04 de outubro de 2022
Por Alan Anelli, Lucas Rocha, Luís Gustavo Branco, Rodolfo Vaz Oliveira Aguiar e Olympio Barbanti Jr. (Foto: Pixabay)
A ratificação do Protocolo de Nagoia, aguardada há anos, foi realizada por Bolsonaro em 2021, mas longe de ter preocupação ambientalista, o ato reflete os interesses do agronegócio e da indústria sobre repartição de benefícios e critérios para regulamentação da Informação de Sequência Genética Digital
Avesso à agenda ambiental, Jair Bolsonaro ratificou em março de 2021 o Protocolo de Nagoia, acordo internacional suplementar à Convenção da Diversidade Biológica (CDB) que fora aprovada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida como Rio-92. O Protocolo, que regulamenta o “Acesso a Recursos Genéticos e à Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Advindos de sua Utilização” (Access and Benefit Sharing, na designação em língua inglesa), foi aprovado em Nagoia, Japão, durante reunião da CDB realizada no ano de 2010. No entanto, somente após a ratificação de Bolsonaro no ano passado o Brasil passou a fazer parte do Protocolo.
A adesão brasileira era demandada pelo movimento ambientalista há uma década, mas sua ratificação por um governo que “passa a boiada” sugere a chegada de ambições políticas e financeiras do agronegócio e do grande empresariado à agenda da biodiversidade. Compreender o ato de Bolsonaro é fundamental para distinguir as forças que devem pressionar o uso econômico da biodiversidade, qualquer que seja o resultado das eleições que elegerão o próximo presidente da República, e irão compor as forças políticas no Congresso Nacional para a próxima legislatura.
A atual rodada de negociações da CDB (COP15) ocorre em duas etapas, após ser adiada em 2020 devido à pandemia. A primeira parte foi realizada de forma virtual em outubro de 2021. A segunda rodada terá lugar em Montreal, no Canadá, de 7 a 19 de dezembro de 2022. O tema de fundo da pauta é a massiva perda global de biodiversidade, como ocorreu na Amazônia brasileira sob Bolsonaro. A Conferência de Biodiversidade da ONU tem por objetivo geral de acordar um novo conjunto de metas para a proteção da natureza na próxima década e garantir que até 2050 o objetivo de viver e produzir em harmonia com a natureza seja alcançado.
Especificamente, a COP 15 analisará a implementação dos protocolos da CDB referentes à repartição justa e equitativa dos benefícios do uso da natureza e do transporte, manuseio e rotulagem seguros de Organismos Vivos Modificados. E aqui reside o interesse dos atores do agronegócio e da indústria, que demandam formalização de regras para poderem se apropriar dos benefícios do uso econômico e também da conservação dos recursos genéticos da biodiversidade. O Protocolo de Nagoia, segundo a Fiocruz, “estabelece as diretrizes para as relações comerciais entre o país provedor de recursos genéticos e aquele que vai utilizá-los, abrangendo pontos como pagamento pela utilização dos recursos (algo semelhante a “royalties“), o estabelecimento de joint ventures, assim como o direito à transferência de tecnologias e capacitação”.
Embora seja peça central nas atuais discussões, o Protocolo de Nagoia é um dos oito acordos internacionais que foram incluídos na CDB. Veja os demais sete acordos no Box 1, abaixo. Para compreender a cronologia da CBD e do Protocolo de Nagoia veja o Box 2, na sequência.
No que diz respeito ao terceiro objetivo da CDB, ou seja, a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização sustentável dos recursos genéticos da biodiversidade, dois pontos se destacam: a necessidade de definição de quais recursos são “nacionais”, e portanto, os estados têm soberania sobre os mesmos, e como coletar e tornar disponível informações genéticas.
