Choque tarifário de Trump busca redefinir o comércio mundial

Por Gustavo Botão, Letícia Lelis, Roberto Dalla e Tuany Nascimento

(Imagem: Daniel Torok/ Fotos Públicas)

 

Estratégia visa a reindustrialização e a redução do déficit comercial dos EUA com o mundo

 

Donald Trump, em seu segundo mandato na Casa Branca (2025-2029), tem adotado uma ampla política de aumento de tarifas contra diversos parceiros comerciais, sob a justificativa inicial de  reduzir o grande déficit comercial em bens do país com o resto do mundo. Desde 20 de janeiro, dia de sua posse, o presidente estadunidense anunciou tarifas sobre a China, Canadá, México, países europeus e sobre setores específicos. O ato mais simbólico dessa política foi o tarifaço anunciado em 2 de abril, chamado por Trump de Dia da Libertação, contra a maioria dos países do mundo, impondo as maiores alíquotas tarifárias desde a Tarifa Smoot-Hawley de 1930, que agravou os efeitos da Crise de 1929. As tarifas de Trump também têm sido usadas para ameaçar os países-membros dos BRICS a não avançar com as discussões a respeito de iniciativas de desdolarização.


Antecedentes do choque tarifário de Trump 


Os posicionamentos de aumento tarifário de Trump não são recentes e refletem uma guinada – bipartidária – mais ampla na política comercial dos Estados Unidos nos últimos anos, visando principalmente a contenção da China. Em seu primeiro governo (2017-2021), o republicano Donald Trump iniciou uma guerra comercial contra a China em 2018 e aumentou as alíquotas das tarifas de importação mesmo sobre países com os quais têm relações comerciais superavitárias, como o Brasil, cujos alvos foram o aço e o alumínio, em 2019. Trump também foi o responsável pelo fim das negociações dos mega-acordos da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP em inglês) e da Parceria Transpacífica (TPP em inglês), além de defender a revisão do NAFTA em favor do Acordo USMCA (Acordo Estados Unidos-México-Canadá). No âmbito multilateral, o primeiro governo Trump esvaziou o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC) ao bloquear a nomeação de juízes, priorizando as relações comerciais bilaterais. 


O avanço do protecionismo não foi freado no governo do democrata Joe Biden (2021-2025), que, visando conter o crescimento chinês, aumentou em 100% as tarifas de importação de veículos elétricos (VEs) de origem chinesa em resposta às demandas do setor automotivo estadunidense, vetou a venda da siderúrgica estadunidense U.S. Steel para a japonesa Nippon Steel e conseguiu a aprovação de uma lei que prevê 52,7 bilhões de dólares para a produção local de semicondutores e de uma lei que permitia a proibição do aplicativo TikTok no país. No âmbito multilateral, Biden tentou reavivar a OMC, mas sem abrir mão da contenção dos interesses chineses na organização.


Trump, que afirmou se inspirar no presidente republicano protecionista William McKinley (1897-1901), dobrou a aposta na alta das tarifas em seu segundo governo. Desde os anos 1980 os Estados Unidos são o maior importador do mundo, utilizando a livre emissão de dólares para comprar bens e serviços do exterior e aprofundando o déficit fiscal do país, em um movimento chamado de “déficits gêmeos” (comercial e fiscal). O dólar, valorizado por ser a moeda de reserva internacional, tem por efeito encarecer os produtos estadunidenses e os tornar menos competitivos internacionalmente, acentuando o impulso rumo à desindustrialização do país. Nesse sentido, políticas tarifárias restritivas servem como parte da estratégia de reversão desses déficits, reindustrialização, geração de empregos e de reconfiguração da posição dos Estados Unidos no sistema internacional.


Impactos imediatos  


China 


Desde do início do governo Trump, a China foi alvo de sucessivas medidas comerciais. Em abril, no “Liberation Day”, o governo dos Estados Unidos implementou uma nova alíquota de 34% sobre os produtos importados da China. Essa medida teve um impacto significativo, elevando a carga tarifária mínima efetiva para 54%. Além disso, certos produtos específicos, que já estavam sujeitos às tarifas da Seção 301, poderiam ser taxados em até 76%.


