A era das doenças climáticas

Ano V, nº 84, 12 de setembro de 2024

 

Por Beatriz Dantas, Giovana Plácido, Henrique Cochi Bezerra, Isabela Morais, João Pedro Taffner, Stéfany Ferreira de Lima, Olympio Barbanti Jr. (Imagem: Marcelo Camargo/ Agência Brasil)

 

O Brasil sofrerá com os efeitos dos desastres climáticos no campo da saúde humana e animal e irá gastar bilhões de reais com enchentes, secas e queimadas. O país deve se alinhar às diretrizes internacionais para proteger sua população. Porém, a que ponto medidas corretivas serão priorizadas em detrimento de reformas estruturais?

 

Imagens aéreas da inundação da cidade de Porto Alegre após a cheia do rio Gravataí. (Foto: Marinha do Brasil/ RS) 

 

 

Tentativa de controle de incêndio em Estados da Amazônia. (Foto: Mayangdi Inzaulgarat/ Ibama) 

 

 

Um dos cinco mil focos de incêndio registrados no período de 24 horas. (Foto: Joédson Alves/ Agência Brasil)

 

A intensificação do aquecimento global foi responsável por inúmeros impactos prejudiciais na esfera social, econômica, ambiental e política nas últimas décadas. Dentre eles, é crucial apontar a implicação das mudanças climáticas no campo da saúde, o crescimento no número de doenças infecciosas, respiratórias, cardiovasculares e a incidência destes efeitos nas diferentes camadas sociais.

 

Diante do desastre natural ocorrido em junho de 2024 no Rio Grande do Sul e outros ocorridos anteriormente, o Brasil se vê de frente com a vulnerabilidade socioambiental de populações mais pobres e deve se preparar para atenuar as enfermidades que surgiram e ainda surgirão, além de lidar com abalos nas infraestruturas de saúde e com os efeitos sobre os animais. Para tanto, é necessário seguir as diretrizes internacionais preconizadas por órgãos de saúde e veterinária, e combater o desenvolvimento da crise climática como um todo.

 

Entretanto, neste texto questiona-se a efetividade de medidas que tentam reparar os estragos dos desastres naturais, em detrimento de reformas estruturais que podem preveni-los e, consequentemente, atenuar a intensidade dessas doenças. Esses dilemas são debatidos à luz da economia política dos desastres naturais.

 

1. Doenças climáticas e vulnerabilidade socioambiental

Segundo a OMS, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas podem causar cerca de 250 mil mortes adicionais anuais por desnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. Elas trazem efeitos sobre a saúde humana de diferentes formas: a variabilidade climática causa uma maior proliferação de doenças infecciosas e não infecciosas, um aumento da insegurança alimentar, além de impactos na saúde mental.

 

As alterações nos padrões de precipitação, ventos, e a intensificação de eventos climáticos extremos criam condições mais favoráveis para a proliferação de  vetores, como os transmissores da dengue, contribuindo para o aumento de infecções. Essas mudanças também impactam a migração humana e a urbanização, aproximando pessoas de animais hospedeiros de patógenos, o que facilita a propagação de doenças zoonóticas. Isto posto, o Ministério da Saúde criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para Dengue e outras Arboviroses (COE), com objetivo de coordenar e melhorar a resposta a surtos dessas doenças em todo o Brasil, trabalhando de forma integrada com estados e municípios. 

 

No Rio Grande do Sul, o aumento dos níveis de água pode causar doenças como diarreia, infecções na pele, doenças respiratórias, leptospirose, tétano e hepatite A devido ao contato com água contaminada. As enchentes também danificaram cerca de três mil estabelecimentos de saúde, dificultando o atendimento médico e aumentando o risco de subnotificação de doenças. 

 

A falta de saneamento básico e as enchentes, como as ocorridas entre 26 de abril e 5 de maio, têm um impacto devastador na saúde das populações mais pobres. A leptospirose, causada pelo contato com urina de ratos em água contaminada, é uma das doenças comuns em áreas sem rede de esgoto, afetando desproporcionalmente cidadãos provenientes de zonas precárias. Logo, a vulnerabilidade socioambiental é uma condição agravada por desastres ambientais extremos e contribui para intensificar o abismo de desigualdade social presente no Brasil.