Sobre o primeiro tópico, um ponto central reside no fato de que tanto a Convenção quanto o Protocolo asseguram que os países têm soberania sobre seus recursos genéticos, ou patrimônio genético, cujo acesso por outros Estados somente pode ser possível mediante o consentimento prévio pelo país soberano. Como consequência, tem-se a necessidade de definir se Informações de Sequências Genéticas Digitais (sigla DSI em Inglês) devem ser repartidas livremente. Atualmente, o compartilhamento ocorre devido a um pacto não formal de colaboração entre cientistas, em especial quando é necessário acelerar as pesquisas, assim como ocorreu no caso da Covid-19. Entretanto, enquanto países em desenvolvimento (provedores de recursos genéticos) entendem que a definição de “recursos genéticos” inclui também DSI, países industrializados (que detêm tecnologia, mas não biodiversidade) argumentam o contrário.
“O DSI tem estado no centro das atenções ultimamente”, diz a revista científica Science (The Wire), “porque algumas das restrições que se aplicam ao material genético real – como um microrganismo, um espécime biológico ou uma planta – não se aplicam ao DSI. E os especialistas estão divididos sobre se deveria ser.”
A legislação brasileira engloba DSI dentro do conceito de patrimônio genético da biodiversidade e prevê repartição de benefícios pelo seu uso econômico e conhecimentos tradicionais associados. A defesa do Brasil nas negociações sobre o Protocolo de Nagoia, que estabelece regras internacionais pelo uso econômico de recursos genéticos da biodiversidade, é que “como houve utilização de uma amostra física para acessar esse tipo de informação, sua aplicação subsequente e comercialização deve ser repartida de forma justa e equitativa”. Pela Lei Brasileira da Biodiversidade, quando houver possibilidade de identificação de atores no contexto de Acesso e Repartição de Benefícios (ABS, em Inglês) deverá ser recolhido ao Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) a quantia correspondente a 1% da receita líquida anual (exceto no caso de redução de até 0,1% por acordo setorial), segundo o Portal da Indústria. Embora a porcentagem seja baixa, os valores envolvidos são muito elevados.
Nesse contexto, é relevante compreender a posição dos setores econômicos com maior voz na adesão recente do Brasil feita por Bolsonaro. Desta forma, este texto buscou investigar algumas questões relacionadas ao financiamento para a conservação da biodiversidade, além das posições do agronegócio e da indústria sobre o uso de recursos. Com base na análise destas posições, o artigo apresenta conclusões refletindo as perspectivas da política externa ambiental brasileira, o futuro das negociações sobre conservação da biodiversidade e controle sobre informações genéticas digitais.
Problemas no financiamento em prol da biodiversidade
A implementação do Protocolo de Nagoia depende da disposição de recursos financeiros para a proteção da biodiversidade. O artigo 25 do Protocolo prevê que as partes devem considerar as diferentes situações de países com menor desenvolvimento relativo e a situação de pequenos Estados insulares de forma a viabilizar a disponibilização dos recursos necessários.
O relatório sobre o financiamento da conservação da biodiversidade global do think-tank Paulson Institute, em parceria com a organização The Nature Conservancy e o centro de pesquisa colaborativa Cornell Atkinson Center for Sustainability, apresenta diagnóstico sobre a necessidade de financiamento. Em que pese ser assumido pelos autores do relatório uma visão da natureza enquanto “capital natural”, alvo de muitas críticas na literatura da economia ecológica e de diversas perspectivas, e notadamente de reconhecer a incomensurabilidade de muitos dos componentes que compõem esse patrimônio, estima-se um volume extremamente valioso da biodiversidade e, consequentemente, da sua conservação. Para se ter uma ideia, a estimativa é que o déficit desse financiamento à conservação, para o ano de 2019, esteja entre US $598 bilhões e US $824 bilhões por ano.
Propõe-se no relatório que a próxima COP-15 incorpore um amplo espectro de mecanismos não tradicionais para o financiamento, assumindo como prioridade o estímulo para obter recursos do setor privado, que constituiria a maior fonte de financiamento disponível. Infelizmente, o relatório deixa de trazer alternativas no âmbito da política fiscal dos países, visto que essa poderia cumprir um papel de indução da iniciativa privada a partir dos riscos assumidos pelo setor público. Esse próprio aspecto está presente de forma implícita na necessidade reconhecida pelo relatório de reformar a estrutura de subsídios danosos à biodiversidade (majoritariamente direcionadas aos setores agrícola, pesqueiro e florestal).
