Haiti em convulsão

27 de julho de 2021

Por Ana Beatriz Aquino, Gustavo Mendes de Almeida, Mirella Acioli, Nicole Lima (Foto: )

Jovenel Moïse, presidente do Haiti, foi brutalmente assassinado no início do mês. A tragédia revela apenas a superfície da intrincada teia de interesses que compõe a disputa pelo poder no país. Acusações de fraudes, corrupções, violações dos direitos humanos e violência urbana desencadeada por gangues locais marcaram o seu governo. O Haiti encontra-se, mais uma vez, diante de uma crise política.

No dia 7 de julho, o mundo amanheceu com a notícia de que o presidente do Haiti, Jovenel Moïse, estava morto após sofrer uma invasão em sua própria residência. O atentado que também deixou ferida sua esposa, Martine Moïse, foi planejado e nomeado como “um novo amanhecer”, segundo as primeiros investigações. Moïse foi torturado, mas as circunstâncias do ocorrido levantam mais dúvidas do que respostas para a população local. Apesar de estar dormindo, Moïse estava com roupas de uso cotidiano e ninguém mais da sua equipe de segurança foi ferido no atentado.

Nascido em ruínas

Em As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano descreve o Haiti como um “país que nasceu em ruínas e não se recuperou jamais”. Hoje, 50 anos depois do lançamento do livro, a frase continua sendo precisa em definir a história do país. O maior desastre observado até hoje no país é causado pela soma de prejuízos que seguidas intervenções estrangeiras produziram, como a instabilidade política, a fragilidade democrática e a permanente crise sócio-econômica.

O começo da crise não remonta ao terremoto violento de 2010, mas sim à interferência dos Estados Unidos, que transformou o país em um claro exemplo do neocolonialismo. A transição democrática, iniciada após o fim da ditadura da família Duvalier (1957-1986), ainda não terminou. Em longos anos de presença de ações humanitárias, lideradas pelas Nações Unidas e com a força militar proveniente do Brasil, os resultados são decepcionantes. O sistema internacional negligencia a importância do país para a região e falha em não encontrar soluções para a crise.

Revolução haitiana

De acordo com dados do Banco Mundial de 2020, o Haiti é o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo. A tragédia nasce com a imposição do pagamento de indenizações à França, antiga metrópole, após a Revolução Haitiana (1791-1804), quando o exército napoleônico foi expulso de sua colônia mais rentável. Interferências externas, golpes de Estado, desastres naturais e grandes períodos em que a população ficou subjulgada por regimes de exceção são fatores que corroboraram para o agravamento da calamidade econômica, social e institucional que o país enfrenta há décadas.

A diferença entre o Haiti e a então colônia de Saint-Domingue – sob domínio francês durante os séculos XV e XVI – é gritante. Saint-Domingue era tão lucrativa que passou a ser tratada como “a jóia das Antilhas”. A Revolução Haitiana, que deu fim ao domínio externo, estremeceu as bases do colonialismo global. Afinal, tratava-se de um levante de escravos que conquistaram a primeira independência na América Latina, gerando apreensão e revolta nas potências coloniais escravocratas. O Estado nascente foi sufocado com o intuito de não deixar que se espalhasse o “vírus haitiano”, como foi tratada a Revolução à época. O resultado foi um boicote global. Além de não conseguir comercializar com o resto do mundo, o Haiti foi obrigado pela França no ano de 1825 – em troca do reconhecimento diplomático -, a pagar uma espécie de indenização aos ex-donos de terras e de escravos. Foram cerca de 150 milhões de francos, além de juros, que só foram totalmente saldados em 1947.

Ocupação pelos EUA e ditadura Duvalier

Com o intuito de defender os interesses econômicos dos EUA no Haiti, no ano de 1915 o então presidente Woodrow Wilson determinou sua ocupação militar. Ao longo de quase duas décadas, representantes de Washington tiveram poder de veto sobre as decisões governamentais. Até mesmo seus presidentes tinham de ser aprovados pela Casa Branca, assim como suas administrações provinciais. Atuando para transformar o Haiti em terreno atraente para investimentos estrangeiros, os EUA acentuaram o caráter agroexportador e dependente de sua economia, que passou cada vez mais a depender da exportação de uma única mercadoria, o café. No fim da ocupação estadunidense em 1934, o produto representava 78% das exportações.

