Ano VI, nº 97, 20 de março de 2025

 

Por Thiago Lima*

(Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil)


O ano é 2024. O mundo está há pelo menos 2 anos à beira da Terceira Guerra Mundial, principalmente pela conflagração sobre o território ucraniano e invasão terrestre do território russo, mas com eventos de potencial ignição no Oriente Médio e tensões relevantes nos mares do oriente. Neste contexto, sentam-se à mesa Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e China. O anfitrião é o Brasil, que propõe a eles e outros membros do G20 um esforço colaborativo, um arranjo de cooperação internacional para enfrentar a fome e a pobreza. 


Estas potências, que se enfrentam diariamente nos campos geoeconômico e geopolítico, concluem as negociações com um aperto de mão. Tácito, é verdade, mas ainda assim um acordo que possui pretensões operativas. Outras potências do G20 com rivalidades latentes participam dessa negociação e contribuem para o acordo que, ao final, foi endossado por todos os membros do Grupo. Trata-se da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que hoje conta com cerca de 90 países membros. Como isso foi possível?


Como é comum nos eventos sociais, várias condições impulsionam e permitem a ocorrência dos fenômenos. Neste caso específico, quero chamar a atenção para duas condições. Não o faço com pretensão exaustiva, até porque uma análise mais completa só será possível quando os materiais documentais puderem ser pesquisados e as entrevistas em profundidade puderem ser realizadas, idealmente cobrindo diversos países. Trago os pontos aqui, portanto, como contribuições de alguém que viveu, em alguma medida, o método da “Participação Observante”. Participação esta que está informada por alguns anos de pesquisa sobre o tema da Fome nas Relações Internacionais e que ocorre desde a Força Tarefa Conjunta para o Estabelecimento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza (FT Aliança). Estas contribuições de modo algum pretendem ser conclusivas. Se produzirem um debate, teremos cumprido um objetivo importante, que é avançar sobre a compreensão das possibilidades de enfrentamento da fome e da pobreza a partir do nível de análise internacional.


As duas condições a que me refiro são a crise da governança internacional e o papel do presidente Lula durante a presidência brasileira do G20. Antes de avançarmos sobre ela, cabe uma breve explicação sobre o que é a Aliança.

 

A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza

 

A Aliança é um arranjo de cooperação internacional que tem como membros Estados e Organizações Regionais, e organizações não-estatais, como as Organizações Internacionais (OI) e organizações da sociedade civil (OSC). Empresas não podem participar diretamente da Aliança, mas fundações e filantropias vinculadas a elas, sim. A Aliança não é uma OI stricto sensu. Ela é uma plataforma de facilitação da cooperação internacional. Embora ela possua um órgão administrativo, chamado de Mecanismo de Apoio (MA), e um órgão de aconselhamento, denominado Conselho de Campeões (CC), ela não possui personalidade jurídica completa. O MA será responsável por conduzir as atividades práticas, principalmente o matchmaking, explicado adiante. Seus funcionários serão trabalhadores recrutados por meio de processo seletivo realizado pela Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), onde a maior parte do pessoal estará sediado, em Roma. Outras partes poderão estar em subsedes: Bangkok, Addis Abeba e Washington, D.C., onde os principais Bancos Multilaterais de Desenvolvimento possuem escritórios, incluindo, o Banco Mundial. Todo este corpo administrativo deve ter em torno de 15 pessoas. 

 

O CC é o órgão a quem o MA se reportará. Ele também oferecerá algumas diretrizes gerais e tomará algumas decisões que não cabem ao primeiro, como a elaboração de regras de funcionamento e procedimentos de decisão para o cotidiano. Além disso, cada Campeão do Conselho tem a função de ajudar o Mecanismo de Apoio a destravar negociações que se mostrarem emperradas ou morosas. Por isso, os Campeões e Campeãs deverão ser pessoas de alta influência, daquelas a quem não se recusa uma chamada telefônica, por exemplo. Eles representam as instituições e países que os apontam, e seu trabalho é considerado uma doação à Aliança.

 

O trabalho do Mecanismo de Apoio (MA) consiste em manusear informações dos membros e construir pontes. Funciona assim: sob a demanda de um membro, o MA busca possíveis parceiros internacionais interessados em financiar ou facilitar com conhecimento a implementação de uma política pública ou programa de escala nacional. O MA conseguirá identificar os parceiros para cada demanda porque todos os membros da Aliança informam quais são os setores ou mesmo políticas públicas e programas específicos que estão interessados em implementar nacionalmente e/ou apoiar a implementação por outros. Todas essas informações são catalogadas em três pilares, chamados de Financeiro, Conhecimento e Nacional. Deste, apenas governos podem fazer parte. Atores estatais e não-estatais podem fazer parte dos outros dois. 

