Ano VI, nº 94, 06 de fevereiro de 2025
Por Luciana Elena Vazquez, Ana Carolina Carvalho de Oliveira, Andressa Yukari Souza Nakaema, Ariel Elliot Salles dos Santos, Camila Micheletti Flores, Cecília Fantini, Fabíola Lara de Oliveira, Larissa Carvalho Reis, Luiza Molina Alvarenga, Rafaela Castilho, Rayssa Dias Silva (Imagem: Jamile Ferraris/MJSP)
A COMIGRAR, Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, emerge como um marco institucional no Brasil, reunindo diversos atores sociais, incluindo migrantes, refugiados, apátridas, pesquisadores e movimentos sociais, para a construção de políticas públicas inclusivas e eficazes. Criada com o objetivo de reunir migrantes, profissionais, pesquisadores, servidores públicos, estudantes, docentes e movimentos sociais para debater e propor políticas públicas para a população imigrantes no âmbito nacional, a conferência desempenha um papel essencial na promoção de uma cidadania plena e no fortalecimento dos direitos humanos no país. Desde sua primeira edição, em 2014, até a segunda, em 2024, a COMIGRAR reflete o compromisso em ampliar a representatividade e a participação direta dos grupos envolvidos, evidenciando a importância de discussões colaborativas e propostas concretas na formulação de políticas migratórias que respondam às demandas sociais contemporâneas. A 2ª edição abordou – direta ou indiretamente – temas como, a questão do direito ao voto de imigrantes no Cone Sul, onde destaca uma importante lacuna no Brasil em comparação com seus vizinhos. Enquanto países como Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai já permitem o sufrágio de estrangeiros em eleições locais sob condições específicas, o Brasil continua a restringir esse direito, com exceção feita aos cidadãos portugueses em condições de reciprocidade.
A I COMIGRAR ocorreu entre os dias 30 de maio e 03 de junho de 2014, tendo reunido 788 pessoas para discutir a Política Nacional de Migrações e Refúgio na etapa nacional. Por isso, é considerada um marco institucional, por ter influenciado na criação da Lei de Migração (Lei Nº 13445), que revoga o antigo Estatuto do Estrangeiro (Lei Nº 6.815), instituído no período da Ditadura Militar. Apesar disso, a II COMIGRAR ocorreu somente 10 anos depois, entre os dias 08 e 10 de novembro de 2024, em Brasília.
O que foi discutido em 2024
Tendo o tema como “Cidadania em Movimento”, a II COMIGRAR reuniu cerca de 700 pessoas na etapa nacional. Refugiados, migrantes e apátridas elegeram cerca de 60 propostas para guiar a construção de política nacional que cercam o refúgio. Foi dividida em 2 etapas e teve 6 eixos temáticos. Conforme o documento de “Propostas priorizadas – Plenária Final”, temos:
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Igualdade de tratamento e acesso a serviços públicos: o primeiro eixo destacaram-se propostas que visem garantir a participação igualitária de migrantes, refugiados e apátridas nas políticas indigenistas, bem como promover o acesso a serviços públicos, entre eles, de saúde, educação, habitação e assistência social . Com isso, busca-se diminuir as barreiras da burocracia administrativa, que possam restringir acesso aos direitos desses sujeitos.
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Inserção socioeconômica e promoção do trabalho decente: o segundo eixo as propostas tem como objetivo promover políticas de trabalho decente, a fim de combater exploração trabalho analogo a escravidão ou discriminação, simplificando os processos de revalidação de diplomas, criando programas de capacitação, e, instituir apoio para empreendedores. Deste modo, pretende-se criar mecanismos de proteção contra a precarização nas relações laborais.
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Interculturalidade e diversidade: o terceiro eixo tem como foco incorporar e valorizar a diversidade cultural em materiais de ensino, através da priorização de contratação de mediadores interculturais e tradutores. Assim, possibilitando o diálogo intercultural e integração social ao proporcionais espaços mais inclusivos.
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Governança e participação social: o quarto eixo tem como intuito é os mecanismos de governança e que possibilitem a participação ativa de migrantes, refugiados e apátridas no que tange os processos de formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas. Sendo assim, proporcionando maior representação política nas estruturas institucionais.
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Regularização migratória e documental: o quinto eixo tem como propósito simplificar os processos que dizem respeito à regularização migratória, de modo a promover a desburocratização para obtenção da documentação necessária que garanta os direitos básicos de migrantes, refugiados e apátridas. Logo, possibilitando a proteção da dignidade humana.
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Enfrentamento a violações de direitos: por fim, o sexto eixo busca criar mecanismos de proteção e enfrentamento às violações de direitos que migrantes, refugiados e apátridas sofrem constantemente em decorrência do racismo, xenofobia, violência de gênero e exploração. Dessa maneira, produzindo e implementando políticas públicas como, por exemplo, campanhas educativas e garantir serviços especializados de atendimento e denúncia, sobretudo para grupos vulneráveis.
