02 de novembro de 2022
Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Felipe Teixeira, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Gustavo Mendes de Almeida, Henrique Mario de Souza, Isabella Brandão Alcantara, Júlia Cardoso de Magalhães, Laura do Espírito Santo Silva, Vinicius Silva Santos, Vitor Cristian Maciel Gomes e Gilberto Maringoni (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
A volta do ex-presidente, agora lastreado por uma amplíssima frente política, se propõe a fazer mudanças significativas em várias políticas de Estado. Quais poderiam ser suas principais diretrizes para a América Latina?
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro em 30 de outubro faz das eleições presidenciais brasileiras a mais importante disputa política mundial neste 2022. Aqui estavam frente a frente não apenas dois projetos opostos, mas os destinos da extrema-direita global.
Organizações dessa vertente agora detêm o poder na Itália, na Hungria e na Polônia e integram o governo Sueco. Isso para não falar da onda reacionária que se manifesta na Inglaterra, na França – que tem a Frente Nacional como segunda força nas eleições presidenciais – , na Espanha e em Portugal. Nesse quadro, a vitória bolsonarista daria gás ao extremismo conservador num país com grande peso político no Sul global, por características como tamanho do PIB, extensão territorial, população, mercado interno e outras.
Apesar dessas marcas positivas, o Brasil nos últimos seis anos retraiu sua capacidade de intervenção no cenário externo, abdicou de organizações internacionais como a União das Nações Sulamericanas (Unasul), retraiu sua presença no BRICS e no Mercosul e perdeu importância internacional. A expressão síntese disso foi proferida pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020, ao se vangloriar do país ter se isolado a ponto de ocupar a posição de um pária global.
Guinada na política externa
Desde o golpe parlamentar de 2016, os governos que sucederam Dilma Rousseff não utilizaram a política externa como um instrumento de desenvolvimento para o Brasil, fazendo o uso da mesma, em grande medida, para acenos ideológicos, principalmente em direção aos EUA. Neste contexto, os interesses do Brasil foram deixados de lado, situação materializada pelo enfraquecimento da integração com os países da América Latina e seus organismos articuladores.
A retomada de uma política externa altiva e ativa de novo tipo reside fundamentalmente na adoção de diretrizes pautadas na soberania, no desenvolvimento e na democracia. É urgente que o Brasil abandone, de uma vez por todas, o caráter subalterno de sua inserção global. É importante que as relações com outros Estados seja estabelecida de acordo com os princípios orientadores da Constituição Federal de 1988, como a independência nacional, a defesa dos direitos humanos, o respeito à autodeterminação dos povos, bem como a defesa da paz e da não-intervenção.
É tarefa do próximo governo retirar o Brasil do ostracismo e da irrelevância em diversos âmbitos e devolver-lhe a condição de importante player internacional ao país.
Políticas continentais
A política externa dos dois primeiros governos Lula (2003-2010) caracterizou-se por sua postura desenvolvimentista e universalista. Naquele período, Brasília buscou fortalecer suas relações com o Sul global. O país teve uma aproximação intensa com a África, a Ásia e os países árabes, consolidando a universalização da política externa brasileira e o desenvolvimento da cooperação Sul-Sul. O resultado dessa aproximação diplomática ficou evidente no incremento do comércio e da realização de seminários e palestras e a participação de empresas brasileiras no plano externo.
Vamos traçar aqui algumas das linhas mestras a serem traçadas especificamente nas relações com os países da América Latina. Entre outras, o novo governo poderia se voltar para:
1. A reconstrução do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como ferramenta de política externa.
2. O fortalecimento do Mercosul como instância política, econômica e especificamente comercial, abrindo espaço para a participação das sociedades civis de cada país em instâncias específicas.
3. O fortalecimento da Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac).
4. A reconstrução da União das Nações Sul-americanas (Unasul).
5. Retomar tratativas da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).
6. A criação de uma pauta convergente para questões do clima e do meio ambiente.
7. Uma integração das políticas sanitárias da região, que concentrou, proporcionalmente, os mais altos índices de infecção e morte ao longo da pandemia de Covid-19.
8. Reatamento das relações diplomáticas com a Venezuela. Não é possível que o Brasil siga na situação de virtual rompimento institucional com um vizinho que possui 2.200 quilômetros de fronteira;
Vamos detalhar algumas dessas propostas.
As ferramentas da integração
Em seu discurso de vitória, na noite de 30 de outubro, o presidente Lula ressaltou que “O Brasil não vai mais ser pária da sociedade, o Brasil vai ser protagonista internacional”.
Uma das ferramentas mais importantes para que o país volte a desempenhar um papel relevante é a volta do BNDES como instrumento de política externa. Nessa perspectiva, a instituição possibilitou a internacionalização de empresas brasileiras e impulsionou suas atividades além-fronteiras, o que abriu novas possibilidades de cooperação e de negócios.
Esvaziado e descapitalizado pelos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, será necessário empreender uma verdadeira reconstrução do banco, para que volte a ser um impulsionador do desenvolvimento, mesmo atuando em atividades externas. Tais ações podem geram efeitos multiplicadores em toda a cadeia produtiva interna. O Brasil poderá, com isso, recuperar a importância de suas empresas no exterior.