 

Porém, o elemento-chave que dota a Aliança de credibilidade é a Cesta de Políticas. Nesta Cesta estão listados instrumentos de política pública que são baseados em evidência. Isto é, são políticas públicas e programas que já foram aplicados e para os quais há evidência de que são efetivos. Estes programas e políticas podem vir acompanhados de exemplos específicos de implementação em países. Por exemplo, Brasil e China enviaram exemplos de como conduzem programas de microcrédito para populações pobres. Assim, os membros da Aliança só podem pedir os serviços do MA para políticas e programas listados na Cesta. Isso, por sua vez, diminui o risco para os atores que queiram apoiar estas políticas com financiamento ou conhecimento, pois não navegarão em águas desconhecidas. Essas políticas e programas são enviados pelos membros da Aliança e devem passar pelo crivo da curadoria da Cesta, atualmente sob responsabilidade do IPEA.

 

Para os países que queiram implementar políticas de combate à fome e à pobreza, a Cesta é um ativo interessante, pelos seguintes motivos, entre outros:

1) Redução de incerteza, como mencionado. 

2) Porque ela reúne materiais baseados em evidência, poupando esforços de desenvolvimento de políticas do zero – e, em última análise, de “reinventar a roda”. 

3) Porque países-membros podem acionar o MA para encontrar possíveis parceiros para implementar as políticas da Cesta. 

 

Estes são motivos nada desprezíveis. Antes da Aliança, um país de baixa renda teria de bater à porta dos agentes de financiamento e conhecimento para buscar parceiros. Para países com recursos humanos limitados, dispor dos serviços gratuitos de funcionários internacionais poliglotas pode ser algo muito útil – estes trabalharão como uma espécie de corretores imparciais, que apresentarão parceiros potenciais. Para os países desenvolvidos, a Aliança permitirá encontrar parceiros com quem dividir os riscos de investir os limitados recursos disponíveis para o desenvolvimento internacional. Além disso, a Aliança tem como nível de atuação as políticas públicas e programas de relevância nacional, ou seja, não aproximará parceiros focados em projetos de nível subnacional ou comunitário.

 

Crise da Governança Internacional

 

A primeira condição para a emergência da Aliança deriva da crise da governança internacional. Há décadas discute-se que os Regimes e Organizações Internacionais criados para lidar com os temas mais substantivos da humanidade não entregam os resultados necessários. Na verdade, desde os anos 1940 essa crítica já vinha sendo feita – que o diga Josué de Castro. De todo modo, é importante notar que a Organização Mundial do Comércio, que é o bastião da ordem neoliberal pós-Guerra Fria, vem funcionando em estado vegetativo, sem condições políticas de se adaptar à dinâmica econômica que ela mesmo ajudou a alimentar. O sistema das Nações Unidas, por sua vez, falha grave e crescentemente com relação ao seu método de ação: o multilateralismo. Se entendermos o multilateralismo como um compromisso difuso dos membros da comunidade internacional para enfrentar os problemas mais graves do mundo selecionados, não de acordo com os interesses nacionais, mas sim pela delegação desta tarefa a assembleias, comitês e funcionários públicos internacionais, fica cada vez mais gritante a deficiência do sistema ONU.

 

Sem buscar atuar diretamente sobre a reforma da governança internacional, de forma geral, e do multilateralismo, em particular, a Força Tarefa partiu da premissa de que, concretamente, são os interesses nacionais e as ações bilaterais os grandes motores da cooperação internacional. A experiência tem demonstrado, contudo, que estes motores dissipam energia e produzem resultados aquém do esperado porque estão dispersos em diversos projetos. Muitos desses projetos são de pequena escala, consumindo as energias dos recursos humanos em diversos tipos de trabalho burocrático e analítico. Não há muita novidade nesta crítica, enunciada pela comunidade da cooperação internacional há muito tempo. Contudo, o que transpareceu nas negociações foi um cansaço de agentes de cooperação reunidos no G20 com este modelo. Cansaço dos financiadores e dos operadores das cooperações. 

 

Em suma, a Aliança pretende atuar em nível aplicado e não no nível da elaboração ou revisão de princípios normativos. Seu corpo administrativo foi montado explicitamente para aproximar parceiros que tenham afinidades, muitas vezes desconhecidas deles mesmos, mas desde que se foquem nas populações mais pobres e famintas. Adicionalmente, o nível de ambição deve ser em nível nacional e, com isso, espera-se obter avanços significativos não apenas em termos das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, mas também no que toca ao aumento da eficiência do trabalho burocrático-administrativo dos agentes de cooperação, que terão que administrar menos projetos simultâneos.

 

O papel dos indivíduos na Política Externa

 

A segunda condição para o surgimento da Aliança foi a liderança brasileira e, mais especificamente, do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste tópico, não me refiro à análise da formulação e implementação da política externa brasileira (PEB), e sim à PEB “do Brasil para fora”. 

