A Guerra na Ucrânia e as Munições Cluster

25 de julho de 2023

Flávio Rocha, Anna Bezerra, Aycha Sleiman, Diego Jatobá, Erika Silva, Felipe Lelli, Flávia Souza, Heloísa Domingues, Julia Lamberti, Lais Surcin, Lucas Ayarroio, Roberto Silva, Tarcízio Melo e Vinícius Bueno (Imagem: Reprodução/U.S. Air Force)


O envio de bombas de fragmentação pelos EUA à Ucrânia causou aumento das tensões na região. Essas armas, proibidas em diversos países, representam sérios riscos para civis e combatentes, devido ao lançamento em grande quantidade e falta de controle preciso. Líderes mundiais se opuseram, mas os EUA seguiram com o envio como parte de assistência militar à Ucrânia. O Brasil, também produtor e exportador dessas bombas, não aderiu à Convenção sobre Munições Cluster, o que levanta questões humanitárias devido ao potencial dano indiscriminado mesmo após os conflitos. A discussão internacional sobre a proibição dessas munições enfrenta obstáculos financeiros e geopolíticos.


Tensões crescem após anúncio dos EUA sobre envio de bombas de fragmentação à Ucrânia


Embora proibidas em 120 países, as bombas cluster estão sendo enviadas pelos Estados Unidos para a Ucrânia no contexto do conflito com a Rússia. Vale ressaltar que o Brasil é um produtor e exportador dessas bombas para outras regiões que passam por enfrentamento bélico, mas não há informações sobre o envio de bombas brasileiras à Ucrânia. Essas armas violam o direito internacional dos conflitos armados, representando um alto risco para civis e combatentes, pois são lançadas em grande quantidade, sem controle preciso, podendo atingir uma ampla área devido as condições climáticas e ventos.


Esses explosivos podem falhar durante o lançamento, permanecendo espalhadas em solo por décadas após o final de um conflito até que a área seja descontaminada. De acordo com Cristian Wittmann, professor de direito da Unipampa e membro do conselho do Ican, uma convenção internacional de 2008 proibiu a fabricação e o uso desses armamentos nos países que são signatários.


O Brasil não assinou o acordo de proibição e se recusou a discutir e aderir a ele. Atualmente, três empresas brasileiras produzem esses explosivos, que foram vendidos para vários países, incluindo Irã, Iraque, Malásia, Arábia Saudita e Zimbábue. Essas bombas brasileiras foram utilizadas pela Arábia Saudita no Iêmen entre 2016 e 2017. O Brasil sempre teve a perspectiva de não ratificar a convenção desde o início das negociações, devido ao fato de ser um produtor e exportador dessas armas.


A Otan aprovou o uso de bombas cluster pela Ucrânia, mas líderes mundiais expressaram oposição. O Reino Unido e o Canadá criticaram o uso desses artefatos após os Estados Unidos anunciarem o envio dessas munições para a Ucrânia. O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, afirmou que o Reino Unido “desencoraja” o uso desse tipo de arma e destacou que estão fornecendo tanques e armamentos de longo alcance para Kiev. O governo canadense também condenou o uso de bombas de fragmentação, expressando seus esforços para proibir o uso de armas que se tornam de uso indiscriminado, como as minas antipessoais. A convenção que proíbe essas munições foi assinada em 2008, mas não foi ratificada pelos Estados Unidos, Rússia e Ucrânia. Organizações relatam que a maioria das vítimas dessas bombas são civis, incluindo crianças.


A ministra da Defesa da Espanha, Margarita Robles, expressou sua oposição ao envio dessas bombas para a Ucrânia. Ela afirmou que certas armas não devem ser entregues sob nenhuma circunstância e que a legítima defesa da Ucrânia não deve ser realizada com esses artefatos.

A ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, juntou-se à oposição internacional ao envio de munições de fragmentação para a Ucrânia. Ela afirmou que a Alemanha, como membro da Convenção sobre Munições Cluster (CCM) e do acordo de Oslo, proíbe o uso, armazenamento, produção e transferência dessas munições. Baerbock ressaltou: “Para nós, que somos um estado-membro da CCM, aplica-se o acordo de Oslo“. Sua declaração ocorreu durante uma conferência sobre o clima em Viena, onde enfatizou o compromisso da Alemanha com a proibição dessas armas.


E apesar das críticas de países aliados, os EUA anunciaram, no dia 13 de julho, o envio das munições, como parte de um pacote norte-americano de assistência militar para os ucranianos de US$ 800 milhões. O presidente Joe Biden justificou a decisão, afirmando que Kiev “precisa” dessas munições, embora reconheça que tenha sido uma escolha difícil. O conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, enfatizou que a Ucrânia se comprometeu a utilizar as bombas com cuidado.


No último dia 20, as tropas ucranianas começaram a usar munições cluster fornecidas pelos EUA, conforme relatado por duas autoridades estadunidenses e outra fonte com informações sobre o assunto. Os EUA estão aguardando atualizações dos militares ucranianos sobre a eficácia dessas munições no campo de batalha. De acordo com as autoridades ucranianas, citadas pelo jornal Washington Post, os artefatos explosivos foram oficialmente usados pelas forças de Kiev no sudeste do país.


A Rússia prometeu retaliação, com o presidente Vladimir Putin afirmando que o país possui estoques dessas munições e considera usá-las como resposta à contra-ofensiva dos Ucraniamos. Moscou já usou munições cluster várias vezes na Ucrânia, incluindo em áreas civis, de acordo com relatórios do Grupo da Sociedade Civil Monitor de Munições Cluster, tanto a Ucrânia quanto a Rússia têm utilizado esse tipo de munição em suas operações militares. 


Considerações sobre as munições cluster


Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, “as munições cluster são lançadas por aviões, peças de artilharia ou por mísseis. Elas liberam submunições explosivas sobre uma grande área. Dependendo do modelo, o número de submunições pode variar de algumas dúzias até 600. A zona alvo sobre as quais são lançadas pode exceder os trinta mil metros quadrados. A maioria das submunições cai aleatoriamente e espera-se que elas explodam no momento do impacto, quando atingem o solo. Muitos militares consideram estas armas importantes para o uso contra múltiplos alvos dispersos sobre uma grande área (ex: tanques, veículos blindados, militares, etc.)”. Além do grave perigo causado entre a população e os contendores no campo de batalha, o emprego dessas munições também causam a morte e mutilação entre a população depois de terminada a guerra.


Visando evitar mortes e sequelas, foi criada a Convenção sobre Munições Cluster, que é um tratado internacional adotado em 30 de maio de 2008, assinado em 03 de dezembro de 2008, entrando em vigor em 01 de agosto de 2010, que “proíbe todo uso, armazenamento, produção e transferência de munições cluster. Seus artigos dizem respeito à destruição de estoques, limpeza de áreas contaminadas, assistência às vitimas, apresentação de relatórios de transparência e adoção de legislação doméstica.” Segundo seu site, “nasceu de uma determinação coletiva para abordar as consequências humanitárias e danos inaceitáveis a civis causados por munições cluster”. 123 estados são comprometidos com os objetivos da convenção, 111 são parte e 12 são signatários.


Apesar do tratado, as munições cluster continuam sendo fabricadas, vendidas e empregadas em conflitos bélicos em todo o mundo, como no Afeganistão, quando foram lançadas pelos Estados Unidos sobre aldeias e na guerra por procuração entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Federação Russa em território ucraniano, onde fazem parte de outro pacote de envio de armas pelos estadunidenses. Por sua vez, a Federação Russa, através do Presidente Wladimir Putin, informou que seu país tem um “estoque suficientes de bombas de cluster e ameaçou tomar medidas recíprocas se a Ucrânia usar as armas contra as tropas da Rússia”.