Um exemplo de argumentação sobre as vantagens em combinar diferentes políticas fiscais verdes – como taxação de carbono, subsídios e investimentos – está presente no trabalho de Dafermos e Nikolaidi (2019). Esforços conjuntos nesse sentido também são debatidos nas diversas propostas de Green New Deal (Novo Acordo Verde) para financiar uma descarbonização que seja capaz de proteger a biodiversidade. Além disso, há demandas relacionadas a reformas no sistema financeiro internacional para que os países possam ter soberania monetária para poder investir seus próprios recursos na conservação da biodiversidade.
Posições do agronegócio
Apesar do papel importante para a aprovação do Protocolo de Nagoia na COP 10, o Brasil não esteve entre os 50 países que haviam ratificado o Protocolo em 2014. Foi apenas em 2021 que o país ratificou o Protocolo. Segundo Carlos Alfredo Joly, esse atraso pode ser explicado pela posição do agronegócio brasileiro, visto que o setor foi radicalmente contrário ao mesmo por temer que tal ratificação resultasse em prejuízos para a exploração de espécies exóticas na nossa agricultura (soja, café, laranja, cana-de-açúcar), na pecuária, na silvicultura e na aquicultura. Ainda segundo o autor, o principal motivo pela rejeição do agronegócio brasileiro à ratificação do protocolo referia-se ao fato de que o texto poderia criar dificuldades para que instituições do Brasil acessem recursos genéticos da soja (originária da China) para fins de pesquisa e melhoramento genético vegetal.
Bráulio Dias, que atuou como secretário-executivo da CDB, enfatiza que há fundamento nessa preocupação, dado que uma interpretação mais ampla levaria à aplicação do princípio de repartição de benefícios de tal forma que o Brasil teria que pagar a países nos quais (provavelmente) tiveram origem plantas e animais utilizadas(os) aqui para produção de commodities: como a soja (China), o café (Etiópia) e a cana-de-açúcar (Nova Guiné). Dias explica que o setor agropecuário brasileiro exigiu primeiro a publicação de uma lei nacional sobre o tema, considerando nacionais todas as espécies e depois uma garantia de que as regras do Protocolo de Nagoia não seriam retroativas. Assim, esse foi o pano de fundo da aprovação da Lei da Biodiversidade, na qual define-se que o patrimônio genético do país é “bem de uso comum do povo” e pode ser definido como aquele “encontrado em condições in situ, inclusive as espécies domesticadas e populações espontâneas, ou mantido em condições ex situ, desde que encontrado em condições in situ no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial e na zona econômica exclusiva”
Apenas após acordo entre a Frente Parlamentar da Agropecuária e a Frente Parlamentar Ambientalista é que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal aprovaram em 2020 a ratificação do Protocolo. Em 4 de março de 2021 o Governo Brasileiro depositou junto à Organização das Nações Unidas (ONU) seu instrumento de ratificação, passando a ser o 130º país-membro do Protocolo de Nagoia. Com a entrada em vigor da ratificação do Protocolo, em 2 de junho de 2021, o Brasil precisará fazer adequação da Lei de Biodiversidade ao acordo multilateral, uma vez que a lei de 2015 disciplina a atuação do país enquanto provedor, mas não como usuário de recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais de outros países.
De um lado, a ratificação brasileira do Protocolo de Nagoia neste momento pode ser compreendida como reflexo da tentativa de melhorar a imagem do agronegócio brasileiro nos mercados internacionais, uma vez que o país tem sido visto como um vilão ambiental após a ascensão de Bolsonaro à Presidência da República. De outro lado, para a Confederação da Agricultura Pecuária do Brasil (CNA), a entrada do Brasil no Protocolo de Nagoia é importante tanto para o desenvolvimento do setor de bioeconomia do país quanto para a defesa estratégica do setor nos órgãos multilaterais, procurando evitar possíveis taxações retroativas de espécies exóticas produzidas pela agropecuária brasileira – sendo que aproximadamente 90% da produção brasileira é baseada em vegetais e animais que não têm origem no território nacional.