Comparação entre as edições
A Conferência Mundial sobre Migração e Refúgio (COMIGRAR) tem sido um espaço importante para discussão e criação de políticas públicas relacionadas à migração, aos refugiados e aos apátridas. Neste sentido, realizamos uma análise comparativa entre as duas edições da COMIGRAR, que aconteceram em 2014 e 2024.
A 1ª COMIGRAR, realizada entre os dias 30 de maio e 1º de junho de 2014, teve como foco principal a consolidação dos direitos dos migrantes, refugiados e apátridas no Brasil, além de fomentar um espaço de diálogo sobre a elaboração de políticas migratórias. O evento contou com a presença de acadêmicos, especialistas e representantes de ONGs, mas priorizou uma abordagem teórica, com discussões mais centradas nos direitos humanos e nas condições dos migrantes, sem um grande destaque para ações práticas. Por sua vez, a 2ª COMIGRAR, que ocorreu em Brasília de 8 a 10 de novembro de 2024, teve como tema central a “Cidadania em Movimento” e buscou aumentar a visibilidade dos desafios da migração forçada, além de abordar questões referentes à proteção de grupos vulneráveis, como mulheres, crianças e LGBTQIA+.
Quanto à estrutura e à metodologia, a primeira edição foi voltada para mesas redondas e grupos de discussão acadêmica, onde especialistas e representantes de organizações internacionais trouxeram suas análises sobre a migração no Brasil. Embora o evento tenha sido importante para dar visibilidade às questões migratórias, a participação direta de migrantes e refugiados foi restrita, e as discussões se concentraram mais em aspectos teóricos e na formulação de propostas gerais. A 2ª COMIGRAR, em contraste, adotou uma metodologia mais inclusiva e participativa. A conferência abrangeu uma série de conferências regionais preparatórias, oficinas culturais e mini plenárias, que possibilitaram a participação ativa de migrantes, refugiados e apátridas na elaboração das propostas de políticas públicas. Além disso, o evento foi planejado para ser mais acessível, assegurando maior diversidade nas discussões e ampliando a participação dos grupos marginalizados.
Nesse viés, a edição de 2024 registrou um expressivo aumento na participação de migrantes e refugiados. Cerca de 14.000 pessoas contribuíram na criação do caderno de propostas, com debates regionais e estaduais que auxiliaram na formulação de propostas mais concretas e direcionadas às necessidades dessas populações. Além disso, a abertura em Brasília contou com aproximadamente 700 participantes diretos, que representaram uma variedade maior de atores sociais e políticos, incluindo migrantes e refugiados como protagonistas da discussão.
Apesar de o evento ter gerado discussões relevantes, as propostas em 2014 não estavam suficientemente sistematizadas ou direcionadas para a implementação imediata, mas sim voltadas para o fortalecimento das políticas migratórias pré-existentes naquele contexto, além de uma agenda mais centrada em direitos humanos e na melhoria das condições de vida dos migrantes no Brasil. A edição de 2024 teve uma evolução nesse sentido, com políticas mais palpáveis. Ela resultou na criação de 2.151 propostas discutidas e sistematizadas, das quais 180 foram priorizadas para implementação concreta, com a intenção de transformar as discussões em ações governamentais e sociais. Esse caderno de propostas, que foi amplamente debatido e elaborado pela sociedade civil e pelos próprios migrantes, têm o potencial de impactar diretamente as políticas públicas relacionadas à migração no Brasil. Além disso, a 2ª COMIGRAR trouxe maior visibilidade à questão da migração forçada, ampliando o debate sobre a crise global de refugiados e as políticas de acolhimento.
Sendo assim, essa análise comparativa entre a 1ª e a 2ª COMIGRAR revela um progresso considerável no desenvolvimento de uma agenda mais inclusiva e prática relacionada à migração no Brasil. Enquanto a 1ª COMIGRAR foi fundamental para dar início ao debate e estabelecer as bases teóricas, a 2ª COMIGRAR se destacou pela participação ativa de migrantes e refugiados, pela articulação de propostas mais concretas e pela visibilidade que proporcionou à questão da migração forçada. Essa evolução reforça a luta por direitos e políticas públicas mais inclusivas, e as discussões propostas na 2ª COMIGRAR têm a capacidade de impactar positivamente as políticas migratórias no Brasil no futuro.
Reflexões sobre o papel da gestão municipal
Comumente, quando discutimos sobre as migrações internacionais, analisamos somente o papel dos Estados-nações como agentes de políticas públicas. Contudo, o papel das gestões municipais têm se evidenciado cada vez mais, uma vez que são os principais responsáveis pela administração e acesso a serviços públicos como creches e escolas, serviço social, saúde, etc. Apesar disso, nas proposta de prefeitos(as) e vereadores(as), ainda não são inclusas políticas de acolhimento e que visem assegurar os direitos básicos de migrantes, refugiados e apáticos, pois conforme exposto por Thalita Pires:
“Como a legislação ainda impede que imigrantes tenham direito ao voto antes de se naturalizar (processo que, quando ocorre, ainda é demorado e burocrático), resta claro o porquê de a questão imigratória não ser, também, uma pauta nas eleições municipais.”