 

Além das doenças acima, as doenças crônicas não infecciosas relacionadas às modificações ambientais e deficiências nutricionais também são agravadas. As mudanças climáticas geram aumento nos efeitos das doenças respiratórias, proveniente da potencialização  dos poluentes atmosféricos nas zonas urbanas. De acordo com a OMS, 50% das doenças respiratórias crônicas e 60% das doenças respiratórias agudas estão associadas a essa exposição aos poluentes atmosféricos. Os estudos apontam que com o aumento de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século, conforme as projeções do IPCC das Nações Unidas, deve ocasionar no Brasil  um aumento nas doenças respiratórias, cardiovasculares e até renais. 

 

Não só a saúde física das pessoas são afetadas, mas também a saúde mental da população. Depressão, ansiedade, sofrimento emocional, traumas decorrentes dos desastres naturais ameaçam o bem estar e a saúde humana. A ecoansiedade, um termo que vem ganhando atenção das mídias nos últimos anos, é uma dessas consequências reais  que afeta a população em diferentes graus.

 

Contudo, existe uma variação dessas respostas às mudanças climáticas e seus impactos que é diretamente ligada à questão da vulnerabilidade. Uma dessas questões é a condição social, marcada por desigualdade, que se desdobram nas diferentes capacidades de adaptação, resistência e resiliência. Esse cenário pode ser visto na insegurança alimentar, com a diminuição da disponibilidade de alimento e da qualidade nutricional, que dificulta o acesso da população aos alimentos, de modo que elas recorrem a alternativas destes, muitas vezes não convencionais, que fortalecem a sindemia global.

 

 

As consequências  das catástrofes climáticas no Rio Grande do Sul teve impacto não somente na saúde humana, mas também, estudos apontam a relação dos alagamentos de áreas inteiras e  a queda de árvores na volta da doença Newcastle após quase duas décadas sem notificação. A destruição de árvores que poderiam ter ninhos, além das aves exóticas e de estimação que são disseminadores de vírus, foram levados pelas águas. A vacinação contra a doença não é aconselhada em aves de corte, nessa perspectiva, o evento climático vivido pelo Estado pode ter contribuído com o surgimento de um foco com mais de 14 mil casos dessa doença, que interfere diretamente na sua economia com a suspensão  de exportação de produtos avícolas para pelo menos 44 países.

 

Outrossim, as queimadas florestais e as secas proporcionadas pela exploração do meio ambiente atingiram níveis altíssimos no primeiro semestre de 2024, nunca antes registrados no Brasil. Os índices de incêndio em regiões como Amazonas e Mato Grosso já são 104% superiores aos hectares queimados registrados durante o mesmo período em 2023. Esses incêndios florestais alarmantes são observados no país desde agosto desse ano, e investigações já estão sendo conduzidas pela Polícia Federal para apurar seus responsáveis. A ministra do meio ambiente Marina Silva propôs que todos os gastos com emergências climáticas no Brasil não fossem incluídos no teto de gastos do governo, considerando esta uma crise contínua e crescente, sendo necessário um investimento em ações preventivas constantes. 

 

Quanto às consequências imediatas dessa catástrofe, os índices de poluição atmosférica aumentam e a qualidade do ar decai, o que pode ocasionar complicações para a saúde de humanos e animais. Além de doenças do sistema respiratório como amigdalite e faringite, o corpo humano também é afetado através de irritações nos olhos e nariz, tosse seca e no aumento de doenças cardiovasculares. Os grupos mais vulneráveis da população, como idosos e crianças, correm risco de vida ao absorverem em seus organismos as toxinas liberadas no ar pelas fumaças das queimadas florestais. Além disso, a má qualidade do ar também tem seu impacto no processo de neurotransmissão do cérebro humano, podendo gerar neuroinflamação e agravar casos de depressão e ansiedade nas comunidades afetadas.

 

2. Recomendações internacionais e medidas brasileiras de mitigação

Os efeitos das mudanças climáticas no campo da saúde não se trata de uma problemática isolada, e sim interseccional à esfera econômica, social e política das nações e da comunidade internacional como um todo. Dessa maneira, Organizações Internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas ramificações possuem um papel central na elaboração de declarações, projetos e medidas para engajar os países a enfrentar estes impactos.

 

Para a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization), o combate aos desafios é pautado em torno de três objetivos principais: a redução das emissões de carbono e do uso de combustíveis fósseis a partir da transição energética e da bioeconomia; a construção de sistemas de saúde mais sustentáveis; e a proteção da saúde populacional por meio de análises de vulnerabilidade, desenvolvimento de planos de ação e sistemas responsáveis por monitoramento de riscos. 