Esse posicionamento da CNA reflete a ironia da presença brasileira no Protocolo. Como apontado pelo Instituto Socioambiental (ISA), os negociadores brasileiros têm feito de tudo para impedir avanços no âmbito da Convenção da Biodiversidade. Mas a ratificação do Protocolo visa colocar os negociadores para dentro do tratado para que eles possam defender os interesses do agronegócio brasileiro. Assim, apesar de o Brasil ser o país mais biodiverso do mundo e, por isso, ter o dever moral de liderar a implementação do Protocolo, o que se vê na prática é que a entrada tardia do país no acordo pode mais atrapalhar do que realmente ajudar na efetivação global do Protocolo.
Para Dias, quem saiu prejudicado pela demora na ratificação do Protocolo pelo Brasil foram as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, que poderiam ter melhoras na qualidade de vida por meio da apropriação de pagamentos (“royalties”) oriundos do consentimento pela utilização do conhecimento ancestral para, por exemplo, o desenvolvimento de novos medicamentos, entre outros produtos ligados à bioprospecção. Além do mais, também chama a atenção que o país ratifique um Protocolo que procura reconhecer o direito dos povos indígenas e das comunidades locais de consentir com o acesso ao seu conhecimento e de receber a repartição de benefícios devida, em um momento de grave retrocesso dos direitos humanos desses povos com o aumento da violência e de invasões de seus territórios e quando o Brasil volta a bater recordes seguidos de desmatamento na Amazônia.
Em geral, a despeito do potencial que a adesão ao Protocolo de Nagoia poderia significar para o avanço de uma bioeconomia de base comunitária na forma proposta por muitas iniciativas, ao criar uma economia menos predatória e mais social, o que se verifica é a defesa ao modelo agroexportador de commodities a qualquer custo. Vale ressaltar que nas negociações da CDB, todas as decisões devem ser tomadas por consenso. Assim, a negativa de um único país já é suficiente para travar o protocolo. Resta saber qual será a posição brasileira.
Posições do setor industrial
A ratificação do Protocolo de Nagoia reflete um recente alinhamento da CNI com parte da temática ambiental, em especial o uso econômico da biodiversidade. Essa mesma instituição, por exemplo, publicou uma carta pública apresentando sua perspectiva positiva sobre a ratificação do referido Protocolo. A justificativa dada é que a ratificação possibilitaria “conhecer e cumprir as obrigações estabelecidas pelo país provedor de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais a eles associados sempre que desejar acessá-los”. De outro lado, a indústria estrangeira também deve cumprir as obrigações estabelecidas na legislação brasileira sobre acesso aos recursos genéticos da biodiversidade do país. O Protocolo tem o potencial de eliminar eventuais assimetrias regulatórias que atualmente existam entre nações” (CNI, 2021).
Por mais que esta carta aponte o argumento da importância da conservação e uso sustentável da biodiversidade, questiona-se quais são as reais pretensões da CNI em apoiar o Protocolo de Nagoia? Qual é a real pretensão de futuro desta Instituição permeada por relações de poder? Tendo tal perspectiva como plano de fundo, ao se voltar para 2013, quando o conceito da bioeconomia passa a ganhar proeminência no Brasil, a publicação do relatório “Bioeconomia: uma agenda para o Brasil” se deu através de uma parceria com a CNI.
Conectado a isto, como observamos acima sobre o relatório sobre financiamento da conservação de biodiversidade publicado pelo Instituto Paulson, a visão econômica tradicional observa a biodiversidade como um estoque de capital, o qual se insere na lógica de acumulação. Nesta linha, o capital natural só é considerado pelo mercado financeiro quando se é possível medi-lo por meio de critérios e instrumentos utilizados pelo sistema econômico atual.
