18 de abril de 2022
Breno Fischer, Bianca Lima, Cássia Fernandes, Lucas Começanha, Lucas Rocha, Luís Gustavo Branco, Luiza Zomignan, Tamires Teixeira, Olympio Barbanti Jr (Foto: Pixabay)
Há quase dois meses da invasão da Ucrânia e sem um panorama para o fim da guerra, os efeitos do conflito são cada vez mais sentidos no mundo. Aspectos ligados à segurança alimentar têm especial relevância em função da importância destes países no fornecimento global de grãos e fertilizantes, além de suas conexões econômicas e financeiras incidentes nas longas cadeias alimentares, como, por exemplo, aquelas derivadas dos preços de óleo e gás. Neste cenário mutante de poder global, a segurança alimentar tem papel central.
A Ucrânia e a Rússia são importantes produtores e exportadores de alimentos, em especial de grãos, com participação relevante no abastecimento de países de baixa e média renda, nos quais a questão de insegurança alimentar e fome tende a ser mais pronunciada. Sob a ótica do fornecimento de alimentos, a prolongação do conflito da guerra poderá ter graves consequências para países dependentes de importação de alimentos, mas não apenas eles, e não apenas na questão da oferta alimentar.
Precisamos entender o que é segurança alimentar, sua situação global, os efeitos da guerra na produção de alimentos, seus impactos nos países importadores, o aumento recorde de preços e, ainda que de forma preliminar, alguns efeitos do conflito para o Brasil.
A alimentação é um direito fundamental do ser humano, imprescindível para o alcance de seu bem-estar, e está prevista no Art. 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), como também em diversos tratados e documentos internacionais. O conceito de Segurança Alimentar está relacionado com o entendimento da alimentação como direito e pode ser definido, de acordo com a Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial de 1996, como o princípio que busca garantir o acesso físico, econômico, suficiente e nutritivo aos alimentos, a fim de assegurar uma vida ativa e saudável para todas as pessoas.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) destaca quatro dimensões componentes da segurança alimentar. A primeira é a disponibilidade física de comida, ou seja, a oferta de alimentos a qual é determinada pelo nível de produção de alimentos, níveis de estoque e comércio líquido. A segunda dimensão é o acesso aos alimentos. Quer dizer que, em algumas situações, os alimentos podem existir em quantidade suficiente, mas as pessoas podem não ter acesso a eles devido a questões de renda, despesas para chegar aos alimentos (dentre outras), mercados e preços. Além dessas duas questões iniciais, a dimensão de utilização de alimentos diz respeito a formas como o corpo humano aproveita os alimentos, ou seja, à nutrição. Alimentos adequados e de qualidade, nutritivos e diversos, além da distribuição intradomiciliar de alimentos são exemplos da chamada utilização. O quarto ponto é denominado estabilidade, ou seja, a constância na disponibilidade de alimentos ao longo do tempo – período de chuva ou seca, frio ou calor, por exemplo. Mas também pode haver escassez devido a instabilidades políticas ou fatores econômicos (desemprego, aumento de preços) que podem ter impacto no seu estado de segurança alimentar.
Discussões sobre segurança alimentar devem ainda levar em consideração o respeito às características culturais e regionais das sociedades, criando bases para que o direito a uma alimentação de qualidade e consequente bem-estar sejam protegidos. Esse aspecto cultural da alimentação está ligado a uma discussão mais ampla, a da soberania alimentar, pela qual as sociedades devem ter o direito e condições de exercer uma alimentação que reflita o desenvolvimento histórico da culinária local, e que garanta condições soberanas de produção, acesso, utilização e estabilidade.
Fome e desnutrição são dois fenômenos interligados. Obviamente, onde não há alimentos não há nutrição. Mas a disponibilidade de comida não garante boa nutrição. Entretanto, a fome é a dimensão mais perversa: é a total insegurança alimentar. Em muitos casos, ela somente pode ser atendida, ou amenizada, por meio de doações, pois não há como produzir alimentos localmente. O Programa Mundial de Alimentos (World Food Program), das Nações Unidas realiza anualmente um mapeamento global da fome. A Figura 1, a seguir, mostra o levantamento referente ao ano de 2020.
