Ano V, nº 72, 01 de abril de 2024
Por Bruna Muriel, Bruno Fabricio Alcebino da Silva e Antonio Marcos Roseira[1]
(Imagem: Pixabay)
O artigo “Apartheid palestino e sobrevivência em Gaza: uma história de violência e inferiorização” publicado nesta edição da newsletter do Opeb, traz um panorama das tensões históricas que desembocaram no conflito entre Israel e Hamas em outubro do ano passado. O texto traz uma reflexão sobre o fenômeno do apartheid na região, a inferiorização histórica do povo palestino e a (ir) responsabilidade dos meios de comunicação e redes sociais no processo de (des) informar a opinião pública sobre a complexidade do conflito.
As autoras terminam o artigo com a seguinte constatação: “O povo palestino é titular do direito inalienável à autodeterminação.[…] Qualquer solução que vá contra isso é ineficaz e injusta”. Além disso, comentam que “A longa duração do conflito, no lugar de aventar soluções, parece esgotá-las”. É no intuito de contribuir para a superação deste cenário de esgotamento, e para recuperar um horizonte de superação do conflito secular na região da Palestina que entrevistamos o pensador português Boaventura de Sousa Santos. Com uma longa história de docência nas Universidades de Coimbra (Portugal) e Wisconsin-Madison (Estados Unidos) o professor, autor de inúmeras obras sobre temas como sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, acompanha a questão há décadas. As suas contribuições teóricas e conceituais inovadoras, dentre as quais destacamos aqui a teoria das linhas abissais, são tão críticas quanto propositivas. Neste sentido, podem contribuir tanto para uma melhor compreensão sobre as diversas nuances que atravessam o conflito, quanto para o exercício de elaboração de ferramentas políticas e jurídicas concretas para a sua superação. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Professor Boaventura, antes de mais nada gostaríamos de agradecê-lo por nos conceder um pouco de seu tempo. Para aproveitá-lo ao máximo, abriremos esta entrevista com uma pergunta aparentemente simples, mas que vem deixando uma parcela significativa da humanidade atônita e desesperançosa: Como é possível? Adentrada a terceira década do novo século, em um contexto de avanço das tecnologias de informação e comunicação e de um sistema jurídico internacional minimamente robusto? Como é possível assistirmos, por meses a fio e, muitas vezes, ao vivo, o massacre de 32.400 pessoas, dos quais mais de 30.000 são palestinas, incluindo 8.800 mulheres e 13.750 crianças?
Boaventura: As vossas perguntas estão na mente de todas as pessoas que não se deixaram intoxicar pela guerra de propaganda dominante. A perplexidade é tanto maior quanto é chocante a dualidade de critérios. Basta ver como foi noticiada nos meios ocidentais a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O Tribunal Penal Internacional apressou-se a emitir um mandado da captura internacional contra Putin por transferência ilegal de crianças (aparentemente retirá-las dos teatros de guerra para as proteger) enquanto Netanyahu as mata aos milhares e nada acontece. Isto acontece por várias razões principais. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o sistema jurídico internacional não é robusto.Talvez nunca o tenha sido, mas, se o foi, deixou de o ser no momento em que foram iniciadas guerras à revelia da ONU, de que o exemplo mais dramático foi a invasão do Iraque em 2003. Daí em diante foi o descalabro, do Afeganistão à Jugoslávia, da Síria à Líbia, do Líbano ao Yemen.
Em segundo lugar, o Estado de Israel na Palestina é resultado do crime hediondo do Holocausto contra o povo judeu. Um crime cometido pela Europa e cuja expiação foi imposta a um povo que nada contribuiu para tal crime, o povo palestiniano. Ou seja, um crime de colonialismo interno (europeus contra europeus) foi “solucionado” por uma imposição de colonialismo externo ou histórico (ocupação violenta de um território há séculos ocupado por outro povo). Israel é um Estado colonial por responsabilidade histórica da Europa. E a Europa é incapaz até hoje de se confrontar com o seu passado colonial. Este tema merece alguma reflexão mais detalhada.