Desta forma, entende-se que a CNI observa a imensa biodiversidade brasileira como um possível ativo a ser explorado, seja pela indústria farmacêutica, posto que cerca de um terço de seus produtos possuem como origem fontes naturais, pela indústria energética, como o caso dos biocombustíveis, ou pelo agronegócio, principal rótulo da economia nacional. São exemplos da chamada “nova” bioeconomia, já analisada no Opeb a respeito da Plataforma para o Biofuturo, em relação às perspectivas para um desenvolvimento autônomo, e como uma (possível?) oportunidade socioambiental para comunidades pobres e alternativa ao desmatamento.
Dividir o setor industrial da agricultura não é algo realista no Brasil desde os anos 1950, quando se inseriu o conceito de agribusiness através de uma perspectiva integradora dos três setores clássicos da economia (primário, secundário e terciário) no projeto de desenvolvimento nacional, como aponta Caio Pompeia (2021). O agro é tech, o agro é pop, mas o agro também é industrial, principalmente pelas lentes da CNA e da CNI sobre a bioeconomia.
Sendo assim, a CNI ao observar a biodiversidade como um estoque de capital, vê o Protocolo de Nagoia como uma possível forma de expandir seus objetivos e sua visão de futuro sobre a rica biodiversidade nacional, através do prisma da bioeconomia. Porém, a lente econômica foca somente no lucro e apaga do seu campo de visão os impactos negativos causados no meio ambiente. “[…] para cada contribuição da natureza que pode ser medida e imputada um valor em dólares, há muitas mais que não podem” (Instituto Paulson, 2020). A proteção à biodiversidade deve estar para além da lente econômica, dado que sua complexidade não tem preço.
Nesse sentido, as negociações sobre DSI terão papel elemento central da próxima COP da Biodiversidade, em dezembro de 2022, por constituir o repositório de informações que fará o conjunto da CDB ter um papel mais social e de repartição de benefícios, ou de concentração de renda nas mãos do agronegócio e da indústria. Dentre os possíveis empregos da DSI, segundo a CNI, estão o “desenvolvimento de vacinas e fármacos; biologia sintética; pesquisa sobre ecossistemas; identificação e controle de pragas agrícolas; reparação de defeitos genéticos; melhoramento de animais; melhoramento de plantas e segurança alimentar; luta contra comércio ilegal; identificação de espécies não conhecidas, e desenvolvimento de biocombustíveis e bioquímicos.
Considerações finais
As perspectivas sobre uma mudança ou não da posição ambiental brasileira, considerando o atual contexto de eleições presidenciais, deixam o cenário muito incerto a respeito da posição brasileira nas discussões do Protocolo de Nagoia, em especial sobre as condições de repartição de benefícios (ABS). Uma renovada postura ativa no âmbito da diplomacia ambiental pode ser uma oportunidade para o Brasil retomar uma posição de maior influência nos organismos multilaterais, além de representar uma possibilidade de proposição de um diálogo qualificado e referenciado em uma pauta socioambiental com os setores produtivos nacionais. De outro lado, a manutenção da posição do atual governo de Bolsonaro lança sérias dúvidas sobre a apropriação privada de ganhos derivados do acesso a recursos genéticos, bem como sobre o acesso às, ou controle privado das informações de sequência genética digital.
O tema é de grande preocupação para organizações e movimentos sociais brasileiros, conforme já noticiado em 2018 pelo blog Terra de Direitos: “A digitalização de sequência genética de organismos, espécies vegetais e animais em um “banco” digital pode gerar uma série de consequências como a ampliação do desenvolvimento de organismos artificiais e sintéticos, a apropriação privada do patrimônio genético dos povos e a dificuldade de repartição dos benefícios de biologias sintéticas que derivam de dados de espécies desenvolvidas por povos indígenas e comunidades tradicionais”. Estima-se que pode haver uma “privatização da biodiversidade e dos conhecimentos associados, minando a soberania alimentar mundial” apropriação privada do conhecimento indígena e de comunidades rurais, ou a não repartição de benefícios a eles, além da “possibilidade de aumento dos eventos de biopirataria em função das técnicas de digitalização de sequências genéticas”, dentre outros impactos negativos.
