05 de outubro de 2023
Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes e Henrique Mario de Souza (Imagem: UN/Cia Pak)
No dia 22 de setembro, durante seu pronunciamento na Assembleia Geral da ONU, o Primeiro-Ministro haitiano, Ariel Henry, reafirmou seu pedido por suporte internacional às forças de segurança de seu país. A proposta de intervenção no Haiti tem gerado atrito entre os países membros da ONU e coincide com o momento em que o Brasil assume a presidência do Conselho de Segurança do órgão. Para compreender a situação do país é essencial explorar as raízes desta crise e as intrincadas interações que moldaram sua trajetória.
Um ano atrás, o premiê Ariel Henry solicitou ajuda da ONU e da comunidade internacional para conter gangues armadas que tem ameaçado a população haitiana, logo após grupos criminosos bloquearem importantes terminais de combustível na capital Porto Príncipe. Após meses de negociação e desentendimento entre os países membros do órgão, foi aprovada, nos primeiros dias de outubro, uma proposta de intervenção no país. No mesmo momento em que o Brasil assume a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU. A China será a próxima a ocupar o posto, no mês de novembro.
A proposta, com duração de um ano, inclui o envio de militares para garantir a segurança e o funcionamento de serviços básicos no país e tem como liderança o Quênia. Países, como Rússia, China e Brasil, foram contra a intervenção militar e consideraram que a contribuição internacional deveria se ater às causas da crise e incentivar o desenvolvimento do Haiti. A população civil, por sua vez, condena a proposta e alega que missões de paz anteriores não levaram à melhora da qualidade de vida e que os problemas não se restringem às violências cometidas pelas gangues, mas a projetos políticos excludentes e antidemocráticos.
Mais de dez pessoas morreram por dia, em média, no Haiti, neste ano. Ao mesmo tempo, o estreito de Darién, conhecido como a “selva da morte”, foi o caminho de mais de 400 mil migrantes com destino aos EUA, quase o dobro do que foi registrado em 2022. A rota é uma das mais importantes da região e está localizada entre a Colômbia e o Panamá. A maioria dessas pessoas vem da Venezuela e do Haiti.
O primeiro-ministro Ariel Henry assumiu a liderança do país em julho de 2021, após o assassinato do último presidente eleito, Jovenel Moïse. Nesse mesmo ano haveria eleições presidenciais, mas, até o momento, ainda não há data para que elas ocorram. Por meio de um pacto entre o primeiro-ministro e a oposição, decidiu-se manter o governo interino até o ano de 2023. A última eleição do país foi em 2019, quando a população escolheu deputados e senadores. Hoje, o país carece de representantes eleitos.
O governo de Jovenel Moïse e a crise
O mandato presidencial de Jovenel Moïse, que começou em 2017, foi caracterizado por uma série de desafios e controvérsias. Sua ascensão ao poder foi marcada por alegações de corrupção e irregularidades nas eleições, o que gerou desconfiança e agitação política desde o início de seu governo. No entanto, a crise de representatividade no Haiti vai além de Moïse. A baixa taxa de votantes nas eleições e os frequentes protestos contra o governo refletiam uma profunda desconexão entre o governo e a população.
A tentativa de Moïse de estender seu mandato, considerada inconstitucional, agravou ainda mais a instabilidade e levou a maiores demonstrações de insatisfação popular por todo o país. Em meio a essa turbulência política, Moïse propôs a realização de um referendo constitucional, uma medida vista com ceticismo e hostilidade por muitos haitianos.
Em julho de 2021, o governo foi abruptamente interrompido pelo chocante assassinato do presidente. Esse evento, cujas circunstâncias e responsáveis ainda estão sendo investigados, lançou o país em uma nova espiral de incerteza e violência. A ascensão ao poder do primeiro-ministro Ariel Henry trouxe esperanças de estabilização, mas os desafios a serem enfrentados são formidáveis.
A violência generalizada no Haiti é uma realidade dolorosa. Gangues armadas controlam partes da capital, Porto Príncipe, e contribuem para um aumento alarmante nos homicídios, sequestros e violência de gênero. As eleições também foram afetadas, com gangues intimidando eleitores e influenciando o processo político, minando ainda mais a democracia já enfraquecida.