Em terceiro lugar, devido ao modo como os EUA se transformaram numa plutocracia (um regime aparentemente democrático, mas dominado por quem tem dinheiro para o fazer funcionar a seu favor), é hoje difícil saber se Israel é um Estado cliente dos EUA ou se, pelo contrário, os EUA é que são um Estado cliente de Israel. Israel, além de ser um Estado colonial de origem europeia, é hoje uma peça importante do imperialismo norteamericano no Médio Oriente. Local estratégico não apenas pelos recursos naturais, mas também por ser uma potencial entrada da China na Europa. Ora, a guerra em preparação é contra a China, em breve a maior economia do mundo. A outra passagem de acesso da China são os 6 mil quilômetros de fronteira entre a Rússia e a China. Daí a guerra da Ucrânia, cuja paz só não foi possível um mês depois de se iniciar porque os EUA se opuseram. Israel e Ucrânia têm mais relações do que se pode imaginar.
Em quarto lugar, assistimos a tudo isto com sentimentos contraditórios de revolta e indiferença, de solidariedade e de impotência porque estamos sujeitos a uma imensa guerra de propaganda. A mídia corporativa (hegemônica) está à serviço dos interesses de Israel e dos EUA. Isto é sobretudo visível no Norte Global mas pode detectar-se igualmente no Sul Global. É por isso que só o Hamas é uma organização terrorista. Do terrorismo de Estado por parte de Israel nunca se fala. Aliás, não é Israel o único país democrático do Médio Oriente? Pode ser considerado democrático um país que comete um genocidio num país vizinho? Pode um Estado religioso ser democrático? Estas perguntas estão fora do radar dos meios corporativos.
Na obra “Para além do pensamento abissal” o sr. afirma: o pensamento e o sistema político-jurídico contemporâneo operam mediante linhas abissais que, delineadas no período colonial, seguem separando o lado metropolitano (e humano) do lado colonial (e sub-humano). Neste último, não vigoram os princípios modernos como os direitos humanos e a democracia. O ataque de Israel à Faixa de Gaza parece ilustrar, de uma maneira bastante trágica, este argumento. Como o sr. vem analisando esta situação?
Boaventura: O que está a acontecer desde 7 de outubro de 2023 começou em 9 novembro de 1917, quando o Império Britânico prometeu aos judeus uma casa na Palestina, onde uma pequena minoria de judeus já vivia. Os direitos da grande maioria de palestinianos árabes e cristãos eram reconhecidos, mas desde o início lhes foram negados os princípios “universais” que os EUA estavam a propor no final da Primeira Guerra Mundial: o direito à autodeterminação e o direito à democracia. Obviamente que esses direitos estavam a ser negados em todo o mundo colonial e, no fundo, pelas mesmas razões. É que se houvesse autodeterminação e eleições, o colonialismo acabaria imediatamente. Trinta anos mais tarde a situação repete-se e agrava-se. No mesmo ano em que é firmada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), os novos direitos universais são de novo negados à Palestina e a todo o mundo colonizado. Mais grave ainda é que nesse ano são cometidos os dois atentados mais graves (para além dos que já existiam) contra tais princípios. O sistema do Apartheid é institucionalizado na África do Sul e o Estado de Israel é criado, prometendo reconhecer a Alemanha Ocidental como um país civilizado (depois das atrocidades Nazistas) se pudesse conquistar o máximo possível de território da Palestina. Começou então a Nakba, a grande catástrofe do povo palestiniano, a sua expulsão massiva do território que habitavam há mais de 2000 anos: 750.000 palestinianos expulsos de suas casas, 530 aldeias arrasadas, desertos criados onde antes havia jardins, milhares de mortos. Consolidou-se assim o caráter colonial do Estado de Israel: ocupar o máximo território e esvaziá-lo o mais possível de gente “estranha”. E foi assim que Israel se portou até aos dias de hoje, não só desrespeitando as resoluções da ONU sobre os dois Estados, como, por último, declarando-se como um Estado Judaico, onde apenas há cidadania plena para os judeus.