Dadas as características específicas do tema, de difícil compreensão, elevado conteúdo científico e de negociação bastante complexa, sem uma postura democrática e socialmente inclusiva da diplomacia brasileira, dificilmente haverá uma solução socialmente justa nas negociações deste aspecto central da Convenção da Diversidade Biológica.
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BOX 1 – Acordos internacionais que compõem a CDB (além do Protocolo de Nagoia)
Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança: acordo internacional sobre biossegurança, que entrou em vigor em 2001. O Brasil confirmou sua adesão em 2003 e o protocolo começou a vigorar no país em fevereiro de 2004. Atualmente, mais de 130 países integram o acordo.
Diretrizes de Bonn: destinam-se a auxiliar os governos na adoção de medidas para reger o acesso e a repartição justa e equitativa de benefícios pelo uso sustentável de recursos genéticos da biodiversidade. Foram adotadas pela Conferência das Partes da CDB em 2002, realizada em Bonn, na Alemanha. As diretrizes de Bonn foram precursoras do Protocolo de Nagoia.
Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura: destinam-se a auxiliar os governos na adoção de medidas para reger o acesso e a repartição justa e equitativa de benefícios pelo uso sustentável de recursos genéticos da biodiversidade. Foram adotadas pela Conferência das Partes da CDB em 2002, realizada em Bonn, na Alemanha. As diretrizes de Bonn foram precursoras do Protocolo de Nagoia.
Princípios de Addis Abeba para a Utilização Sustentável da Biodiversidade: consistem em 14 princípios práticos, além de diretrizes e instrumentos para garantir que o uso dos componentes da biodiversidade não levará ao declínio da diversidade biológica a longo prazo.
Diretrizes para a Prevenção, Controle e Erradicação das Espécies Exóticas Invasoras: abarcam quinze princípios para combate às espécies exóticas invasoras, que são consideradas as principais responsáveis pela perda de biodiversidade em todo mundo e custam às economias centenas de bilhões de dólares.
Princípios e Diretrizes da Abordagem Ecossistêmica para a Gestão da Biodiversidade: trata-se de uma estratégia para a gestão integrada da terra, da água e dos recursos vivos para promover o uso sustentável, a conservação e a repartição equitativa dos benefícios oriundos da biodiversidade.
Diretrizes para o Turismo Sustentável e a Biodiversidade: trata-se de diretrizes internacionais para o desenvolvimento do turismo sustentável em ecossistemas e habitats terrestres, marinhos e costeiros vulneráveis de grande importância para a diversidade biológica e áreas protegidas, incluindo ecossistemas ribeirinhos e montanhosos frágeis.
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BOX 2 – Cronologia da CBD e do Protocolo de Nagoia
Em 1992, a CDB foi acordada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro e conhecida como Rio-92. Trata-se do principal tratado internacional sobre biodiversidade, servindo de referência fundamental para os demais acordos ambientais. Seus objetivos são a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável e a repartição justa de seus recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais envolvidos.
Em função da CDB, atores públicos e privados começaram a surgir e firmar suas posições. Em 1997, é criado o CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), visando a promoção do desenvolvimento sustentável por meio da articulação entre negócios, setor público e sociedade civil. No ano 2000, é assinado o Protocolo de Cartagena, documento internacional para biossegurança que estabelece condições para a proteção biológica nas dimensões do transporte, liberação dos organismos vivos geneticamente modificados (OGMs), manipulação e outras dimensões. O Protocolo de Cartagena entrou em vigor no Brasil somente em 2004. A COP-8 (8ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica da ONU) realizada em 2006 na cidade de Curitiba, foi marcada pela introdução da participação do setor privado no campo das políticas relativas à biodiversidade.
