Ano V, nº 74, 25 de abril de 2024
Por Bruna Muriel (Imagem: acervo pessoal da autora)
Eu queria estar na festa, pá,
Com a tua gente
E colher pessoalmente
uma flor do teu jardim.
Tanto Mar (1ºversão), Chico Buarque
O texto abaixo foi originalmente escrito dias após a minha participação nas atividades de celebração dos 40 anos da Revolução dos Cravos, ocorridas na cidade de Lisboa em 2014. Publicado no dia 05 de maio do mesmo ano o texto é aqui revisitado, como forma de celebrar o cinquentenário da Revolução, homenagear Portugal e as lutas pela liberdade no mundo e, de quebra, relembrar o valor da democracia constantemente ameaçada, lá e cá, apesar dos mares e léguas a nos separar.
Décadas depois, faço minhas as palavras de Chico Buarque: “Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente. Ainda guardo, renitente, um velho cravo para mim”. Pois eu também guardo o cravo vermelho que ganhei em Lisboa na última quinta-feira, durante a celebração dos 40 anos da Revolução dos Cravos. Quando todos – idosos, jovens e crianças – caminhavam pelas ruelas e avenidas da capital lusitana sustentando a flor-símbolo da revolução, em suas mãos, cabelos e roupas.
Por toda a margem do Tejo era possível ouvir a voz de Zeca Afonso cantando “Grândola vila Morena”, a música-senha que tocou nas rádios portuguesas na madrugada do 25 de abril de 1974, alertando para o início das operações militares que derrubariam o regime ditatorial fundado pelo general Antônio Salazar 48 antes.
Fome, sangue e saudade formaram o amálgama do movimento revolucionário dos Capitães de Abril, que emergiu no seio do poder coercitivo do Estado até tornar-se um grande movimento popular pela democratização política e econômica em Portugal e pela descolonização na África. O levante abriu caminhos para fenômenos como a abertura de processos eleitorais e a recuperação da liberdade de imprensa, em Portugal. Além disso, pôs fim às guerras de independência na África que, desde a década de 1960, comprometiam grande parte do tesouro nacional, relegando à miséria a maior parte da população da metrópole.
Com o objetivo de manter o poderio sobre as últimas colônias, a metrópole em decadência sustentava o massacre de milhares de angolanos e moçambicanos, entre outros negros africanos. Enquanto simultaneamente financiava a viagem de jovens soldados portugueses que, cantados em fados de meninas tristes e senhoras de olhos cansados, jamais atravessariam o Mediterraneo de volta.
Vale lembrar que a Revolução dos Cravos desencadeou uma experiência de reforma agrária no Alentejo que, ainda hoje, pode servir de inspiração para a luta dos povos da terra no mundo e no Brasil contra o agronegócio de Monsantos & Cias, é mantido com unhas e dentes – e com leis e espingardas, oh pá! – pela bancada ruralista – mafiosa e criminosa, oh pá! – que faz a festa no Congresso Nacional (entre champanhes e canapés elaborados com produtos orgânicos, é claro). Foi o que concluiu a recente “Jornada Universitária em apoio ao MST” realizada pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC)¹.
Mas voltemos ao 25 de abril. Com o passar do tempo, o setor mais radical do movimento foi perdendo espaço, a reação se fortaleceu e a contrarrevolução se instaurou. Desfez-se o projeto de um país livre, desenvolvido e igualitário e, hoje, o Império Colonial português se transformou na periferia do centro mundial, o sul do norte global. O país corre um sério risco de reduzir-se a pátio traseiro (que ironia!) de ingleses, alemães e outros poucos beneficiários das políticas de austeridade impostas pela União Européia, que diariamente desembarcam em terras lusitanas em busca dos prazeres ibéricos. Yes, eles podem não ter bananas, mas possuem muito sol, praias espetaculares e vinhos bons e baratos.
Por isso nem tudo são flores nesta semana de celebração: elas dividiam a cena com os gritos de jovens portugueses e cartazes de senhoras jubiladas contra o atual governo e suas políticas produtoras de desemprego e cortes sociais. Lá também estavam os imigrantes das antigas colônias africanas, denunciando a situação de marginalização em que vivem, resultado daquilo que a crítica pós-colonial explica como sendo a perpetuação do colonialismo mesmo após as independências, através de diversas formas de exploração, preconceito e violência.
Mas mesmo assim o “Espírito de Abril” se fez .Talvez porque cá faz primavera pá. Ou porque, como afirma Saramago, somos a memória que temos e os herdeiros de Pessoa não esquecem o quanto, principalmente em momentos de tormenta, é preciso navegar, navegar…
¹https://ces.uc.pt/pt/agenda-noticias/agenda-de-eventos/2014/jornada-universitaria-em-apoio-a-reforma-agraria