A Palestina é, pois, uma das situações de colonialismo histórico que restam. A guerra que se trava é, por parte dos israelitas, uma guerra colonial e, por parte dos palestinianos, uma guerra de libertação anti-colonial. Numa guerra são cometidos atos terroristas sempre que são intencionalmente alvejadas populações civis, sejam eles cometidos pelos combatentes anti-coloniais ou pelos Estados (sendo que neste último caso se fala de terrorismo de Estado). Foi assim na guerra da Argélia, nas guerras da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Há apenas cinquenta anos, em 1973, Amílcar Cabral (Guiné-Bissau e Ilhas de Cabo Verde) (até à sua morte), Agostinho Neto (Angola), Jonas Savimbi (Angola), Holden Roberto (Angola) e Samora Machel (Moçambique) eram terroristas, e assim abundantemente retratados na imprensa portuguesa. Um ano depois, eram herois da libertação anticolonial, e como tal festejados nos seus países e em Portugal. Por que razão não há herois de libertação da Palestina, e há apenas terroristas? Porque o colonialismo continua a subjugar a Palestina. A transformação de terroristas em herois não é, em geral, tão rápida quanto foi a do colonialismo português. Basta lembrar o caso de Nelson Mandela que, apesar de o apartheid ter terminado em 1994 e de nessa data ter sido eleito presidente da república da África do Sul, só foi retirado da lista norte-americana dos terroristas em… 2008.
Entendendo a situação da Palestina como uma situação colonial, entende-se por que há dois pesos e duas medidas na avaliação dos atos de guerra. O Norte Global é constituído pelos países europeus colonizadores e pelas suas colônias que foram totalmente dominadas pela supremacia dos colonos brancos (EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia). A sua memória histórica é colonialista, de ocupação territorial e de extermínio de quem se lhe oponha. O que Israel está a fazer foi o que os EUA fizeram. Europeus rejeitados (puritanos ou criminosos) foram ocupar territórios fora da Europa e, uma vez aí, fizeram limpeza étnica de quem se opunha à sua ocupação. Em face deste contexto, compreende-se (mas não se perdoa) que o Norte Global imagine que o Estado de Israel está a agir em legítima defesa. Foi assim que o Norte Global arrasou as populações nativas. Ao apoiar Israel, o Norte Global está a legitimar a sua história.
O relativo anacronismo do colonialismo histórico praticado por Israel faz com que seja particularmente chocante a linha abissal ao fazer distinções aparentemente absurdas sobre um magma global e inerte de escombros e de cadáveres inocentes, muitos deles crianças. Já vimos que a legítima defesa nunca é justificada contra inocentes, populações civis, sobretudo crianças, e muito menos quando é exercida como punição coletiva indiscriminada na sua violência assassina. Nada disso impede que a linha abissal seja ativada, distinguindo a boa violência da má violência, distinguindo a morte dos que morrem da morte dos que são assassinados. Do lado de cá da linha abissal, falamos de “nós”, enquanto do lado de lá, se fala “deles”. De um lado, os plenamente humanos, do outro lado, os sub-humanos. É por isso que os jovens israelitas que foram barbaramente assassinados quando assistiam ao rave Universo Paralelo não achavam nada anormal que estivessem a celebrar o “amor e a harmonia” a dois quilómetros da rede que delimita a Faixa de Gaza, a maior prisão a céu aberto do mundo onde estão sequestradas mais de dois milhões de pessoas. Nem os membros de um dos kibutzim que foram atacados sabiam que quem os atacava eram jovens da terceira geração de palestinianos que viviam na aldeia que foi roubada aos seus antepassados (uma das 530 aldeias) e destruída para construir aquele kibutz.
A linha abissal não permite ver duas brutalidades, dois terrorismos, mesmo que o sangue derramado seja todo da mesma cor. Nisto consiste a cegueira estrutural dos vencedores da história. Para eles, será sempre tarde demais ver o que está à vista. A única consolação dos palestinianos é saber que todos os colonialismos chegam ao fim. A sua tragédia é que o fim dos colonialismos depende sempre de alianças internacionais, e essas têm tardado no seu caso.
