Ano V, nº 89, 23 de novembro de 2024
Por Olympio Barbanti (Imagem: MMA/Governo Federal)
Realizada em outubro-novembro, na Colômbia, conferência bianual conseguiu progressos na regulamentação global de conservação da biodiversidade. Porém, diante da degradação acelerada, o futuro da biodiversidade do planeta é sombrio.
Estivesse presente, Eric Hobsbawm poderia escrever sobre a era das incertezas. Em um quadro internacional de reconfiguração da polaridade, concomitante com a falência evidente dos preceitos neoliberais e com impactos ambientais múltiplos, os acordos internacionais atuais parecem textos borrados com o chamado “pincel atômico” sobre papel de seda. Ainda assim, são necessários, imprescindíveis. No momento, são a opção que nos resta.
A crise climática interage com a perda da biodiversidade que ocorre em “escala industrial 4.0” – agora turbinada pelo uso de inteligência artificial. Juntos, esses processos se associam à desertificação, à acidificação dos oceanos, à poluição do espaço orbital e outros vários processos que vão rapidamente transformando esse lindo planeta azul em um ponto de lixo acumulado sobre terra morta na Via Láctea – talvez lar de Oizus, espírito que na mitologia grega personificava a angústia, a miséria e a tristeza.
Felizmente existem aqueles que lutam persistentemente em prol dos bens comuns – coletivos e difusos. Assim, seguimos na expectativa de que alguma conjunção astral-política mova adiante acordos ambientais. Um deles, ocorrido no final de outubro deste ano, passou despercebido da imprensa brasileira: a importante conferência mundial da biodiversidade.
Realizada em Cali, Colômbia, entre 21 de outubro e 1º de novembro de 2024, a 16ª Conferência das Partes (COP 16) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) pretendeu estabelecer um marco na agenda global de conservação. O evento reuniu representantes de quase todos os países existentes, com o objetivo principal de avançar na implementação do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (2022–2030) e lidar com os desafios críticos impostos pela perda acelerada da biodiversidade.
O Marco de Kunming-Montreal (em inglês, Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework (KMGBF), adotado na 15ª Conferência das Partes (COP) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) em dezembro de 2022. Ele foi aclamado como um marco histórico para a conservação da biodiversidade e acordado por 195 países. Sendo parte do um conjunto de definições, critérios e metas denominado Global Biodiversity Framework (GBF) o Marco consiste em quatro objetivos que estabelecem uma visão para 2050 de um mundo vivendo em harmonia com a natureza e 23 metas orientadas para a ação destinadas a deter e reverter a perda de biodiversidade até 2030.
Uma parte central das discussões sobre biodiversidade refere-se tanto à conservação da mesma como ao uso dos recursos da biodiversidade, o que implica reconhecer a importância do conhecimento tradicional das comunidades indígenas e locais que são detentoras das principais áreas nas quais a biodiversidade ainda permanecem conservadas, em larga escala.
O prazo do Marco é o ano de 2030, quando devem ser atingidos os objetivos de conservação de 30% das áreas terrestres e marinhas; proteção de, pelo menos, 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos e ampla restauração e recuperação de ecossistemas danificados.
Para tanto, o Marco aponta a necessidade de realizar a integração da biodiversidade em políticas setoriais, como, por exemplo, promover a integração da conservação da biodiversidade em setores como agricultura, pesca e silvicultura. Para além da dificuldade de convencimento de atores tais quais os ruralistas brasileiros, há o óbice de que a conta de tais medidas soma US$ 200 bilhões por ano.
Uma dimensão central das discussões que chegaram à COP 16 no mês passado refere-se a critérios para o pagamento dos benefícios oriundos do uso sustentável da biodiversidade. Trata-se de uma discussão complexa, e para ser compreendida é necessário retornar ao Protocolo de Nagoia,
O Protocolo de Nagoia estabelece obrigações essenciais para suas Partes contratantes tomarem medidas em relação ao acesso a recursos genéticos, repartição de benefícios e conformidade. A dimensão de acesso refere-se a criar certeza jurídica, clareza e transparência na exploração de recursos da biodiversidade, assim como criar um sistema de emissão de licença para acesso e realização de pesquisas.
Um ponto fundamental do acesso é a consideração da importância dos recursos genéticos para garantir alimentos livres de “pragas” e uma agricultura que garanta a segurança alimentar das populações ao redor do mundo.
O aspecto central da dimensão de conformidade é aquela que demanda de países signatários do acordo que o façam compatível com a legislação doméstica ou requisitos regulatórios nacionais. A conformidade envolve diversos outros aspectos técnicos quer não serão tratados aqui.
A dimensão de repartição de benefícios – que podem ser monetários ou não monetários – tem sido uma das mais controversas, e que, finalmente, teve avanço no Marco de Kunming-Montreal. No nível doméstico, repartição implica a divisão justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos com a parte que “fornece” tais recursos.
No Brasil tais “fornecedores de recursos da biodiversidade” são aqueles que possuem áreas de vegetação natural em larga escala e que majoritariamente são populações indígenas e tradicionais. A operacionalização do compartilhamento depende de termos acordados por todas as partes.
A repartição de benefício do uso da biodiversidade está ligada a uma questão central que foi tratada pelo OPEB há dois anos. Em outubro de 2022 o Observatório publicou o texto A aprovação de Bolsonaro ao Protocolo de Nagoia e o controle sobre Informação de Sequência Genética Digital, que pode ser compreendida como um tipo de dado que se refere à estrutura e função do genoma de um organismo. Naquele texto, destacava-se que somente após a retificação feita por Bolsonaro o Brasil passou a fazer parte do Protocolo.