O Brasil e a Missão de Paz no Haiti
O Haiti é um desses cenários complexos que parecem exigir ação internacional. Recentemente, a urgência por uma nova missão intervencionista no país caribenho notabilizou-se pelo discurso do primeiro-ministro haitiano na Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro. Trouxe à tona, também, uma série de considerações delicadas para o Brasil, tanto em termos de política interna quanto de compromissos internacionais. De modo a explorar as dinâmicas e dilemas envolvendo a recusa do governo brasileiro em enviar tropas ao Haiti, deve-se jogar luz a eventos e figuras que desempenharam papéis-chave no contexto da missão de paz anterior.
O Brasil assumiu um papel de protagonismo na MINUSTAH – a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2004 -, e foi a principal força militar no Haiti de 2004 a 2017. Ademais, a maioria dos demais países latinos também se envolveram militarmente na missão, com exceção de Cuba, que decidiu contribuir com o envio de médicos, e Venezuela, que ofereceu ajuda através do setor de combustíveis.
Em relação a atuação dos militares no país caribenho, é preciso discutir os impactos negativos das ações dos agentes de paz das Nações Unidas, principalmente quando consideramos o envolvimento desses agentes em casos de violência sexual, na repressão de manifestações civis, na interferência em processos eleitorais, e no abuso de autoridade. De acordo com dados da Associated Press, foram registradas mais de 2 mil denúncias de violência sexual cometidos por membros da missão – entre estes, 300 envolviam crianças. Ademais, ao menos 134 dos agentes de paz da missão se envolveram em escândalos de abuso sexual. Além disso, entre 2005 e 2006 pelo menos 8 mil haitianos foram mortos – sendo que uma grande parcela dessas vítimas eram apoiadoras do antigo governo.
Em 2010, após o terremoto que vitimou mais de 200 mil pessoas, o Haiti enfrentou um problema inédito em sua já conturbada história: a epidemia de cólera, que gerou mais de 700 mil infectados e 30 mil mortes no país. Para efeitos de comparação, desde o início da pandemia de COVID-19 até julho de 2023, o número de casos registrados de coronavírus no país latino se encontra na casa dos 34 mil, ocasionando aproximadamente 860 mortes. A epidemia de cólera consiste em mais um dos legados negativos da MINUSTAH, uma vez que sua origem foi atribuída aos agentes de paz das Nações Unidas, como resultado da poluição no Rio Artibonite, um dos mais importantes do Haiti.
Finalmente, em 15 de Outubro de 2017, a operação foi encerrada, sob o argumento de que o país se encontrava em um contexto político estável e que a missão havia colaborado com a promoção dos direitos humanos no Haiti. Ao comentar sobre o cumprimento da missão, o General brasileiro Ajax Porto Pinheiro, comandante das forças armadas das Nações Unidas no Haiti, afirmou que “Nós estamos saindo na hora certa. Nós ajudamos o Haiti a alçar rumos mais altos. Eu costumo dizer que é como se nós tivéssemos treinado juntos. Nós e eles preparamos o avião para decolar. Eles vão descolar agora. Nós partimos tristes porque a missão está se encerrando. É um duplo sentimento de tristeza e, ao mesmo tempo, de felicidade por ter cumprido a missão que nos foi delegada pelas Nações Unidas para nós que somos peacekeepers”.
Desde o fim da missão internacional da ONU no Haiti, em 2017, o país experimenta essa escalada da violência e o turbulento cenário político, resultando em uma perigosa desestabilização. A necessidade urgente de uma nova missão de paz evidenciou-se com a proeminência do assunto frente ao Conselho de Segurança da ONU. Não é surpresa que o governo brasileiro, no entanto, principal líder da missão anterior, tenha se recusado a participar deste esforço.