Assim, evidencia-se que no Brasil, são necessários avanços no entendimento de migrantes, refugiados e apátridas como sujeitos que devem ter seus direitos assegurados e a promoção da cidadania plena. Logo, os debates não podem ficar restritos à esfera federal, uma vez que a gestão municipal influencia diretamente na integração desses sujeitos na sociedade brasileira.
Direito ao voto de imigrantes no Cone Sul
A 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar), que ocorreu entre os dias 8 e 10 de novembro de 2024 em Brasília, elegeu 60 propostas que orientarão o governo federal na implementação de políticas públicas voltadas para migrantes, refugiados e apátridas¹. Dentre as propostas, uma das que se destaca está englobada dentro do movimento “Aqui vivo, aqui voto”, o qual reivindica o direito de voto para migrantes que não possuem naturalização brasileira.
Nesse sentido, cabe salientar que o tema da Comigrar deste ano foi “Cidadania em Movimento”. Apesar de não ter uma definição fechada, exercer a cidadania inclui ter direitos civis, sociais e políticos. Contudo, Cleto² salienta que o conceito de cidadania, no Brasil, geralmente se correlaciona com o exercício dos direitos políticos, não abarcando necessariamente as categorias dos direitos civis e dos direitos sociais. Visto que o país é um dos únicos países do cone sul que não permite o direito ao voto aos imigrantes residentes em seu território, é válido debatermos sobre a cidadania que está em questão para esses grupos.
Bahten³, ao fazer uma análise comparada das legislações eleitorais dos países do cone sul, explicita que quase todos permitem ao menos que os estrangeiros possam votar nas eleições locais. A Argentina permite o sufrágio de estrangeiros em eleições municipais a depender da província. Já o Uruguai em sua Constituição permite esse direito, assim como a do Paraguai, apesar do requisito de residir no país por pelo menos 15 anos.
Assim, dentre os países do Cone Sul, o Brasil é o único que não garante esse direito aos estrangeiros residentes em seu território, conforme o artigo 14, parágrafo 4ª da Constituição. A única exceção aparece no artigo 12º e contempla somente os portugueses residentes no Brasil, caso haja reciprocidade.
País |
Imigrantes podem votar? |
Esfera de voto permitida para imigrantes |
Requisitos para votar |
---|---|---|---|
Argentina |
Sim |
Local, provincial |
*Depende da província |
Brasil |
Não (apenas portugueses com residência permanente no Brasil e em caso de reciprocidade) |
Nenhuma |
————- |
Chile |
Sim |
Local |
– Vivem no país por mais de 5 anos; – Sem condenações penais; – Maiores de 18 anos. |
Paraguai |
Sim |
Local |
– Estrangeiros residentes; – Maiores de 18 anos. |
Uruguai |
Sim |
Local |
– Boa conduta; – 15 anos de residência no país |
De acordo com Cleto, a Constituição Federal brasileira de 1988 acabou não incluindo esse direito aos estrangeiros como um reflexo do período histórico no qual foi elaborada, em um contexto de transição para um regime democrático, o que pode tê-la deixado com um caráter mais nacionalista. Todavia, no mundo contemporâneo, excluir o imigrante da vida política em nome de uma soberania pura não parece ser lógico. De maneira que eles se tornam mero objeto do poder político local e ficam impedidos de participar das escolhas que afetarão diretamente sua vida.
Logo, a discussão trazida pela 2° Comigrar sobre o exercício da cidadania é fundamental, visto a latente necessidade de ampliar o direito de voto para abarcar as pessoas migrantes, refugiados e apátridas que se estabelecem no país. Assim, o Brasil deveria priorizar essa demanda, assim como os demais países do Cone Sul já fizeram, permitindo ao menos o sufrágio em esfera local. Uma vez que mesmo as decisões tomadas em nível municipal afetam diretamente a vida dos migrantes que aqui vivem e que são tributados como os demais brasileiros. Portanto, essas pessoas deveriam também ter o direito de escolher seus representantes e reivindicar suas demandas, como os demais cidadãos podem fazer no Brasil.
¹GOV.BR. Comigrar elegeu 60 prioridades para migrantes, refugiados e apátridas. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/comigrar-elegeu-60-prioridades-para-migrantes-refugiados-e-apatridas
² CLETO, Juliana. Implicações do direito ao voto aos imigrantes : ameaça à soberania nacional ou efetivação de um direito fundamental?. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/4278
³ BAHTEN, Gustavo Luiz von. O voto de estrangeiros nos países do Cone Sul: Uma análise de direito comparado. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/conjgloblal/article/view/34620/21448