O sr. afirma que a modernidade se expande globalmente infringindo, sistematicamente, os princípios sobre os quais está assentada. Ou seja, os governos violam os direitos humanos em defesa dos direitos humanos, ignoram as demandas dos cidadãos em nome da democracia e, em prol da vida, assassinam milhares. Diante disso, e do fracasso da ONU em evitar este e outros conflitos em andamento, como seguir apostando na eficácia do direito internacional, suas normativas e instituições?
Boaventura: Quando ainda existia o agora defunto Fórum Social Mundial (FSM) a que tanto tempo e energia dediquei, alguns de nós quisemos participar, enquanto FSM, na reforma da ONU que nos parecia urgente. As organizações que dominavam o FSM impediram tal iniciativa porque o FSM “não era político” (e pela mesma razão, o FSM ficou calado quando se deu o golpe contra a Presidente Dilma Rousseff). A aposta no direito internacional e sobretudo no direito internacional dos direitos humanos é hoje a arma do desespero porque sabemos que nada pode ser feito que contrarie os interesses geoestratégicos dos EUA. Afinal, não são eles que mais contribuem financeiramente para a sustentação da ONU e não é em Nova Iorque que ela está sediada? Só nos resta o protesto na rua e a pressão sobre os diferentes governos nacionais e nem sequer essa arma é muito eficaz. Por um lado, pensamos durante muito tempo que “a rua era de esquerda”. Hoje sabemos que a direita e a extrema-direita sabem usar a rua tão bem ou melhor que a esquerda, além de disporem de muitos mais meios. Por outro lado, os nossos governos são cada vez mais frequentemente sujeitos à imposições internacionais, financeiras e outras, que os distanciam das aspirações dos povos que dizem representar.
No último mês o Presidente Lula enfureceu a mídia brasileira, ao comparar o atual massacre do povo palestino àquele vivenciado pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Qual a importância e o impacto político da comparação feita pelo presidente brasileiro? Quais mecanismos impedem o reconhecimento (por parte da mídia e setores da opinião pública) de que estamos, de fato, diante de novas experiências de colonialismo, apartheid, crime de guerra e genocídio?
Boaventura: A Palestina é parte do Sul Global e a atitude do Presidente Lula da Silva sublinha isso. O Presidente Lula é hoje um dos mais prestigiados políticos mundiais e a sua afirmação, além de verdadeira, foi corajosa. A guerra de propaganda e os interesses geoestratégicos dos EUA impedem que ela seja aceita como consensual. Imaginem qual seria a reação mundial se os atos que Israel está a cometer em Gaza fossem cometidos pela Rússia na Ucrânia, ou pela China em algum país vizinho. Suspeito que o ato de “desobediência” à ortodoxia impostas pelo império, tal como o ato de desobediência da África do Sul ao apresentar queixa contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, vão suscitar intervenções desestabilizadoras por parte dos EUA. Tipo regime change. Serão os dois próximos alvos, e devem estar preparadas para isso.
Uma outra questão que se abre é sobre o desdobramento do conflito entre as grandes potências ocidentais (e seus principais aliados) e as potências emergentes do Sul Global. Como enfrentar o padrão consistente de apoio ou veto às resoluções críticas ao Estado de Israel no âmbito do Conselho de Segurança da ONU relacionado, entre outros fenômenos, ao domínio estadunidense sobre a instituição e à influência dos lobbies na política externa de nações-chave? O Ocidente é ainda capaz de impor unilateralmente seus interesses em favor do Estado de Israel ou os países do Sul Global já possuem força para tensionar suficientemente as instituições em prol da causa palestina?