 

Neste aspecto, a capacidade de convocatória do Presidente decorre de sua trajetória histórica – como cidadão comum e chefe de Estado-, potencializada pelos capítulos mais recentes de sua injusta prisão, sua libertação e vitória apertadíssima contra o fascismo em eleições democráticas, seguida de tentativa frustrada de golpe de Estado pelo grupo de Jair Bolsonaro. Valendo-se deste capital político, Lula priorizou o combate à fome desde que voltou ao cenário político como presidenciável. Suas falas apaixonadas, indignadas e com conhecimento de causa – tanto pela sua experiência pessoal, quanto pelos seus exitosos mandatos presidenciais na promoção da segurança alimentar e na redução da pobreza nacionais, efetivamente, pareceram ter capacidade de trazer os atores relevantes à mesa de negociação numa posição flexível o suficiente para que se escapasse de impasses, no contexto do G20. Como me disse o vice-presidente do Banco Mundial: “O discurso de Lula tem a capacidade de desnaturalizar a fome e isso nos leva a agir”.

 

A posição individual de Lula, no entanto, só encontrou a força necessária para mover o G20 em razão da presidência brasileira do Grupo. Nesta condição, o país possui um enorme poder de agenda, ainda que não infalível. Este poder de agenda foi habilmente utilizado pela equipe que coordenou a Força-Tarefa Conjunta para o Estabelecimento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Num espaço de seis meses, a proposta inicial se transformou em quatro textos fundamentais, aprovados pelos membros do G20 por unanimidade. O poder de agenda foi utilizado de forma bastante comedida e flexível, fazendo os maiores esforços para incorporar as contribuições dos negociadores estrangeiros e para evitar que as ‘red lines’ apontadas pelos interlocutores se transformassem em sinal vermelho geral. Enquanto isso, parte substantiva da essência da visão brasileira sobre o tema foi mantida, com priorização das populações mais vulneráveis. Encontraram importante eco na comunidade internacional a conexão entre os temas da fome e da pobreza com os da mudança climática e da perda da biodiversidade.

 

Assim, unindo o forte capital político do presidente, com uma proposta de articulação de cooperação internacional considerada promissora, o G20 foi verdadeira caixa amplificadora de objetivos prioritários da PEB. Dito de outro modo, não fosse o poder de agenda da presidência do G20, dificilmente a Aliança teria sido aprovada em tão pouco tempo pelas maiores potências internacionais, ainda mais no contexto geopolítico de 2024.

 

Considerações finais

 

Encaminho o final deste ensaio com duas considerações finais. Em primeiro lugar, o futuro da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza parece promissor, mas depende, efetivamente, de os membros da comunidade internacional procurarem os seus serviços. Para isso, conseguir promover parcerias (matchmaking) relevantes e de impacto logo em seu primeiro ano será fundamental. Será essencial, também, que os países não-membros do G20 – justamente aqueles que mais precisam da Aliança! – passem a confiar nela e a demandá-la. Afinal, o MA deve funcionar sob demanda dos países implementadores. Aliás, em se confirmando a extinção da USAID pelo governo Trump, a Aliança pode vir a ser um serviço ainda mais relevante para os governos que precisam de apoio estrangeiro para implementar políticas de superação da fome e da pobreza, e que se verão abruptamente abandonados pelos Estados Unidos.

 

Em segundo lugar, a experiência da construção da Aliança no G20, sob as duas condições que destacamos, pode fornecer substrato para a reflexão estratégica em torno das duas presidências que o Brasil exercerá neste ano: a dos BRICS e da COP30. Sem deixar de colocar em questão a reforma profunda e estrutural da governança internacional, algo que só ocorrerá em longo-prazo, convém considerar que é possível encontrar possibilidades de cooperação internacional que sejam aplicadas e baseadas no acúmulo de experiências concretas da comunidade internacional. Se o contexto geopolítico foi extremamente árduo em 2024, a perspectiva para 2025 não é mais suave, ainda que por motivos diferentes. Mesmo assim, talvez seja possível identificar intersecções latentes entre os agentes de cooperação que, muitas vezes, a partir de suas experiências profissionais, conseguem localizar lacunas potencialmente preenchíveis com respostas mais pragmáticas. Avanços assim devem ser valorizados em contextos como o atual. Mas, para que isso possa ser relevante, bons projetos podem não ser suficientes na ausência do peso político do Presidente enquanto presidência rotativa dos BRICS e da COP30. Em ambos os processos, parece haver espaço político para associar o combate à fome e à pobreza – duas pautas históricas do Presidente – com o combate às mudanças climáticas e a recuperação da biodiversidade – duas das maiores urgências vitais do nosso tempo. Seria oportuno para a política externa brasileira usar eficazmente o poder de agenda nesses foros para unificar essas quatro pontas e contribuir com avanços concretos e necessários, com todos os limites considerados, num dos tempos mais sombrios da governança internacional.

 

*Thiago Lima – Professor do Departamento de Relações Internacionais da UFPB. Coordenador licenciado do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da UFPB. Foi coordenador, pelo Ministério da Fazenda, na Força Tarefa Conjunta para o Estabelecimento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza no âmbito do G20.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *