A Venezuela é uma ditadura?

28 de junho de 2023


Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Felipe Teixeira da Silva, Gustavo Mendes de Almeida, Henrique Mario de Souza e Gilberto Maringoni (Ricardo Stuckert/PR)


A visita de Nicolás Maduro a Brasília, durante a reunião de chefes de Estado da América do Sul, em 30 de maio, suscitou uma série de críticas ao governo Lula, por parte da mídia, da oposição e até de apoiadores do presidente. A crise política na Venezuela e o tratamento que Maduro recebeu no Brasil foram os principais pontos levantados, e deu destaque à questão: afinal, a Venezuela é uma ditadura?


Após quase oito anos sem visitar o Brasil, Nicolás Maduro foi convidado pelo presidente Lula para participar da Cúpula de presidentes da América do Sul. Apesar de terem sido convidados dirigentes de outros nove países da região, Lula optou por realizar uma reunião individual com Maduro, no dia anterior à realização da cúpula. Foi o que bastou para os principais órgãos de imprensa do país veicularem artigos que questionavam a relação entre os dois líderes, buscando colocar em dúvida a legitimidade do presidente venezuelano. 


Integração regional


Diante da emergência climática e das crises ambiental e econômica internacional, Lula tem dado atenção especial à integração da América do Sul. Com a Venezuela não seria diferente, ainda mais se tratando do país com a maior reserva de petróleo do mundo e com o qual o Brasil compartilha a área de um bioma de extrema importância, a Amazônia. 


A aversão das empresas de comunicação a governos que  de alguma forma questionam a supremacia de Washington na região promove uma confusão sobre os conceitos de autoritarismo, liberdade e democracia. A Venezuela não é um caso isolado. Quando Lula foi recebido na China, em abril, com o objetivo de estreitar relações comerciais, grandes veículos de mídia logo questionaram as características do regime. Pautas como a busca por uma alternativa ao dólar, neutralidade no conflito Ucrânia e Rússia e a construção de relações comerciais variadas foram condenadas pelos veículos nacionais como riscos para o Brasil no plano externo.


Após o encontro, Lula foi acusado de apoiar um regime antidemocrático em um gesto de integração bilateral. No caso da Venezuela, a recepção de Lula a Maduro também foi alvo de críticas por parte de alguns parlamentares. O senador Jorge Seif (PL-SC) apresentou um voto de repúdio ao presidente da República por receber “um reconhecido ditador”. O vereador Dr. Daniel (PSC, de Manaus, criticou a atitude de Lula e disse que ele deveria se preocupar mais com os problemas internos do Brasil. 


A cúpula dos presidentes da América do Sul, idealizada por Fernando Henrique Cardoso em 2000, teve como objetivo fortalecer a integração regional e abordar temas como desenvolvimento sustentável, cooperação energética, infraestrutura e promover uma integração sanitária. Além de Maduro, participaram os presidentes de Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Suriname e Uruguai, além de um representante do governo peruano, visto que a atual presidente do Peru, Dina Boluarte, esteve impossibilitada de viajar até Brasília por conta da forte crise política e social no país. Curiosamente, o foco principal das coberturas midiáticas foi a presença de Maduro, ignorando o contexto mais amplo da reunião com as demais lideranças.


Democracia sob ataque


As acusações de autoritarismo e falta de democracia na Venezuela são amplas e variadas. Em novembro de 2021, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, iniciou uma investigação sobre possíveis crimes contra a humanidade cometidos no país. A investigação foi aberta após a Missão de Averiguação de Fatos das Nações Unidas (Missão) ter encontrado evidências de que crimes dessa ordem foram cometidos como parte de uma política de repressão do Estado contra opositores. O Fórum Penal, uma rede de advogados de defesa criminal que atua pro bono, registrou 245 presos políticos até outubro de 2022; alguns desses presos políticos foram mantidos em prisão preventiva por mais de três anos, mesmo após reformas do Código Penal que estabeleceram limites de tempo para essa modalidade de detenção.


Além disso, desde 2014, aproximadamente 7,32 milhões de venezuelanos fugiram do país, sendo que cerca de 6,14 milhões buscaram refúgio em países da América Latina e do Caribe. No entanto, a falta de uma estratégia regional coordenada tem deixado muitos cidadãos em condições precárias, sem acesso a proteções legais adequadas ou ao status de refugiado. 


O país vive de fato uma grave crise econômica desde pelo menos 2014, quando uma baixa histórica nos preços internacionais do petróleo levou os preços a menos de US$ 30 o barril. Detalhe: o produto representa mais de 95% do valor anual das exportações. A produção desabou de 3,1 milhões de barris diários em 2010 para 367 mil barris dez anos depois, de acordo com a Opep. O resultado foi uma queda do PIB de 65% entre 2014 e 2020, algo devastador para as condições sociais da população. Na década anterior, os preços oscilavam acima de US 100 e atualmente encontram-se ao redor de US$ 70. 

A situação se agravou com seguidas investidas dos governos Obama e Trump contra o país. A Venezuela foi alvo de mais de 150 medidas de sanções econômicas: 62 emitidas pela Casa Branca, nove pela União Europeia, cinco do Canadá e duas do Reino Unido.

Não bastasse, em 23 de fevereiro de 2019, o governo estadunidense viu condições de montar uma ofensiva para um golpe de Estado a partir da Colômbia. Maduro tomara posse em seu segundo mandato no mês anterior, após uma eleição contestada pela oposição. Agreguem-se aqui dois fatores. Primeiro, o presidente da Assembléia Nacional, Juán Guaidó, até então desconhecido do grande público, autoproclamara-se presidente. Segundo, o Brasil – que tem 2,1 mil quilômetros de fronteira – acabara de empossar um presidente de extrema-direita. Sem apoio interno na Venezuela, a intentona não prosperou. Uma nova investida, a partir da suposta traição de membros do alto comando das Forças Armadas, resultou em rotundo fracasso. 


Há controvérsias sobre os esforços que Hugo Chávez empreendeu para  manter um regime democrático em seu país, entre 1999 e 2013. Entretanto, durante os mandatos do ex-presidente, a Venezuela realizou eleições variadas com periodicidade anual. Esses processos foram acompanhadaos por observadores de inúmeros países, em busca de possíveis fraudes que pudessem deslegitimar o governo venezuelano. No lugar, encontraram o melhor sistema eleitoral do mundo, segundo o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter – que, em 2012, coordenava um centro de monitoramento democrático internacional.


Chávez transformou a Venezuela no país menos desigual da América Latina, à exceção de Cuba, alcançando um índice Gini de 0,394 entre 2002 e 2010. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) classificou o modelo venezuelano de combate à fome como um “exemplo mundial” a ser seguido em 2014.  


Apesar da ampla participação popular nas mudanças que levaram ao controle do petróleo por parte do Estado, à redução da pobreza e ao enfrentamento do imperialismo, o país não se tornou uma experiência socialista, como propaga o governo. 


Hoje, a Venezuela importa quase todos os produtos manufaturados de que precisa. Já que a produção nacional se dedica, quase exclusivamente, à extração e refino de petróleo. Isso explica, entre outras coisas, porque o país foi lançado a uma crise econômica tão profunda na última década, logo após a queda do preço do barril de petróleo no mercado internacional.

Num país escaldado pelo trauma de um golpe contra Chávez em 2002, a soma de ataques e sobressaltos sofridos ao longo das últimas duas décadas resulta numa reação oficial nem sempre pautada por medidas plenamente democráticas.

Com a volta da comercialização de petróleo com os EUA, o país tem conseguido aumentar sua produção e exibe um cresciemnto de 17% do PIB em 2022.


A geopolítica do petróleo


A Venezuela é detentora da maior reserva de petróleo comprovada do planeta. De acordo com dados do Observatório de Complexidade Econômica, até o ano de 2018 os Estados Unidos eram os principais parceiros comerciais da Venezuela. As exportações para o país chegaram a 70% do valor total em 2004 e hoje totalizam pouco mais de 9% e a primazia atual cabe à China, com vendas. Em abril de 2019, Donald Trump aplicou mais uma de suas estratégias para sufocar o governo Maduro: um embargo ao petróleo venezuelano, proibindo que empresas americanas operacionalizassem ou adquirissem o óleo proveniente do país. A partir deste momento, a exportação de petróleo caiu sobremaneira, e as crises política, econômica e social do país se acentuaram. 