Boaventura: Esta pergunta também exige uma resposta mais detalhada. Podemos dizer que, a partir do século XV, o Sul Global, sobretudo o que foi sujeito ao colonialismo europeu, foi forçado a entender o Norte Global. Os colonizadores trouxeram consigo não apenas o poder absoluto mas também o conhecimento absoluto, tanto o religioso como o científico. Como diz Édouard Glissant, a quem foi imposto o absoluto teve de aprender a viver o relativo. Esse relativo foi o modo de viver e de pensar o mundo como um vasto sistema dual de circulação de ideias e de vivências: o mundo das relações entre os colonizadores e os colonizados e o mundo das relações entre os colonizados. A dualidade nunca implicou separação; implica ter de viver em dois mundos no mesmo mundo num campo caótico de relações assimétricas, co-existências, ambiguidades, articulações, fusões parciais, mal-entendidos recíprocos, opacidades tácticas. Esta circulação dual envolveu sempre práticas e conhecimentos. Dada a sua posição subalterna, o Sul Global teve de aprender a entender o Norte Global pois de outra maneira não sobreviveria. Ao contrário, o Norte Global nunca teve de entender o Sul Global porque pôde sempre recorrer à imposição violenta quando o comportamento do Sul Global fosse discordante ou ininteligível. O que se dispôs a aprender sobre o Sul Global foi sempre o que considerasse necessário para melhor o dominar e explorar.
Durante séculos a assimetria da relação pedagógica caracterizou-se por o Norte Global ensinar e o Sul Global aprender. E o Sul aprendeu muito, sempre tentando não esquecer o conhecimento ancestral, a sua filosofia não-eurocêntrica, os seus saberes vernáculos e suas línguas, os quais continuaram a ser fundamentais não só para alimentar as relações no seu interior como também para conviver com o Norte Global do modo que causasse menos sofrimento e tornasse mais eficaz a resistência contra a prepotência colonial. O Sul Global aprendeu muito, formulou criativamente o que designo por ecologias de saberes em que se misturavam os saberes eurocêntricos com os saberes próprios, recorrendo mais a uns ou a outros consoante as situações e os contextos, as tarefas e as intenções. Foi uma aprendizagem riquíssima cujo verdadeiro significado escapou ao Norte Global. Para o Norte Global essa aprendizagem destinava-se a que o Sul se comportasse o melhor possível na sua subalternidade: aprendesse bem qual era o seu lugar e a partir dele exercesse o seu papel com máxima eficácia. Para o Sul Global, pelo contrário, essa aprendizagem, sendo uma necessidade inescapável, era também uma oportunidade para se conhecer melhor a si próprio, valorizar as suas epistemologias autóctones, e com base nelas, identificar os pontos fracos do Norte Global e melhorar a sua capacidade de resistência contra um poder e um saber intrinsecamente injusto, alienígeno e legitimador de violências.
Esta assimetria funcionou durante séculos de múltiplas formas. Apesar de tender a reproduzir as relações desiguais entre os povos do Norte Global e os do Sul Global passou períodos de grande instabilidade, seguidos de outros de maior acalmia. A instabilidade ocorreu em todos os momentos em que a assimetria das relações desiguais foi posta em causa em processos colectivos. Tais processos foram sempre dominados por binarismos dualistas que de uma de outra forma abalaram as relações de assimetria e as transformaram nos períodos seguintes.
O sr. poderia desenvolver melhor a questão dos períodos históricos de estabilidade e instabilidade da assimetria entre o Sul e o Norte Global?
O primeiro momento de instabilidade ocorreu nos séculos XVII e XVIII com as fugas dos escravos e criação dos quilombos (marronage em francês) onde o regime da escravatura era substituído por diferentes formas de governo trazidos de África. O binarismo aqui era entre escravatura e liberdade. Estes processos de resistência foram mais ou menos duradouros, mas inscreveram-se fortemente na memória dos povos afrodescendentes. No Brasil, o quilombo mais emblemático foi o quilombo de Palmares (situado num território integrado hoje no Estado de Alagoas) que durou desde o início do século XVII até ao início do século XVIII. Os quilombos foram o primeiro grande ensaio histórico de libertação do colonialismo europeu. Afetaram a relação assimétrica, mas não a eliminaram. Já no século XIX e sobretudo no século XX, o grande abalo histórico na relação assimétrica colonial ocorreu sobretudo depois da segunda guerra e a dicotomia foi então entre colonialismo e independência. O confronto entre o Norte Global e o Sul Global converte-se pela primeira vez num confronto entre Estados soberanos e povos aspirantes a serem igualmente Estados soberanos. Também aqui a luta pela independência por parte do Sul Global abalou profundamente a relação assimétrica, mas não a eliminou. O modo como foram negociadas as independências deixava importantes privilégios às antigas potências coloniais. A continuidade em novos termos das relações desiguais foi designada em 1965 por Kwame Nkrumah como neocolonialismo. Era uma desigualdade estrutural diferente daquela que tinha ocorrido mais de um século antes com as independências das colônias das Américas. Com exceção da independência do Haiti em 1804, essas independências foram concedidas, não aos povos originários, mas aos descendentes dos colonos europeus e os privilégios destes foram em grande medida transferidos para os seus descendentes, dando azo à criação de um assimetria específica que Pablo González Casanova y Rodolfo Stavenhagen designaram por colonialismo interno.