A ocupação estrangeira foi apoiada por alguns grupos da sociedade do Haiti, entre elas a Igreja Católica, que via o domínio estadunidense como importante meio para fortalecer o catolicismo e combater o vodu (ANDRADE, 2016), religião muito popular, fortemente perseguida pelos sucessivos governos títeres. Por conta dessa repressão, o vodu acabou se tornando um espaço de resistência durante o domínio estrangeiro. Por outro lado, foi usado também como instrumento para o fortalecimento da imagem daquele que seria um dos ditadores mais sanguinários de todos os tempos, François Duvalier, o Papa Doc (1957-1971), praticante do vodu que utilizou da religião para criar um culto de exaltação à sua figura.

No ano de 1957, Papa Doc foi eleito presidente. Ali se iniciava a dinastia Duvalier. Entoando, entre outros, um discurso anticomunista a partir da Revolução Cubana (1959), Papa Doc passou a ter apoio dos EUA, diante do temor que mais países na região se juntassem ao bloco socialista. Com uma ditadura extremamente repressiva, que perseguia e assassinava adversários políticos, Papa Doc chegou a se autodeclarar presidente vitalício em 1964. Durante seu governo, explorou o povo haitiano, que fora obrigado a pagar uma taxa para a construção de Duvalierville (Cidade de Duvalier), que nunca saiu do papel e que teve o montante de arrecadação desviado para a conta pessoal do ditador na Suíça. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas foram assassinadas durante seu governo, além de levar meio milhão de haitianos ao exílio.

Uma das marcas históricas do governo Duvalier foi a forma com que passou a instrumentalizar a pesada repressão ao longo do regime, no qual ele criou uma espécie de grupo paramilitar, os Tontons Macoutes, esquadrão da morte que perseguia, prendia, torturava e assassinava os opositores.

Com a morte de François, seu filho de apenas 19 anos, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, assumiu o comando do regime em 1971, dando continuidade às atrocidades praticadas pelo pai, mas sem exibir o mesmo traquejo. Acabou derrubado em 1985 por um levante popular.

Pós-ditadura Duvalier

Dos 36 presidentes que antecederam a dinastia Duvalier, 23 foram assassinados ou depostos, e, mesmo após a queda de Baby Doc, essa instabilidade política se manteve. Do fim da ditadura dos Duvalier até hoje, apenas René Préval (1996-2001/2006-2011) e Michel Martelly (2011-2016) conseguiram concluir seus mandatos. Um caso bem curioso foi o do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que eleito em 1991 e também em 2001, teve seus dois mandatos interrompidos; no primeiro episódio, derrubado por facções duvalieristas contrárias às mudanças estruturais, como a reforma agrária. Foi contudo reconduzido ao seu cargo, viabilizado por interferências dos EUA. Em troca, Aristide passou a adotar uma linha neoliberal em seu governo.

A atuação brasileira na Missão de paz da ONU

O Brasil atuou durante 13 anos em um papel de liderança na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que, iniciada em 2004, tinha como objetivo assegurar um ambiente democrático e mais estável e garantir melhorias na saúde e na qualidade de vida da população. O aparato militar brasileiro atuou na missão e também em atividades de infraestrutura e, ainda que os anos em território haitiano tenham trazido visibilidade internacional ao Brasil, os resultados efetivos da ajuda humanitária são poucos.

O presidente Jair Bolsonaro, em 2018, definiu o desempenho brasileiro na missão como um modelo de Segurança Pública. No entanto, dados da Associated Press relatam que, durante os anos de ação dos milhares de soldados, não só brasileiros, no Haiti, houve 2 mil denúncias de estupro e abuso sexual por parte desses soldados, dos quais 300 vítimas são crianças. Ademais, a Minustah foi responsável por restituir a epidemia de cólera em território haitiano, que causou a morte de mais de 30 mil pessoas e refletiu a incapacidade da ajuda humanitária em trazer estabilidade e segurança ao país. A chamada operação de paz aumentou imensamente a violência no país e acabou com a soberania do povo haitiano, que votou mais de uma vez no Senado pela saída das tropas, sempre sem sucesso.