Figura 1 – Mapa da Fome 2020
Fonte: World Food Programme. Disponível em: <https://www.wfp.org/publications/hunger-map-2020>
A partir do Mapa da Fome de 2020 é possível constatar que o cenário da fome atinge sobretudo os países do Sul Global. O PMA utiliza o conceito de “undernourishment” ou desnutrição: a ingestão insuficiente ou a falta de absorção de nutrientes, como intermediário da condição “fome”. Os desnutridos são, em geral, magérrimos, esqueléticos. Por sua vez, a subnutrição refere-se ao consumo inadequado nutrientes. Um subnutrido pode ser magro ou obeso – no caso de ingerir constantemente alimentos sem valor nutricional adequado, como bolachas e sanduíches. Todo desnutrido é subnutrido, mas o oposto não se aplica, necessariamente. Na Figura 1, os tons laranja, vermelho e magenta indicam desnutrição.
Segundo o PMA, “se as tendências atuais continuarem, o número de pessoas famintas chegará a 840 milhões em 2030” (PMA, 2020), o que indica, segundo o Programa, que não houve redução significativa no número de pessoas em situação de insegurança alimentar desde 1990. Esse quadro mostrado na Figura 1, certamente terá uma piora em função do conflito na Ucrânia.
Impactos da guerra entre Rússia e Ucrânia na Segurança Alimentar Global
Rússia e Ucrânia – chamadas de ‘celeiro da Europa’ – são importantes produtores de alimentos e insumos agrícolas. A guerra entre os dois países compromete a produção e a exportação agrícola, com consequências sobre o quadro da segurança alimentar global .Ambos os países desempenham importante papel na exportação de grãos – trigo e milho, por exemplo -, que estão na base da alimentação mundial. De acordo com o último relatório sobre o mercado de alimentos global da FAO, entre 2017 e 2020, Rússia e Ucrânia foram responsáveis respectivamente por 10,97% e 11,49% das exportações de cereais e 22,56% e 10,29% das exportações de trigo. A Ucrânia possui também importante participação no mercado do milho, e é responsável por 15,7% das exportações entre 2017 e 2020. Além do milho, outro produto em que o país tem grande atuação no mercado internacional é o óleo de girassol, com mais de um terço do comércio global em 2021.
Além de serem consumidos in natura, óleo de girassol, milho e trigo são componentes presentes em diversos alimentos industrializados e em ração para animais. Assim, todos os elos das cadeias alimentares foram afetados pela variação brusca na produção e no comércio desses produtos, em função da guerra.
Figura 2 – Rússia e Ucrânia: participação no total das exportações globais, 2020
Fonte: International Trade Centre. Elaborado pelos autores.
Com a invasão russa ao seu vizinho, que já superou seu 50º dia, as exportações ucranianas ficaram estagnadas, afetando a oferta de alimentos nos países importadores, muitos dos quais atualmente têm insuficiência na produção de alimentos e/ou sequer os conseguem comprar nos mercados internacionais. Devido à guerra, agricultores também reduzem o tempo que passam em seus estabelecimentos rurais devido a questões de segurança – por exemplo, em resposta a um toque de recolher imposto. A redução da produção de alimentos na Ucrânia se traduz em exportações baixas ou nulas.
Além do impacto direto nas plantações da Ucrânia e Rússia, há outros fatores que afetam as atividades agrícolas, uma vez que os agricultores precisam de fertilizantes e combustíveis na produção de alimentos. Em primeiro lugar, a Rússia é responsável por 20% da exportação de gás natural no mercado global e 40% do suprimento da União Europeia. Ainda, o gás natural é matéria-prima para produção de fertilizantes nitrogenados, produtos muito exportados pela Rússia, junto com fertilizante de potássio. A Rússia também contribui com 15% e 17% do abastecimento desses fertilizantes no mundo, respectivamente. Além disso, os meios para transportar os insumos produzidos nos dois países seguem comprometidos devido ao fechamento aéreo da região, e principalmente, ao desencorajamento de tráfego de navios no Mar Negro, por causa dos riscos desse trajeto para embarcações, cargas e tripulantes. Dessa forma, milhares de toneladas de produtos estão impedidas de circular.
Outra reação gerada pelo conflito e que pode agravar a escassez de alimentos nos mercados globais é o protecionismo. Alguns governos estão tomando medidas para manter o abastecimento nacional de alimentos, elevando o déficit no comércio internacional, medida que provavelmente prolongará a inflação de alimentos. Hungria, Indonésia e Argentina estão no grupo de países que impuseram barreiras comerciais às exportações agrícolas, de trigo a óleo de cozinha, na tentativa de suprimir os preços domésticos e garantir o abastecimento local de alimentos. A Rússia somou-se a essa onda de protecionismo quando sinalizou planos para restringir o comércio de algumas matérias-primas. No caso da Ucrânia, um grande exportador de alimentos denominado MHP SE dedicou-se a fornecer ao exército ucraniano e a civis em cidades bombardeadas.