A partir da deflagração da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o petróleo russo deixou de ser uma opção para muitos países ocidentalizados. Segundo o Relatório anual de energia da British Petroleum (BP) elaborado em 2022, os russos foram os maiores exportadores mundiais de petróleo e seus derivados em 2021, com cerca de 12,3% das vendas operações totais. Dada a importância da Rússia no setor de energia e as retaliações econômicas postas contra Moscou engendradas pela disputa geopolítica na Europa, as potências ocidentais precisaram recorrer a novos mercados para garantir o suprimento de petróleo e gás natural, demanda absorvida em parte por países do mundo arábe. 


Em novembro de 2022, o Departamento do Tesouro dos EUA anunciou uma licença que permitiu o retorno das operações da Chevron na Venezuela – a gigante estadunidense do ramo energético estava impossibilitada de operacionalizar no país por causa das sanções contra Caracas. A negociação envolveu os EUA, o governo Maduro e a oposição. Essa operação ocorre de maneira mista, onde a Chevron se coloca como sócia minoritária da estatal venezuelana PDVSA, estando permitida a exportar petróleo proveniente das quatro plantas incluídas no acordo para os EUA. 


Existe uma correlação interessante entre países ricos em petróleo e seus respectivos regimes políticos. A partir do levantamento feito pela British Petroleum em 2022, podemos verificar quais são os países com as maiores reservas de petróleo comprovadas. Oito dos dez  com as maiores reservas de petróleo do mundo possuem, ou possuíam até pouco tempo, governos nacionalistas, alguns com tendências autoritárias – destes, cinco são ou foram até pouco tempo rivais geopolíticos dos EUA no sistema internacional: Venezuela, Irã, Iraque, Rússia e Líbia.

Points scored

Elaboração própria com base em dados do relatório da BP.


Esses cinco encontram um aspecto em comum: viveram experiências de resistência ao imperialismo estadunidense e o controle do petróleo pelo Estado esteve no centro da questão, o que ensejou profundas mudanças sociais. O antagonismo em relação aos EUA só não existe mais no Iraque e na Líbia, após a queda de Saddam Hussein (2003) e Muammar Kadafi (2011), respectivamente assassinados por coalizões lideradas por Washington. Hoje vigoram regimes débeis, apoiados pela Casa Branca, que vêm enfraquecendo cada vez mais a soberania desses Estados. A Venezuela passou a fazer parte desse grupo a partir da vitória de Hugo Chávez no final da década de 1990 e, especialmente, após a tentativa de golpe de Estado contra ele em 2002. 


A constituição de um governo sólido, muitas vezes personificado em uma pessoa, é tida como uma estratégia para a defesa de um recurso natural em sociedades de pouca tradição democrática. As críticas a Maduro, Putin ou ao regime dos aiatolás iranianos são válidas, desde que se condene também as violações de direitos humanos praticadas por figuras como Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita,  e Benjamin Netanyahu, de Israel. Caso contrário, a retórica ocidental não está preocupada em outra coisa a não ser seu acúmulo de poder.  


A necessidade de uma visão ponderada 


O petróleo é um aspecto central da Venezuela. No ano de 2002, o Golpe de Estado que visava derrubar Hugo Chávez foi orquestrado por executivos de petrolíferas multinacionais em articulação com a CIA, que viam seus interesses ameaçados pelo presidente que buscava devolver a soberania energética em seu país através de uma via nacionalista. Consequentemente, do ponto de vista brasileiro é necessária uma visão ponderada dos fatos. Um dos pilares da política externa é o pragmatismo. Desde que tomou posse, Lula já se reuniu com diversas lideranças políticas, de diferentes espectros políticos e orientações. Ao mesmo tempo em que cultiva boas relações com Xi Jinping, a ida a Washington para se reunir com Joe Biden foi a primeira que Lula fez para além da América do Sul depois de empossado. Mesmo tendo uma boa relação com lideranças da esquerda europeia, como o chefe de governo da Espanha, Pedro Sánchez, Lula também se reuniu em junho com a ultra-direitista Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália. Assim como em outras áreas, a política externa do Brasil é algo que deve ser reconstruído neste governo, e isso só será possível através de um olhar plural sobre o mundo.

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