Em 2017 chegou ao fim a missão, segundo relatório da ONU, porque o Haiti atingiu um grau de estabilização que permitiu a eleição democrática de Moise, não sendo mais necessária a presença das tropas missionárias.

A elevação do contingente de população haitiana residente no Brasil começou no final de 2011. No começo do ano seguinter, segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de 4 mil imigrantes haitianos estavam no país de forma ilegal, vindos principalmente pelas fronteiras do Acre e Amazonas. O caráter da imigração, sendo ela causada pelo terremoto de 2010 e pela situação sócio-econômica do país, não se enquadra na concessão de refúgio no Direito Internacional, mas sim na concessão de visto humanitário de residência.

Já em 2012, o governo brasileiro estabeleceu medidas para regularizar a imigração e conceder mais 1,2 mil vistos anuais para a população residir e trabalhar no Brasil. Os documentos exigidos para a regulamentação, no entanto, dificultavam a imigração legal, o que fez com que os números ilegais vivendo em situações precárias no país continuasse a crescer, até a nova resolução normativa de 2013, que acabou com os limites à obtenção de vistos e, em conjunto com organizações da sociedade civil, passou a buscar um modo legal e seguro de entrada aos haitianos.

Gestão Moïse

O mandato presidencial de Jovenel Moïse foi marcado por conflitos desde o pleito eleitoral em 2015. Apesar de ser o mais votado, o processo eleitoral foi anulado após uma onda de protestos por conta das denúncias de corrupção. Assim, novas eleições foram marcadas para o ano de 2016 e o senador Jocelerme Privert assumiu o cargo interinamente. Seu mandato deveria ter durado apenas três meses, mas o pleito foi adiado quatro vezes, sendo realizado apenas em 20 de novembro de 2016.

Moïse foi eleito ainda no primeiro turno, obtendo 55% dos votos. Um ano antes, o político era uma figura pouco conhecida no país, mas conseguiu alavancar sua candidatura ao receber o apoio de seu antecessor no cargo, Michel Martelly. Jovenel ficou conhecido como “homem da banana” por sua atuação no agronegócio do país. Ele tinha como principais propostas o combate à corrupção e as mudanças climáticas, além de modernizar a agricultura.

Apesar do voto não ser obrigatório no país, a baixa participação popular no pleito de 2016 evidencia a crise de representatividade que o Haiti enfrenta: Moïse foi eleito com apenas 600 mil votos em uma nação cuja população é de aproximadamente 11 milhões. Além disso, a eleição ocorreu pouco tempo depois de outro desastre natural. O furacão Matthew pode ter imposto ainda mais dificuldades ao processo democrático, visto que as autoridades eleitorais não conseguiram mensurar o número de eleitores ausentes das urnas por terem perdido seus documentos.

Assim como o processo eleitoral, o governo de Moïse foi marcado por controvérsias, de acordo com dados do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Entre 2018 e 2019, 133 pessoas foram assassinadas no país durante manifestações de protesto. A repressão partiu tanto das gangues, quanto do próprio governo. A revolta se tornou ainda mais intensa quando Moïse se recusou a deixar o cargo em fevereiro de 2021. O presidente tentava permanecer no poder até 2022 sob o argumento de que teria sido eleito para um mandato de 5 anos e que só conseguiu assumir em fevereiro de 2017. Todavia, o adiamento das eleições presidenciais no país não agradou a maior parte da população, que já se encontrava insatisfeita com a gestão por conta de seus atos antidemocráticos.

Moïse intensificou o caráter autoritário de sua gestão ao destituir o parlamento em 2020 e passar a governar por decretos. O adiamento das eleições permitiu que ele continuasse a governar por decretos, visto que o país ainda não instituiu novo parlamento. A partir desse momento, as violações da carta magna haitiana se tornaram uma constante, fazendo com que o presidente propusesse inclusive a realização de um referendo constitucional. A atual Carta institui que “qualquer consulta popular destinada a modificar a Constituição por meio de referendo é formalmente proibida”, o que escancara a inconstitucionalidade da proposta. Além disso, o documento foi elaborado apenas pelos governistas, sem qualquer participação da sociedade civil, e contou apenas com uma versão em francês, ignorando o crioulo haitiano, que é a língua mais falada no país.