As dicotomias que até hoje assombram as relações desiguais entre o Norte Global e o Sul Global continuaram a assumir novas formas. Pouco depois da dicotomia colonialismo/independência passou a dominar a dicotomia entre capitalismo e comunismo/socialismo. Foi dessa dicotomia que se alimentou a Guerra Fria entre 1947 e 1991. As relações desiguais entre o Norte Global capitalista e o Sul Global atraído pelo comunismo/socialismo passaram de novo por um momento de forte tensão. Foi neste período que pela primeira vez, o Sul Global se rebelou contra os termos da dicotomia e propôs-se organizar a sua soberania noutros termos. Foi o Movimento dos Não Alinhados, iniciado na conferência de Bandung em 1955 e foi formalizado como um bloco de países em Belgrado em 1961, por iniciativa da Iugoslávia, Índia, Egito, Gana e Indonésia. Mas as vicissitudes da Guerra Fria, as dificuldades em sustentar consistentemente o não-alinhamento, o pouco peso das economias do Sul Global no PIB global e a hostilização ativa por parte do Norte Global (sobretudo dos EUA) dos países que se aproximassem da opção comunista/socialista (caso paradigmático de Cuba) fizeram com que proposta nunca tivesse um vigor decisivo na eliminação das relações assimétricas entre o Norte Global e o Sul Global. Com o fim da União Soviética em 1991 o Movimento dos Não Alinhados tem sobrevivido como uma rede de resistência às imposições (embargos, sanções) com que o Norte Global continua a reprimir a desobediência às relações internacionais baseadas nas regras por ele ditadas com o objetivo de perpetuar a sua supremacia. E assim chegamos aos nossos dias.
Considerando esta herança econômica, política, cultural e epistêmica, quais características da dinâmica entre o Norte e o Sul Global se destacam nos dias de hoje?
Pelas razões anteriormente invocadas, as relações de poder na economia mundial alteraram-se profundamente entre o Norte Global e o Sul Global. Hoje os BRICS, que de algum modo são a forma mais consistente de organização do Sul Global, constituem 36% do PIB mundial e 47% da população mundial. Entre eles estão países que em breve podem ser a primeira e a terceira economia do mundo. Este conjunto de circunstâncias torna impossível a continuação da multissecular assimetria entre o Norte Global e o Sul Global. É aqui que a disputa epistémica emerge e a ininteligibilidade recíproca começa.
Como referi, o Sul Global, por necessidade de sobrevivência, sempre entendeu melhor o Norte Global do que o Norte Global entendeu o Sul Global. Tem, neste momento, uma ascendência epistémica sobre o Norte Global que este não quer reconhecer. O Sul Global entende o que o Norte pretende (manter as relações assimétricas que há séculos o favorecem), mas não entende que o Norte não entenda que as condições que ele próprio impôs se alteraram profundamente. E que se alteraram a favor do Sul Global. Pela primeira vez, a dicotomia que o Norte Global quer impor ao Sul Global (democracia versus autocracia) não tem qualquer credibilidade do ponto de vista do Sul, nem tem qualquer eficácia na regulação do atual contexto mundial.