A diminuição da oferta dos alimentos, seja por destruição devido à guerra, embargos comerciais, protecionismo ou inseguranças logísticas, leva também ao aumento dos valores desses produtos ao redor do mundo, comprometendo ainda mais a segurança alimentar global – em especial nas suas dimensões de disponibilidade, acesso e estabilidade, principalmente em países dependentes da exportação dos insumos produzidos pela Rússia e Ucrânia.
Na semana passada, a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) alertou para o recorde dos preços de alimentos no mundo. O Índice de Preços de Alimentos da FAO atingiu uma média de 159,3 pontos em março, 12,6% acima de fevereiro, quando já havia atingido seu nível mais alto desde sua criação em 1990. Alimentos como trigo, milho e óleo vegetal subiram acentuadamente.
Impactos em países dependentes de alimentos
A princípio, quando falamos dos países dependentes é importante distingui-los em dois grandes grupos: países com maior capacidade econômica e países de menor capacidade econômica. Esse fator é importante pois impacta diretamente na capacidade de resposta dos países em relação à ruptura na cadeia de suprimentos vindos da Ucrânia e Rússia. Países da União Europeia e a China representam grandes importadores de milho ucraniano, por exemplo, mas possuem maior capacidade de adaptação (seja à ruptura na cadeia de suprimentos ou ao consequente aumento dos preços) e não são totalmente dependentes dos países envolvidos no conflito, tendo produções internas e também importando de outros países. Assim, esses países podem substituir a falta com importações de outros países – ainda que isso represente um custo mais alto.
No segundo grupo de países, porém, o cenário se inverte. Enquanto o grupo anterior de países possui produção interna de cereais e outras fontes de importações, países do Oriente Médio e do Norte da África dependem quase exclusivamente de importações para abastecer seus mercados internos – como o caso da Líbia, país no qual 90% do consumo interno de cereais é importado -, sendo a Ucrânia e a Rússia importantes fontes. A situação é ainda mais crítica em países como o Líbano e Iêmen, os quais já enfrentavam problemas prévios relacionados à insegurança alimentar. Logo, é evidente como, até mesmo em situações de crise, os impactos se propagam de forma diferente entre os países – uma questão diretamente relacionada à capacidade econômica de cada um, assim como ao perfil da produção doméstica de alimentos.
Figura 2 – Países com maior porcentagem na importação de trigo e milho provenientes da Rússia e da Ucrânia, 2010-2019, em %
Fonte: Food and Agriculture Organization of the United Nation – https://www.fao.org/faostat/en/#data/FBS
Além do comprometimento do abastecimento nos países exibidos na Figura 2, ocorre também que o suprimento de alimentos para doação em ações humanitárias está comprometido, pois uma parte significativa dessas doações era proveniente da produção da Rússia e da Ucrânia – não necessariamente doada por esses países, posto que o Programa Mundial de Alimentos também compra alimentos, com recursos financeiros de doação.
Deve-se notar, ainda, que os impactos globais da guerra à segurança alimentar se manifestam justamente no período em que a pandemia da SARS-CoV-2, ou do novo coronavírus, desestruturou diversas cadeias globais, incluindo as agrícolas – afetando em especial os pequenos produtores. Assim, trata-se de um efeito cumulativo de graves consequências em termos globais.
Impactos da guerra no Brasil
Nesta linha, o conflito entre Rússia e Ucrânia impactam diretamente diversos setores da economia brasileira. Como pontuado por Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), o aumento do custo de produção é um dos maiores impactos causados, dado que tal fator incide em toda a cadeia produtiva de alimentos.
O aumento do preço dos combustíveis já é uma realidade vivenciada pelos brasileiros. Como abordado anteriormente, a Rússia é uma importante produtora e exportadora de petróleo no mercado global e o conflito elevou o preço do barril para cerca de US$ 120, preço este que não era registrado desde 2014. Atualmente o preço de comercialização do barril está em cerca de US$ 107. Com isso, dada a necessidade do escoamento de produção através das rodovias brasileiras, o aumento do preço de tal commodity vem impactando o preço do produto final, assim como dos defensivos químicos e das embalagens necessárias para o processo.
