, da CNI. Nesse sentido, o presidente da General Motors na América do Sul, Carlos Zarlenga, fez declarações acerca da saída da Ford e das dificuldades já existentes na indústria automotiva brasileira antes mesmo da crise sanitária, afirmando que a pandemia apenas aprofundou este cenário.
Assim, de acordo com dados publicados pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), a produção do setor automobilístico em 2020 teve uma queda de 31,6%. No entanto, cabe chamar atenção para o fato de que o Brasil, durante anos e até 2015, foi o quarto maior mercado automobilístico do mundo. Dessa maneira, se torna necessário refletir melhor sobre os reais motivos do desinteresse das montadoras em investir no Brasil. A hipótese do empresariado acerca do “Custo Brasil” não parece se sustentar por si só.
Dito isso, como tentamos mostrar na seção anterior, o mercado automobilístico vem passando por gigantescas transformações, talvez apenas comparáveis à invenção do motor a combustão interna. Transformações estas que dependem de muita inovação, uso de tecnologia intensa de big data e business intelligence. No Brasil, os carros elétricos já são realidade, porém, para um nicho muito restrito da população. Isso porque os custos para adquirir um carro elétrico são altos e nota-se no Brasil a ausência da infraestrutura adequada para este tipo de automóvel, como, por exemplo, a popularização de terminais de recarga para o carro elétrico.
No intuito de garantir uma participação brasileira no futuro da indústria automobilística, o governo de Dilma Rousseff criou, em 2012/2013, o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto), que não conseguiu deslanchar devido aos problemas econômicos e políticas que tomaram conta do país.
Em 2018, sob pressão da indústria, o governo tentou recuperar o espírito dessa proposta ao lançar o plano “Rota 2030”, que procura incentivar a pesquisa e desenvolvimento (P&D) e, portanto, aumentar a competitividade do setor. As empresas que investirem em P&D terão direito a créditos fiscais. A produção de carros elétricos e híbridos também procura ser incentivada pelo “Rota 2030” mediante a redução de IPI. Embora estes dois tipos de incentivos fiscais sejam importantes, eles ainda parecem tímidos, uma vez que, conforme apresentado, a questão da existência de uma infraestrutura adequada parece ser essencial para o sucesso de uma política de uso de carros elétricos em larga escala. Isto só ocorrerá por meio de grandes montantes de investimento público, como vem ocorrendo nos EUA e na China.
Ainda quando o assunto são as novas formas de transporte, cabe mencionar um caso de sucesso da multinacional brasileira WEG, em parceria com a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Trata-se da construção de um ônibus movido a energia solar, produzido em 2017 e que, desde então, já foi capaz de completar 100 mil quilômetros rodados. Ele costuma ser utilizado para o deslocamento de estudantes, terceirizados e professores da UFSC. O projeto contou com subsídios do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Trata-se de um exemplo de como o investimento público resultou na produção de um veículo movido com baixo impacto ambiental. É evidente que iniciativas como estas precisam ser expandidas.
A inserção econômica internacional dos países sul-americanos
Em 2019, o Mercosul e a União Europeia (UE) concluíram as negociações para um Acordo de Associação Birregional, o maior entre blocos econômicos da história. O Acordo prevê a eliminação de tarifas sobre produtos de importação e inclui principalmente o segmento industrial, agrícola e alimentício, portanto, engloba também o setor automotivo.
Caso o acordo seja ratificado pelas partes do modo como está, este provavelmente aprofundará a dependência industrial-tecnológica brasileira, impactando, inclusive nas possibilidades de desenvolvimento de uma indústria de carros elétricos no país. Pois o mercado brasileiro tende a favorecer a simples importação deste bem de consumo sem alíquotas de importação e sem limitações (cotas de importação zero).
É preciso chamar a atenção para as transformações que os carros elétricos podem gerar nas cadeias de produção. A título de exemplo, pode-se destacar aqui uma matéria prima que tem potencial de revolucionar o transporte automotivo, o lítio. Trata-se de uma commodity, cuja bateria é capaz de gerar mais volts que uma bateria comum. Por esse motivo, o lítio tem passado a ser cada vez mais cobiçado – a montadora de carros elétricos Tesla, por exemplo, vem buscando expandir acordos com grandes produtores de lítio desde 2018. É estimado que o mercado global de bateria de íons de lítio cresça a uma taxa anual de 10,8% para atingir U$ 46,21 bilhões até 2022.
A América do Sul apresenta hoje aproximadamente 70% das reservas de lítio do mundo, com concentração especialmente na Bolívia, no Chile e na Argentina. Apesar disso, a região apresenta ainda dificuldades em extrair, minerar e produzir baterias de lítio, o que tem causado dificuldades com empresas internacionais interessadas em comprar o minério.
Embora o lítio seja um instrumento fundamental para a consolidação do mercado de carros elétricos em massa, o minério ocupa a mais baixa posição na cadeia de produção, porque se trata de um trabalho com menor valor agregado e pouca complexidade envolvida. A produção e venda de baterias tendem a acrescentar maior valor na produção dos carros elétricos, e este é um segmento no qual os países sul-americanos poderiam investir.
A iniciativa poderia ir além do triângulo sul-americano (Bolívia, Argentina e Chile) capaz de extrair lítio e aproveitar também o know-how brasileiro no setor energético. Para isso, é preciso, claro, uma política externa cooperativa, capaz de dialogar, socializar conhecimento e de produzir um projeto sul-americano. Dominar este tipo de tecnologia parece estar se tornando essencial diante das transformações produtivas, e não é à toa que Goldman Sachs chamou o lítio de “a nova gasolina”, em alusão à importância de que este terá – o que não se restringe apenas a carros elétricos, mas também para celulares e outros dispositivos eletrônicos.
Considerações finais: o papel do Estado diante das transformações produtivas
Na década de 1950 o Brasil abriu mão de criar suas próprias montadoras, como o Japão e a Coreia do Sul fizeram. Mas pelo menos havia políticas para garantir produção e espaço para capital nacional no setor de autopeças. Agora, diante desse novo capítulo do setor, desde 2016 os governos vêm apostando em importações sem contrapartidas e estímulos para atrair investimentos em eletrificação do transporte individual. Ao contrário, assistimos ao desmonte da estrutura de ciência e tecnologia e ao esvaziamento dos centros de pesquisa universitários que deveriam ser parte central para inserir o Brasil na nova revolução industrial-tecnológica.
Em muitos países se aposta novamente no papel do Estado para induzir o desenvolvimento tecnológico, o que nas palavras da economista Mariana Mazzucato, seria um “Estado empreendedor”. Isto torna-se evidente diante das transformações no setor automobilístico, conforme argumentamos neste texto. No caso dos EUA, vemos o esforço de Biden em articular com os setores produtivos e, com isso, introduzir grandes projetos de infraestrutura para a transição para um modelo automotivo com energias mais limpas. Considerando tudo isso, ninguém deve se surpreender quando o Brasil se transformar de produtor em mero importador da nova geração de carros.
Notas:
1 – Os autores agradecem a colaboração do professor Giorgio Romano Schutte