Empreiteiras brasileiras, alavancadas pelo BNDES, chegaram a vender serviços a mais de 50 países. No entanto, a partir da Operação Lava Jato, as punições por denúncias de corrupção afetaram não apenas os dirigentes, mas as próprias empresas. Houve um verdadeiro desmantelamento das grandes corporações de engenharia civil, nos últimos anos, com a perda de dezenas de milhares de empregos.
De início, o investimento poderá ser direcionado a empresas que já estão consolidadas externamente, que podem gerar divisas. De imediato, duas delas já têm presença significativa no exterior: Embraer e Petrobras. Num segundo momento, com a retomada das empresas de engenharia, outras iniciativas são cabíveis.
Além de tais políticas, o Banco oficial pode voltar a impulsionar projetos no âmbito da IIRSA, que completou 20 anos em 2020. No cenário propício do fim dos anos 1990, foi lançada, sob a liderança do Brasil, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento e a integração econômica da América do Sul por meio da superação de entraves logísticos e de infraestrutura física. Em 2009, foi incorporada ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) da Unasul.
O desmantelamento institucional da entidade, em especial no governo Bolsonaro, ajuda a compreender o enfraquecimento da coordenação por trás dos itens da carteira da IIRSA. Com projetos impulsionados pelo BNDES, no âmbito da política de internacionalização de grandes empreiteiras brasileiras, permitiram a execução de muitos projetos. Hoje, entretanto, a IIRSA tem um futuro incerto: o Cosiplan deixou de funcionar como conselho em 2019 e a queda do preço das commodities reduziu a capacidade de grandes financiamentos em infraestrutura.
A reestruturação das instituições multilaterais
Propostas de integração regional podem ser materializadas através de iniciativas econômicas, ou de mecanismos de cooperação, desenvolvimento local e resolução de conflitos. A partir da redemocratização (1985), e em especial a partir da virada do século, o Brasil se mostrou um forte entusiasta de tais projetos.
O sentido da integração centrou-se na criação de instituições e políticas comuns e num movimento de cooperação que tentava ir além da esfera comercial e econômica, incorporando temas como o fortalecimento da soberania e da autonomia dos países. Ao longo da primeira década do século foram criadas instituições como a Unasul e a Celac, mecanismos que visam a promoção de espaços de diálogo e iniciativas para a redução das desigualdades regionais. Mas há problemas:
O Mercosul enfrenta fortes divergências internas e desafios políticos, motivados por diferentes fatores dos quais se destacam as múltiplas crises econômicas que acometem os membros desde a criação do bloco até os dias atuais.
A ascensão das extrema-direita ao poder no Brasil representou um retrocesso na integração latino-americana, com a defesa da flexibilização das regras do Mercosul, a saída do país da Unasul, o afastamento da Celac e na criação do chamado Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), malograda iniciativa regional promovida por governos de direita (em especial os de Maurício Macri e Sebastián Piñera).
Qualquer projeto de política externa brasileira focado na colaboração entre países vizinhos precisa fortalecer o Mercosul enquanto instância política, econômica e comercial, além de contar com a participação das sociedades civis e sociais de cada país. O investimento político na Celac é também fundamental. A organização, criada em 2010, agrupa quase todos os países da OEA, com exceção dos Estados Unidos e do Canadá. Ela se propõe a assumir duas linhas de ação: cooperação para o desenvolvimento e concertação política entre seus membros. A Unasul, fundada em 2008, composta por doze países, conta com apenas quatro atualmente.
Nenhuma dessas organizações foi montada com viés político e ideológico determinado, mas buscaram abrigar países e não governos, o que lhes facultava caráter amplo e plural.
A disputa ambiental
A questão climática e ambiental deve voltar com peso na formulação de política externa, até pelas características naturais dos países. A Amazônia possui a floresta tropical mais extensa do mundo e atravessa nove países (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). O território brasileiro abrange sua maior parte (61,8% do bioma), mas é, proporcionalmente, o que tem menor território protegido: apenas 42,2%, divididos em espaços indígenas (TIs) e áreas naturais protegidas (ANPs).
O ponto de partida para uma política externa democrática para o setor pode ser uma ação articulada dos governos para reconstruir ou fortalecer instrumentos de monitoramento, fiscalização e preservação ambiental. Com normas claras e integradas de preservação ambiental, o Brasil pode negociar e interagir com seus vizinhos, buscando ações convergentes.
As iniciativas citadas no presente artigo representam um leque de possibilidades que trazem luz a uma política externa capaz de contrapor os tempos de isolamento enfrentado pelo Brasil nos últimos anos, com diretrizes que reconheçam a importância dos países da região. As políticas voltadas para o continente devem ser amplas e plurais, envolvendo agendas que não se limitem, como já mencionado, aos interesses econômico-financeiros imediatos. Devem prever uma integração política, social e econômica para os países latino-americanos.
O Brasil concentra quase 40% do PIB e cerca de 25% da população da América Latina tem a chance de superar uma triste e destrutiva quadra de sua história, vivida nos últimos seis anos.