Ocorre assim uma recíproca opacidade. Onde o Norte Global vê a dicotomia democracia/autocracia, o Sul Global vê a dicotomia ordem/caos. Para o Sul Global, as questões globais que o mundo enfrenta não podem ser resolvidas com base na precedência das relações assimétricas. Qualquer tentativa de as impor vai gerar o caos, o que pode ser fatal para a humanidade no seu conjunto. A única alternativa é uma nova ordem. Só que essa ordem tem de ser multipolar, o que obriga a novos tipos de não-alinhamento, que são afinal os diferentes modos como os diferentes países se vão inserir nos vários polos de ordem que estão a emergir. O Norte Global é um deles, mas não o único. Estão a surgir outros igualmente legítimos e só o reconhecimento dessa pluralidade é a única alternativa ao caos. Do ponto de vista do Sul Global, é legítimo que a Europa se queira tornar num espaço geopolítico satélite dos EUA, tal como o Canadá, consolidando assim o Norte Global como um polo da ordem multipolar emergente. Mas querer impor esse polo como o único é um convite ao caos precisamente porque a nova ordem visa acomodar novos desafios e novos interesses que não são acomodáveis na ordem do Norte Global. Como esta não os acomoda, sempre que os tem de enfrentar recorre a práticas de exclusão que criam caos sejam elas, sanções, embargos, invasões, regime change, proxy wars, asfixia financeira. Ou seja, o que o Norte Global impõe como ordem é sofrido no Sul Global como caos. Ora, se é possível distinguir entre ordem democrática e ordem autocrática, não há qualquer distinção entre caos democrático e caos autocrático. Esta é a mais dolorosa e consistente experiência do Sul Global na modernidade eurocêntrica. O que é novo é que o Sul Global tem poder suficiente para falar dessa experiência, para não tolerar que lhe seja imposto o caos em nome da ordem e para propor outros critérios de ordem. O perigo do caos é tão ameaçador e potencialmente tão devastador que a ordem assume total prioridade. A democracia só é um valor civilizacional se for fator de ordem e não de caos. O que sempre valeu exclusivamente para o Norte Global vale agora também para o Sul Global.
A nova ordem multipolar parece ser a única alternativa à generalização do caos, já que a ordem unipolar atualmente a cargo do Norte Global só se consegue impor pela destruição, pela violência e pela guerra. É epistemicamente muito mais aceitável pelo Sul Global do que pelo Norte Global porque nos últimos séculos o Sul só sobreviveu a através da circulação dual de conhecimentos e práticas, parte deles aprendidos (a bem ou a mal) do Norte Global, parte deles ancestrais ou nascidos nas lutas contra a dominação imposta pelo Norte Global. Nos termos das epistemologias do sul, enquanto o Norte sempre primou pelas monoculturas de conhecimento, classificação, concepção de tempo, escala dominante e conceito de produtividade, o Sul Global sempre cultivou ecologias de diferentes conhecimentos, classificações, escalas, temporalidades e produtividades. O Sul está mais bem equipado epistemicamente que o Norte para enfrentar os desafios da multipolaridade no futuro. As relações que se estabelecem no interior de cada ordem e nas relações entre elas, sem serem necessariamente simétricas, assentam em adesões voluntárias e não em imposições de caos como aconteceu no passado. Neste domínio, o Sul Global apropria-se contra hegemonicamente do conceito de soberania, um dos conceitos de que o Norte Global fez um uso particularmente seletivo, tanto no período do colonialismo histórico como no tempo pós-colonial. Na nova ordem internacional, só o reconhecimento da multiplicidade dos polos de ordem pode eliminar a ocorrência do caos.
A vantagem epistémica do Sul Global no futuro próximo só poderá contribuir para a nova ordem multipolar se o Norte Global se dispuser a aprender com o Sul Global. Esta é a grande incógnita do nosso tempo.
Qual o desfecho mais provável da guerra Israel X Hamas? Israel irá respeitar a recente resolução do Conselho de Segurança da ONU, que pede um “cessar-fogo imediato” em Gaza, mesmo diante da abstenção dos Estados Unidos? Ou pelo contrário, as forças coercitivas do Estado judaico irão avançar sobre Rafah, perpetuando o extermínio étnico em marcha?