Não foi por acaso ou amor à natureza que Bolsonaro fez valer o Protocolo de Nagoia junto à legislação brasileira. Ocorre que a rodada de negociações da CDB (COP15) realizada em Kunming e em Montreal prévia analisar “a implementação dos protocolos da CDB referentes à repartição justa e equitativa dos benefícios do uso da natureza e do transporte, manuseio e rotulagem seguros de Organismos Vivos Modificados”. O interesse do Ministério do Meio Ambiente, na gestão Bolsonaro, era duplo.
Primeiramente, a assinatura do protocolo era necessária para assegurar com firmeza jurídica o que já estava previsto na CBD: que os países têm soberania sobre o patrimônio genético existente em seu território na data da ratificação do Protocolo, e que outros Estados somente podem ter acesso a esse patrimônio mediante o consentimento prévio pelo país soberano.
Tal garantia jurídica, demandada pelo agronegócio nacional, visava estabelecer que não pudessem ocorrer taxações retroativas de espécies exóticas produzidas pela agropecuária brasileira – sendo que aproximadamente 90% da produção brasileira é baseada em vegetais e animais que não têm origem no território nacional.
Nesse ponto, bolsonaristas, o agronegócio e ambientalistas estavam de acordo. Se não houvesse essa “nacionalização por decreto” da biodiversidade existente no Brasil em 2022, uma interpretação mais ampla levaria à aplicação do princípio de repartição de benefícios de tal forma que o Brasil teria que pagar a países nos quais (provavelmente) tiveram origem plantas e animais utilizadas(os) aqui para produção de commodities: como a soja (China), o café (Etiópia) e a cana-de-açúcar (Nova Guiné).
O segundo ponto, no entanto, era muito contencioso. Ocorre que na ocasião da criação do Protocolo de Nagoia, os recursos genéticos eram físicos, e assim era mais fácil controlar o transporte e a comercialização desses recursos. Com o desenvolvimento científico, a informação genética sobre uma planta, por exemplo, ficou mais importante do que a planta em si.
A discussão era, portanto, como conciliar a transferência de informações de sequência digital, ao mesmo tempo em que fossem protegidos os interesses financeiros e culturais das nações e comunidades onde esses dados se originam. Na COP 15 foi estabelecida uma meta (número 13) para o Marco de Kunming-Montreal, mas as entrelinhas de um possível acordo sobre DSI ficou para a COP 16, que começou com o mandato de adotar uma decisão sobre como deve operar o mecanismo multilateral para a partilha justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de informações de sequência digital (DSI) de recursos genéticos, incluindo a criação de um fundo específico para financiamento de ações.
Embora um acordo final sobre DSI não tenha sido obtido, ocorreram avanços significativos. Foram definidos alguns pilares do mecanismo DSI. Ele deve (i) gerar mais benefícios, tanto monetários quanto não monetários, do que custos; (ii) fornecer segurança jurídica e clareza para provedores e usuários de informações; (ii) não prejudicar a pesquisa e a inovação (um tema muito apoiado pela indústria, por exemplo, a coalizão japonesa de empresas de bioeconomia); (iv) garantir acesso aberto aos dados; (v) ser complementar a outros instrumentos de acesso e compartilhamento de benefícios; e, finalmente, (vi) levar em consideração os direitos dos povos indígenas e comunidades locais, incluindo o conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos que eles possuem.
Para a ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, “[e]m relação ao DSI, nós queremos um mecanismo novo, já que se tratam de recursos privados. O dinheiro que vem das empresas para o pagamento pelo uso dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados não é uma doação, é um pagamento legítimo. O DSI é, de fato, um tema técnico muito complexo, mas é também um tema imperativamente ético, pela obrigação de se reconhecer os conhecimentos e o domínio das populações tradicionais. Quando temos um compromisso ético, a resposta técnica a gente encontra e é isso que os negociadores estão fazendo”.
Apesar de um avanço parcial em relação ao DSI, os países na COP-16 decidiram pela criação de um novo fundo global, exclusivo para a proteção da biodiversidade, adicional ao já existente Global Environment Facility (GEF), gerido pelo Banco Mundial. Denominado Fundo Cáli, o novo mecanismo, no entanto, não foi regulamentado, o que deve ser objeto de discussão até a próxima COP 17, em 2026. A delegação brasileira, acompanhada do movimento indígena, obteve em conjunto com outros países o reconhecimento de que 50% dos recursos deste novo fundo devem ser destinados a políticas e projetos de conservação da biodiversidade com ampla participação, ou mesmo via financiamento direto, de povos indígenas, afrodescendentes e comunidades locais, como medida efetiva de reparação histórica. Segundo o governo brasileiro, esta referência é importante e inédita para um documento oficial do sistema ONU.
No entanto, os setores econômicos de fármacos, suplementos alimentares e de saúde, cosméticos, sementes transgênicas, dentre outros, que se enquadram nas regras de DSI, defenderam a não obrigatoriedade da contribuição de suas empresas ao Fundo Cali.
Enquanto a degradação ambiental continua queimando florestas e destruindo biomas variados ao redor do mundo, os avanços de proteção e uso sustentável seguem avançando a passos miúdos, na expectativa ilusória de que a globalização neoliberal possa / queira pagar pelos custos que impõem à natureza. Oizus parece ser o verdadeiro espírito do capitalismo.