Além da crise política, a população também tem sofrido com os impactos da pandemia. Dados da Universidade Johns Hopkins mostram que o país registrou 19.563 casos e 510 mortes por covid-19. No entanto, organizações como a Humans Rights Watch apontam uma possível subnotificação de casos no Haiti. Mais alarmante ainda é a situação da vacinação. O Haiti foi o último país da América Latina e Caribe a iniciar a imunização. De acordo com o site Our World in Data apenas 38 doses foram aplicadas até o dia 20 de julho. A crise sanitária não trouxe apenas consequências para a saúde, como também agravou um problema antigo: a insegurança alimentar, que agora atinge 46% da população de forma elevada, como aponta o relatório “Hunger Hotspots” organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O magnicídio

Quais as causas e quem são os mandantes do crime que novamente gera séria crise no país? Empresas de segurança privada estrangeiras estão na mira das investigações. Elas são apontadas como atores indiretos do crime, por terem financiado o atentado. Dentre as cinco, duas se destacam: a CTU Security, que já tinha sido acusada de envolvimento na tentativa de golpe na Venezuela, e a Worldwide Capital. Segundo a polícia, houve um esquema de negociação, no qual o médico Emannuel Sanon encabeçou o plano de assassinar o presidente, e contou com a ajuda do ex-membro do Ministério da Justiça, Jospeh Badio, que viabilizou o acesso de paramilitares colombianos à residência. A polícia local identificou vinte e quatro ex-militares colombianos que estiveram envolvidos no crime. Até o presente momento, 18 encontram-se presos, três foram mortos nas ações policiais e não há indícios do paradeiro dos outros três membros do grupo.

Após a morte, o primeiro-ministro, Claude Joseph, assumiu o governo provisório, mas depois de duas semanas, anunciou que estaria renunciando ao cargo. Com isso, Ariel Henry assume, então, a liderança do país nesse momento turbulento. Com o temor pelo aumento da violência generalizada, o exército foi posto na rua. O país já vivia uma situação de sitiamento, na qual gangues digladiavam-se nas ruas, o que levou Moïse a pedir ajuda internacional para combater tais grupos nos país.

O assassinato de Moïse acentua a instabilidade política no país. Seu governo já vinha sendo contestado pela vigência, duração do mandato e denúncias de corrupção. O presidente tinha pontuado há 6 meses que grupos oligárquicos do país estavam planejando a sua morte. Porém, ainda não se sabe ao certo quais foram as motivações do assassinato e que grupo está por trás do crime. Políticos locais acreditam que o médico Sanon não tinha influência suficiente para pôr em prática tal plano, o que leva a suspeitar de grupos criminosos mais poderosos na ilha.

Ondas de violência

O atual cenário haitiano é caótico. O relatório anual da Humans Rights Watch (HRW) aponta a pior onda de violência no Haiti desde 1986, registrando 944 casos de homicídios, 124 sequestros e 78 casos de violência de gênero. A crise política e econômica é permanente, e o caos social é agravado pela extrema violência praticada no país pelas gangues armadas, que atuam principalmente na capital Porto Príncipe. Essas milícias dominam muitas áreas, criando um verdadeiro cenário de guerra civil. De acordo com dados da Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração (CNRDDR), existem mais de 77 destes grupos armados, sendo o “G9” o agrupamento que reúne as nove gangues mais poderosas do país. Só em 2020 foram registrados 159 mortes resultantes da violência de gangues (HRW).

Financiados pelo crime, com assaltos, tráfico e sequestros, também contam com o apoio de políticos haitianos. As gangues controlam áreas específicas do país, e no período eleitoral, o grau de violência se acentua, uma vez que os moradores passam a ser intimidados pelos criminosos para votarem em determinado candidato, ocasionando mortes, a destruição de residências e demonstrando a fragilidade da democracia no Haiti.

Referências

ANDRADE, E. O. A primeira ocupação militar dos EUA no Haiti e as origens do totalitarismo haitiano. Revista Eletrônica da ANPHLAC. Nº 20, p. 173-196, Jan/Jun, 2016.

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