Boaventura: Como espero ter ficado claro nas minhas respostas anteriores, a guerra não é entre Israel e o Hamas, é entre Israel e o povo Palestino. Costumo dizer que os sociólogos são melhores a prever o passado do que a prever o futuro. Dito isto, a minha previsão é que Israel não vai obedecer à resolução do Conselho de Segurança e que nenhum país o vai forçar a isso. Muito menos os EUA que o poderiam fazer com um mero telefonema informando que suspendiam a vultosa ajuda financeira e o fornecimento das bombas que estão a ser lançadas sobre o povo de Gaza. O Estado de Israel é hoje um Estado pária e está hoje internacionalmente mais isolado que a Coreia do Norte. Mas é um isolamento de tipo diferente. Está isolado pela reprovação da sociedade civil mundial que cada vez mais frequentemente não se reconhece nas posições dos governos que a dizem representar. O comportamento do Estado de Israel em Gaza degrada-nos a todos como humanidade pela impotência que sentimos em pôr termo a tamanha violência impune. O comportamento não é mais violento do que foi o comportamento dos países colonialistas entre o século XVI e o século XX. Mas é mais repugnante e chocante por ocorrer depois de duas guerras mundiais e de inúmeras lutas de libertação anticolonial, e, portanto, depois do fim do colonialismo histórico (colonialismo por ocupação territorial por parte de uma potência estrangeira) mesmo restando ainda alguns resíduos dele, da Guiana francesa ao povo Saharaui. Por ocorrer depois de décadas de proclamações de direitos humanos e de relações internacionais baseadas em regras, a hipocrisia da geopolítica do Norte Global chefiado pelos EUA é mais difícil de aceitar.
Dito de uma maneira mais direta, Israel não obedece à resolução do Conselho de Segurança porque os EUA, apesar da abstenção (decidido por razões de política interna: próximas eleições), não querem que obedeça. Estão interessados em degradar a própria ONU como parte das condições que facilitem a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial para a qual se preparam e que julgam poder ganhar. Repete-se o que os alemães fizeram na década de 1930 contra a Liga das Nações.
A partir de sua obra compreendemos que a justiça social global anda de mãos dadas com a justiça cognitiva global. Por sua vez, esta exigiria um pensamento pós-abissal, assentado tanto na pluralidade epistemológica do mundo quanto na co presença radical (e, consequentemente, na abolição da guerra e da intolerância). Existe uma saída (epistemológica, política e jurídica) pós-abissal para a questão palestina? De que forma as experiências – enquanto saberes e práticas sociais – do povo palestino poderiam ser integradas, de forma mais eficaz, ao processo de negociação e de construção de uma paz verdadeiramente duradoura entre judeus e palestinos?
Boaventura: As epistemologias do sul são preciosas para enriquecer e complexificar a compreensão do mundo. Essa é a sua contribuição para a transformação progressista do mundo: a solução da causa Palestina é a libertação do povo Palestino em relação ao poder colonial que o oprime. O pensamento pós-abissal em termos políticos significaria neste caso a criação de um estado plurinacional e intercultural em que simultaneamente vigorasse o direito à igualdade (dos cidadãos perante o Estado) e o direito à diferença (o respeito pelas diferentes nações étnicas, pelas diferentes religiões). Não seria simples co-existência ou o fim do apartheid formal ou informal. Seria convivialidade, crescimento e enriquecimento mútuo, transformação recíproca. Utopia? Sim, mas todas as ideias progressistas antes de serem levadas à prática foram sempre no passado consideradas utópicas.
[1] Bruna Muriel
Docente da UFABC e doutora pela USP, é docente colaboradora do Programa de Pós-Graduação em RI (PPG-PRI- UFABC), coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Globalizações e Epistemologias do Sul (Gepisul) e coordenadora adjunta do Opeb.
Bruno Fabricio Alcebino da Silva
Discente da UFABC, monitor e pesquisador do OPEB e autor de diversos artigos publicados em veículos como Carta Capital, Brasil de Fato e Le Monde Diplomatique.
Antonio Marcos Roseira
Docente da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), é membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPG-PRI- UFABC) e do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB), com atuação na linha de pesquisa em Segurança Internacional e Geopolítica.