 

Também é evidenciada a necessidade de mudança nos hábitos alimentares para uma dieta mais equilibrada e saudável, tendo em vista que a indústria de carne vermelha é uma das maiores responsáveis pela proliferação de gases poluentes na atmosfera. Além disso, coalizões com a sociedade civil e agências de saúde são primordiais para impulsionar a formação de políticas públicas e conscientizar os cidadãos sobre os desafios da saúde num mundo de crise climática.

 

A perspectiva para futuros cenários internacionais epidemiológicos, caso não haja uma virada ambiciosa no combate às mudanças climáticas, é caracterizada por fatores agravantes intrincados na poluição atmosférica e precarização de áreas interurbanas, o que facilita a transmissão das doenças. As catástrofes ambientais se intensificam cada vez mais e ocorrem paralelamente a conflitos políticos. Os impactos devem ser analisados no que tange seus efeitos para a saúde da população e nos sistemas designados para acolhê-la, sendo necessário um plano adaptativo.

 

Dentre as ações do Governo Brasileiro para remediar os impactos na saúde gaúcha, pode-se destacar a iniciativa do Ministério da Saúde no suporte psicológico à população afetada. Ele se divide em setores de atendimentos presenciais e de telemedicina, e propõe ações psicoterapêuticas que auxiliem no processo de assimilação dos traumas provenientes de uma catástrofe climática. Já no panorama de adaptação e de mitigação da crise climática, é importante citar o Comitê Interministerial de Mudança no Clima (CIM), que tem o objetivo de guiar e implementar o Plano Nacional sobre Mudança no Clima. Nesse sentido, foi aprovado no dia 27 de junho de 2024 a resolução para implantar novas medidas ao CIM, anunciadas pelo Presidente Lula no Dia Mundial do Meio Ambiente (05/06), como o pacto com governadores para o combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia, a criação de duas Unidades de Conservação (UCs) e a Estratégia Nacional de Bioeconomia

 

Contudo, apesar dos esforços para corrigir os impactos ocorridos, a crise climática está mais grave do que nunca. As ações devem possuir um caráter mais crítico e eficaz, mas a que ponto medidas corretivas serão priorizadas em detrimento de reformas estruturais? É preciso analisar o panorama de modo mais amplo e debater como estabelecer alternativas ao modelo de sociedade excludente e exploratório vigente. 

 

3. Economia política dos desastres naturais: a ideologia por trás

A par e passo às constantes crises econômicas ao redor do mundo, ocorre de forma generalizada uma crise ecológica que cada vez mais adquire proporções catastróficas. Aquilo que até recentemente estava sendo tratado como uma possibilidade a ocorrer, talvez, em um futuro distante, agora se materializa na atualidade. Veja-se o crescente número de desastres naturais nos últimos anos: inundações na Grécia, inundações no Rio Grande do Sul, incêndios florestais na Austrália, seca na Amazônia, e, agora, queimadas na Amazônia e em diversas outras partes do Brasil – especialmente no estado de São Paulo – dentre muitos outros exemplos.

Em 2001, cientistas alertavam que a tendência do aquecimento global induzido pelo homem era aumentar ao longo do século XXI. Na época, modelos de simulação indicaram efeitos secundários, como o aumento das taxas de precipitação e a maior suscetibilidade de secas nas regiões semiáridas. Combinados com outros fatores, como a urbanização e ocupação inadequada, ou irregular, de áreas não propícias (fundos de vale, encostas, várzeas etc), esse aumento irregular de chuvas fortes provocam inundações.

Alguns anos antes, o protocolo de Quioto – acordo ambiental que visava a diminuição da emissão de gases do efeito estufa em países industrializados – demonstrava um esforço internacional para a contenção dos efeitos climáticos que experienciamos hoje. Entretanto, mesmo com a adoção de metas modestas, muito aquém das metas propostas pela literatura científica da época, a iniciativa falhou. Tal fracasso é demonstrado no aumento da emissão de CO2 per capita no mundo, que foi de 4,1T em 1997 para 4,7T em 2022.