Da mesma forma, o prato típico brasileiro não é mais o mesmo: a proteína animal vem desaparecendo da mesa das famílias. O aumento nos custos da ração animal subiu cerca de 5% desde o início do confronto no Leste Europeu. Os principais insumos utilizados, o milho e trigo, já tiveram seus preços elevados no mercado interno em 5% e 3%, respectivamente. Com isso, esse aumento dos custos é repassado para o consumidor final, que busca alternativas para tal cenário e está diminuindo a quantidade de alimentos em seu carrinho no mercado.
A Rússia é um importante parceiro comercial brasileiro no que se refere a fertilizantes, posto que dos 85% do total importado, 23% correspondem ao mercado russo. Com isso, teme-se que haverá falta deste produto no mercado nacional. Porém, como também apresenta Bruno Lucchi, o Brasil se coloca em posição de poder antecipar os problemas que a agropecuária brasileira poderá enfrentar, sendo que, diferentemente dos Estados Unidos e da Europa que iniciam plantio em abril e maio, o Brasil terá até outubro para abastecer seus estoques e buscar novos fornecedores.
Frente a esta realidade, Ana Kreter, pesquisadora associada ao Ipea, afirma que tais impactos sobre o custo de produção agropecuária brasileira fazem com que, a curto prazo, a produção brasileira não consiga substituir os insumos importados. Com isso, como afirma a pesquisadora, resta aos produtores o aumento do preço de custo e redução da margem de lucro ou a redução do uso de insumos importados e a queda na produtividade. De outro lado, esse cenário pode fortalecer a produção nacional, como no caso de bio insumos agrícolas (fertilizantes naturais), que podem substituir fertilizantes importados.
Sabendo que a diplomacia se faz com gestos, o posicionamento brasileiro de certa neutralidade para com a ofensiva russa coloca em dúvida a existência de objetivos não aclarados. Nesta linha, a ida de Bolsonaro à Rússia momentos antes da primeira ofensiva parece estar ligada à compra da Unidade de Fertilizantes Nitrogenados da Petrobrás em Três Lagoas (MS) pelo grupo russo Acron. A venda desta unidade faz parte do projeto da estatal de sair da produção de fertilizantes, aumentando a dependência brasileira do mercado internacional de fertilizantes. Nesse contexto, o Brasil ficou de fora da lista de países considerados hostis pelo governo russo.
Este cenário atual de conflito no Leste Europeu vem impactando a segurança alimentar em escala global, com efeitos em progressão. Caso a guerra se estenda para a primavera no hemisfério Norte, as consequências podem ser ainda mais severas, em especial para a Ucrânia, país dependente da produção agrícola. A Rússia deve estabelecer quotas de exportação de alimentos e fertilizantes, garantindo abastecimento doméstico com preços menos elevados, mas causando impacto internacional.
Impactos severos já estão sendo observados em diversos países, em especial aqueles dependentes da importação de alimentos. A ajuda alimentar internacional aponta a possibilidade de ocorrerem calamidades humanitárias em países como o Iêmen. Possivelmente, esse contexto deve privilegiar a expansão da alimentação industrializada, pelo fato de seus produtos – enlatados, por exemplo – terem maior tempo de vida e serem de distribuição mais fácil do que alimentos in natura. A produção dos Estados Unidos e de países europeus deve sair privilegiada.
Como a comida está na base da formação de preços das economias, estima-se que os efeitos inflacionários da guerra seguirão por anos adiante, em paralelo e como reflexo dos preços dos combustíveis. Em geral, cadeias globais estão desreguladas e em reconfiguração, mais dependentes da financeirização de todas as suas etapas – da terra ao prato.
No Brasil, os efeitos podem ser díspares. Haverá impacto inflacionário e possível dificuldade de abastecimento nacional com trigo e milho. Mas alguns setores podem sair beneficiados, como os bioinsumos e frangos, posto que a Ucrânia era um produtor destacado neste mercado. Mas, sem dúvida, haverá mais fome no mundo. No Brasil, somente um governo que dê prioridade à agenda da segurança alimentar poderá dar algum equilíbrio a esse desarranjo. Não se espera do governo Bolsonaro ações nesse sentido, uma vez que este governo realizou e continua realizando uma política de amplo desmonte das estruturas de combate à fome no Brasil.