O mal-estar entre o governo e parte das Forças Armadas já vinha sendo notado desde o início do governo Lula, mas ganhou uma nova dimensão com as revelações da delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro. Este depoimento sugeriu que o ex-presidente teria discutido a possibilidade de um golpe militar com altos escalões das Forças Armadas, gerando um clima interno de incerteza e tensão. O governo acredita, então, não ser este o momento apropriado para discutir a empregabilidade das tropas nacionais em território estrangeiro, até que a situação interna esteja completamente elucidada.
Um outro ponto notável de todo esse cenário, porém, que influenciou a recusa em participar da missão de paz haitiana é a presença de ex-comandantes da MINUSTAH, no governo Bolsonaro. Figuras proeminentes do bolsonarismo, como Augusto Heleno, Fernando Azevedo e Silva, Tarcísio de Freitas e Carlos Alberto dos Santos Cruz, todos com experiência na MINUSTAH, desempenharam papéis cruciais no governo brasileiro.
Esse vínculo direto entre os líderes da controversa missão anterior e a atual administração levanta questões sobre o impacto das experiências no Haiti nas políticas e estratégias do governo em relação a operações de paz e à situação no Haiti. Essa conexão também pode ter desempenhado um papel no ceticismo do governo brasileiro em relação ao envolvimento em uma nova missão de paz.
Desafios da migração haitiana no Brasil
Após o devastador terremoto de 2010, o Haiti enfrentou uma crise humanitária sem precedentes. Milhares de haitianos, desesperados por condições para reestruturação de suas vidas, começaram a buscar na migração a única alternativa. O Brasil, com sua então relativa estabilidade política e econômica e recente relação desenvolvida pela MINUSTAH, tornou-se um destino atraente para esses migrantes em busca de segurança e oportunidades.
O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão responsável por avaliar as solicitações de refúgio, passou a analisar os pedidos dos haitianos. No entanto, foi quando surgiu um dilema fundamental. A legislação brasileira de refúgio, regida pela Lei nº 9.474/1997, define um refugiado como alguém que saiu de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, ou devido a grave e generalizada violação de direitos humanos. Muitos haitianos, portanto, não se encaixavam estritamente nesses critérios, pois suas motivações para migrar eram, em grande parte, de natureza econômica e em resposta ao recente desastre natural.
É importante ressaltar que, com as mudanças climáticas em pauta, o reconhecimento da condição de refúgio por situações desencadeadas por desastres naturais e degradação ambiental que afetem a permanência e sobrevivência de populações inteiras em seus territórios, ainda é uma discussão recente no âmbito do Direito Internacional, portanto não foi considerada como pretexto. Isso resultou, então, na negação de milhares de pedidos de refúgio por parte do Conare, levando a um debate público sobre a adequação desses critérios.
Portanto, o Conare direciona essas solicitações ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Em resposta às negativas de refúgio, o CNIg, após minuciosa avaliação da situação no Haiti, concede Residência Permanente por razões humanitárias, considerando a grave situação provocada pelo terremoto de 2010 e suas repercussões na população e na estrutura social e governamental haitiana. Embora representasse um gesto humanitário, o visto não conferia o mesmo nível de proteção jurídica e internacional que o reconhecimento da condição de refugiado, mas permitiu o acesso a serviços sociais e direitos trabalhistas.
No decorrer do tempo, o governo brasileiro adotou medidas adicionais para abordar os desafios enfrentados pelos haitianos. Já em 2023, em uma tentativa de aliviar a situação, foi emitida uma portaria para facilitar a emissão de vistos temporários e autorizações de residência para familiares até o segundo grau dos haitianos já presentes no Brasil. Essa medida teve como objetivo atender às preocupações humanitárias e facilitar a reunião de famílias haitianas.
O Brasil, como signatário de tratados internacionais relacionados a refugiados, enfrenta o desafio de encontrar um equilíbrio entre suas políticas de imigração e seu compromisso com os direitos humanos. A discussão em torno da questão haitiana deve levar em consideração não apenas os aspectos legais, mas também os desafios de integração que os haitianos enfrentam no Brasil, incluindo barreiras linguísticas, culturais, educacionais e profissionais, bem como preconceito e xenofobia. Nesse contexto, o papel das organizações humanitárias, como o ACNUR e a Cáritas Brasileira, tem sido fundamental no apoio aos haitianos, na regularização de seus documentos, na busca por emprego e moradia, na revalidação de diplomas, na assistência social e na sensibilização da sociedade para a causa dos migrantes.