No Brasil, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, rejeitou o projeto de lei 3228/12, que proíbe a produção e exportação de bombas de fragmentação, quando o relator deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), afirmou que “por trás dos argumentos humanitários estão os interesses comerciais de empresas da Alemanha, país que capitaneou a Convenção sobre Munições Cluster e produz alguns tipos de munição cluster não proibidas pela convenção”. O Brasil, por meio da Avibras, é produtor e exportador dessa munição.


Apesar do apelo humanitário, os aspectos financeiros, militares e até geopolíticos regem a produção, exportação e emprego das munições cluster. Além disso, na guerra, qualquer armamento que possa ampliar a quantidade de baixas ou dificultar a progressão do inimigo no terreno, será usado. Assim, dificilmente, as munições cluster serão realmente banidas.


Por que o Brasil não assinou a Convenção sobre Munições Cluster? 


Frente à uma política externa direcionada ao crescimento do Brasil perante o olhar internacional, o governo Lula (2003-2010) optou por basear as ações domésticas visando o fortalecimento das bases nacionais, nesse caso o setor de defesa. Nesse cenário, envoltos pelos ideais da Estratégia Nacional de Defesa (END), que tinha como um de seus pilares o desenvolvimento da indústria bélica, o que se viu fora uma maneira de se posicionar enquanto exportadores de armamentos, dentre esses, as bombas clusters. Em primeiro momento, a fabricação desse tipo de equipamento bélico se deu a partir de três indústrias brasileiras, Ares Aeroespacial, Target Engenharia e a Avibras, sendo essa, atualmente, a única representante no país, contando com o parque industrial de outras quatorze indústrias, sendo de sua maioria voltada à produção civil. 


Pela ótica dos Direitos Humanos, o posicionamento do Brasil frente à produção e exportação desse tipo de arma é visto como um desrespeito a pauta da segurança humanitária, isso porque as características da bomba cluster fazem dela uma ameaça para além dos limites de guerra. Isso se dá pelo fato de poder atingir, a longo prazo, a segurança de civis, visto que para além da falta de precisão do alvo, a depender das condições do solo, esse armamento não explodirá de imediato, podendo construir um campo minado em regiões fora da zona de guerra. Esse cenário faz com que o país está no mesmo grupo de Ucrania, Rússia, índia e China, ou isto é, no grupo dos dos atores estatais que  não são vinculantes à Convenção sobre Munições Cluster (2008).


Apesar do cenário que se contrapõe aos ideais defendidos no Direito Internacional Humanitário, o Brasil manteve seu posicionamento nesses 15 anos de Convenção, tendo como barreira argumentativa, a falta de alternativas de tecnologia industrial bélica que pudesse substituir a produção das bombas clusters, se debruçando sobre a falta de recursos à pesquisa no setor. Uma crítica realizada pelo governo brasileiro à Convenção é a ausência de um período de realocação de investimentos, a fim de poder dar continuidade ao desenvolvimento da defesa nacional, contribuindo assim com o distanciamento de países subdesenvolvidos. Em uma tentativa de parecer zelar pelo Direito Humanitário, segundo o então Ministro das Relações Exteriores Santiago Irazabal Mourão, há o compromisso no não uso dessas bombas em áreas urbanas e, caso utilize, em prestar atendimento às vítimas e se comprometer com a limpeza da área. Entretanto, como exportador desse artifício, não há como garantir que seus compradores também assim o façam, isso se exemplifica no uso dessas bombas no Iêmen pela Arábia Saudita, em que 2 dos 18 ataques realizados se deram, com fabricação brasileira, perto de escolas, e, apesar das tentativas da Avibras em desvincular as consequências da produção, tanto a empresa, como, principalmente, o país, ligam se diretamente ao resultado final de seu produto, no caso de bombas, as mortes.

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