No ano seguinte, é lançada a TEEB (The Economics of Ecosystems and Biodiversity), iniciativa internacional que visa mensurar a perda econômica em decorrência da destruição da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, mirando em ações empresariais sustentáveis que redundem em maiores lucros.Novos e importantes desenvolvimentos ocorreram em 2010, quando é aprovado o Protocolo de Nagoia e, durante a COP-10, são lançadas as 20 Metas de Aichi, parte do Plano Estratégico para a Biodiversidade visando a redução da perda da biodiversidade no período de 2011-2020.
Em 2011, é criada a GPBB (sigla em inglês para Parceria Global de Negócios e Biodiversidade), visando mais práticas sustentáveis no meio empresarial. No ano seguinte, é estabelecida a IPBES (sigla em inglês para Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), organização intergovernamental visando melhorar a relação entre ciência e política nas questões da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos. Com a Iniciativa Brasileira de Negócios e Biodiversidade, que tem por objetivo erguer uma ponte de diálogo entre o setor empresarial e a CDB, impulsionando a cooperação no cenário internacional no setor ambiental.
Em 2015, é promulgada a Lei da Biodiversidade (lei n. 13.123) que introduziu regras quanto ao acesso e uso do patrimônio genético e do conhecimento tradicional, e criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o SISGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético) e o FNRB (Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Em 2016, é lançado o Protocolo de Capital Natural com o intuito de alinhar a tomada de decisão das organizações em relação a fins ecológicos, visando mensurar e avaliar as oportunidades, impactos e riscos das ações e as dependências de negócios que envolvem o capital natural. Em 2019, é articulada a coalizão BfN (Business for Nature) reunindo organizações empresariais e da conservação em torno da sustentabilidade na sociedade, na economia e nos negócios. No mesmo ano, o CEBDS (Compromisso Empresarial Brasileiro para Biodiversidade) é lançado com o objetivo de ressaltar a importância da biodiversidade e serviços ecossistêmicos para as empresas.
Em 2020, é divulgada a GBO5 (Global Biodiversity Outlook) relatório que avaliou que nenhuma das Metas de Aichi foram cumpridas em sua totalidade por nenhum dos países signatários. Em 2021, é lançada a TNFD (sigla em inglês para Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas à Natureza) proporcionando às instituições financeiras e empresas uma análise dos possíveis riscos ambientais gerados por suas ações com o intuito de torná-las mais sustentáveis. O Marco Global de Biodiversidade pós-2020 visa dar continuidade ao cumprimento das Metas de Aichi, bem como estimular a humanidade a se adequar a uma relação harmônica com a natureza até 2050 a partir de uma série de metas para 2030 e quatro objetivos para 2050.
Um tema que está ausente, em que pese os referidos esforços de adequação, é a o de reparações históricas a respeito da dívida ecológica legada pelos países exportadores de matérias-primas. Essa dívida é representada pela não compensação de externalidades ambientais geradas local ou globalmente, além do uso desproporcional do espaço e dos serviços ecossistêmicos por parte dos países desenvolvidos sem que se fosse feito o pagamento devido e adequado, afinal muito da biodiversidade se perdeu por conta da exploração econômica das potências coloniais em um passado não tão distante (MARTINEZ-ALIER, 2002)
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Referências
DAFERMOS, Y.; NIKOLAIDI, M. Fiscal Policy and Ecological Sustainability: A Post-Keynesian Perspective. Frontiers of Heterodox Macroeconomics, n. May, p. 277–322, 2019.
DEUTZ, A. et al. Financiando a Conservação da Natureza: Eliminando a lacuna no financiamento da conservação da biodiversidade global. The Paulson Institute, The Nature Conservancy e the Cornell Atkinson Center for Sustainability, 2020.
ELLIOTT, L. et al. The Green New Deal: a Bill to make it happen. London, 2019.
MARTÍNEZ-ALIER, J. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2002 [2007].
ROSARIO, R. P. G. et al. Análise dos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Protocolo de Cartagena e do Protocolo de Nagoia. In: Diplomacia Ambiental. São Paulo: Edgard Blücher, 2022. p. 158–253.