Breve história do Haiti
A história do Haiti tem início com um ato notável de coragem e determinação: a Revolução Haitiana, que culminou na independência do país em 1804. Este evento histórico não somente libertou o país da opressão colonial francesa, mas também o tornou a primeira nação independente da América Latina. Entretanto, essa independência veio a um custo elevado, uma vez que a França impôs enormes indenizações ao Haiti como compensação por suas perdas, o que fez com que a Nação passasse 122 anos pagando dívidas por sua independência, fato que desempenhou um papel importante no empobrecimento do país latino.
O século XX trouxe desafios adicionais ao Haiti, minando ainda mais a estabilidade política. O período mais sombrio foi a ditadura da família Duvalier (1957-1986). Regimes marcados pela governança com mão de ferro, repressão política e corrupção, deixando um legado de pobreza, desigualdade e violações dos direitos humanos. A queda da dinastia Duvalier não trouxe estabilidade duradoura. O Haiti experimentou uma série de presidentes depostos ou assassinados, evidenciando a fragilidade de suas instituições democráticas. Jean-Bertrand Aristide, por exemplo, eleito duas vezes, teve seus mandatos interrompidos por golpes de Estado.
Além disso, o Haiti também enfrenta desafios como a alta instabilidade política (após o fim da ditadura, apenas dois governantes conseguiram concluir seus mandatos), intervenções políticas norte-americanas, formação de gangues e grupos paramilitares, aumento do tráfico de drogas, além de desastres naturais.
A comunidade internacional também desempenhou um papel significativo nessa conturbada história recente do Haiti, com a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), liderada pelo Brasil, atuando de 2004 a 2017. Apesar de seus objetivos de promover a estabilidade e o desenvolvimento, a MINUSTAH enfrentou críticas por abusos, violações e falta de resultados concretos na reconstrução do país.
O Haiti é o retrato de um país resiliente, mas marcado por desafios monumentais que exigem abordagens cuidadosas e abrangentes. Em meio a essa complexa narrativa, emerge a necessidade urgente de soluções que possam finalmente trazer estabilidade e esperança para o povo haitiano.
A necessidade de uma abordagem global e de longo prazo
Além das preocupações internas, o governo brasileiro tem enfatizado a necessidade de uma abordagem global e de longo prazo para lidar com a crise no Haiti. Em vez de focar apenas na segurança imediata, o Brasil acredita que apenas uma operação que se concentre no desenvolvimento sustentável do país pode trazer resultados concretos. Isso levanta questões sobre como a comunidade internacional deve abordar a situação no Haiti, considerando não apenas a estabilização imediata, mas também os desafios econômicos e sociais de longo prazo.
A recusa do Brasil em enviar tropas ao Haiti não é um caso isolado. A comunidade internacional também tem demonstrado hesitação em relação a essa empreitada. O Canadá, por exemplo, inicialmente, considerou liderar a intervenção, mas recuou, considerando o envio de forças militares “arriscado”. Ambos os países foram incentivados pelos Estados Unidos para que o fizessem. Em contrapartida, o Quênia se ofereceu para liderar a missão, com o apoio de países como Jamaica, Bahamas, Antígua e Barbuda. Os Estados Unidos também recusaram o envio de soldados e ofereceram apoio médico, de transporte e de inteligência à equipe internacional, além de um montante de US$ 200 milhões para apoiar a missão.
A recusa do Brasil em participar de uma nova missão de paz no Haiti está, portanto, enraizada em uma série de fatores, incluindo preocupações internas, a influência de ex-comandantes da MINUSTAH no governo e a busca por abordagens de longo prazo. A divergência internacional sobre a melhor abordagem demonstra a complexidade da situação e a necessidade de um esforço coordenado para enfrentar os desafios do Haiti.