A economia ecológica tem claro que a crise econômica e a crise ecológica têm a mesma origem: um sistema que mercantiliza tudo – terra, água, ar e seres humanos – e cujo único objetivo é a expansão dos negócios e a acumulação de lucros. Nesse sentido, Segundo Löwy (2013) não há como enxergar o sistema econômico que causou a presente degradação global como a solução para os problemas que ele próprio foi responsável por gerar.

Portanto, um novo paradigma se faz necessário no cenário internacional contemporâneo: rejeitar a lógica neoliberal de acumulação e exploração predatória e buscar uma coevolução mais harmoniosa da sociedade, englobando aspectos humanos e naturais como elementos da construção de uma ordem social mais justa. A alternativa a isso é enfrentar as consequências irreversíveis de uma crise ecológica e social que devasta a vida – humana e/ou não – no planeta.

Nesse contexto, o movimento de decrescimento se coloca como medida alternativa de combate às mudanças climáticas, e consequentemente, à problemática do agravamento de doenças. Nas palavras de Jason Hickel (2020): “Decrescimento é uma redução planejada do consumo de energia e recursos, projetada para trazer a economia de volta ao equilíbrio com o mundo vivo de uma maneira que reduza a desigualdade e melhore o bem-estar humano”.

O caso brasileiro ilustra bem a tese de que o crescimento econômico não necessariamente se traduz em desenvolvimento. Apesar do crescimento da economia ao longo da sua história, o país viu aumentar desigualdades, vulnerabilidades e degradação ambiental. Nem sempre é assim. É possível que o  crescimento econômico se traduza em desenvolvimento, porém essa correlação depende de um movimento intencional de construção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Pode-se então adotar um modelo de “Decrescer crescendo”, ou crescer o setor dos serviços, as energias renováveis, os transportes públicos, a economia social e solidária, a humanização das megalópoles e as agriculturas familiares e biológicas. Simultaneamente, será preciso reduzir o consumismo, a alimentação industrializada, a produção de objetos descartáveis, a dominação dos intermediários sobre a produção e o consumo, o uso de automóveis particulares e o transporte rodoviário de mercadorias (em favor do ferroviário), dentre outras medidas.

 

4. Conclusão

 

Após um desastre natural, gasta-se muito em remediações e auxílio, porém tem se investido pouco em ações de mitigação e pesquisa. Quando Bolsonaro corta 93% da verba para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, ou quando o prefeito Sebastião Melo não investe um real na prevenção contra enchentes da prefeitura de Porto Alegre, é a maneira neoliberal de pensar o Estado que prevalece. É a retórica de que diminuir o poder público o torna mais eficiente, o que não tem se materializado na realidade. Nesse sentido, não há como conceber uma solução que não discuta a estrutura política e econômica que permeia a governança ambiental e que vem se mostrando como constante no Brasil e no mundo. 

 

Os recentes incêndios que a imprensa chama de “florestais” mas que, na verdade, são em diversas coberturas vegetais do ambiente rural, causam uma enorme perda da biodiversidade na Amazônia e no Pantanal. Mas, para além disso, acarretam perdas bilionárias para a produção de gado, soja, cana-de-açúcar, milho e outras culturas. Ademais, esses eventos vão aumentar o preço de diversos alimentos ao consumidor final, e vem pressionar para cima a taxa de inflação. Por fim, a poluição atmosférica fez de São Paulo a cidade com o ar mais poluído do mundo por três dias seguidos, até a data da publicação deste texto. O custo para a saúde humana e animal de um ar carregado por partículas em suspensão ainda é mais um valor a ser descoberto mas que, afinal, além de acabar pesando no bolso dos cidadãos irá frear o desenvolvimento econômico que é, ele mesmo, a causa-raiz dos desastres ambientais.

 

Conclui-se, portanto, que a problemática apresentada há de ter um caráter global, na medida que impacta a dinâmica da saúde em diferentes esferas e de diferentes maneiras, mas que transfigura-se como um processo que atinge 70% dos trabalhadores ao redor do mundo. Dessa forma, na busca por um enfrentamento ao atual modelo econômico e ecológico global – predatório e poluente, independentemente da estratégia adotada, é essencial reconhecer que tais questões devem ser compreendidas e abordadas sob uma perspectiva global. Para tal, emerge a importância dos regimes internacionais e das negociações informadas pela política econômica, que mesmo sendo alvos de constantes críticas e incertezas, mostram-se como a alternativa mais plausível para resolução do problema em questão.

 

Referências

 

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