O governo chinês retaliou de forma proporcional, impondo tarifas de 34% sobre todas as mercadorias importadas dos Estados Unidos. Além das tarifas, a China adotou outras medidas de retaliação, visando atingir pontos estratégicos da economia americana. Uma dessas medidas foi a imposição de restrições à exportação de terras raras, um grupo de minerais considerados críticos para a produção de uma vasta gama de bens de alta tecnologia, incluindo baterias para veículos elétricos, componentes eletrônicos avançados e até mesmo equipamentos de defesa. Sabendo deste ponto vulnerável e sua falta de capacidade instalada para produção de celulares, computadores e eletrônicos, Trump excluiu estes produtos de seu pacote tarifário. Também retaliou com a paralisação do acordo de venda dos ativos do Tik Tok.


Apesar da suspensão de 90 dias das tarifas, Trump manteve a escalada. Em novos aumentos, os EUA elevaram as tarifas sobre certos produtos chineses, primeiro para 125% e, depois, para 245% em itens específicos. Beijing também deu resposta, taxando os produtos estadunidenses em até 125%. Dentro dos Estados Unidos, alguns setores que tradicionalmente apoiam Trump, como o agronegócio, já demonstram preocupação com a escalada, devido à alta dependência de exportações de soja para a China.

Essas medidas geraram uma relutância da China em negociar com os EUA, e ao mesmo tempo, sinalizam o empenho da administração americana em reorganizar o comércio internacional.


Canadá 


Ainda que o Canadá não tenha sido contemplado no pacote de tarifas recíprocas, o país vem sofrendo ataques da mesma guerra comercial traçada pelo governo Trump, sendo impactado por tarifas de 25% sobre importação de energia e veículos. O país também foi impactado pelo aumento das tarifas sobre o aço e o alumínio imposto por Trump, sendo o Canadá o maior fornecedor dessas matérias-primas para os Estados Unidos. Os EUA são responsáveis por dois terços de todo intercâmbio comercial do Canadá. 


Tal cenário forçou o Canadá a anunciar a retaliação de 25% sobre produtos dos Estados Unidos, como computadores, equipamentos esportivos e automóveis. As tarifas, somadas à ameaça de anexação por parte dos Estados Unidos, levou ao surgimento de movimentos como o  “Buy Canadian Instead” (“Em vez disso, compre canadense” em português) que incentiva os consumidores canadenses a procurarem por marcas locais, abandonando os produtos origem estadunidense. O Partido Liberal canadense (centro e centro-esquerda no espectro político local) que, antes de Trump assumir, corria o risco de perder as eleições para o Partido  Conservador (centro-direita e direita), assumiu a dianteira nas pesquisas eleitorais em razão do discurso nacionalista anti-Trump. Além das tarifas recíprocas, o Canadá tem avançado com diálogos com a União Europeia para uma contenção das políticas protecionistas do governo Trump. 


União Europeia 


As tarifas impostas por Trump no dia 2 de abril ao bloco europeu foram de 20%, com a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, classificando o ato como “um duro golpe” na economia mundial, que os europeus estão “prontos para responder”. Os Estados Unidos foram o maior importador de produtos europeus, com destaque para produtos farmacêuticos e veículos. O mercado europeu é o segundo maior mercado consumidor do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. 


No mês anterior, os europeus responderam ao aumento de tarifas sobre o aço e o alumínio anunciando tarifas sobre produtos como barcos, motocicletas e uísque tipo bourbon. Trump ameaçou que, caso a tarifação europeia sobre produtos estadunidenses fosse adiante, vinhos e espumantes europeus seriam tarifados em 200%


No dia 9 de abril, o Parlamento Europeu votou um pacote de sanções de 21 bilhões de euros contra os Estados Unidos e um aumento de 25% nas tarifas. Além disso, os europeus têm procurado estreitar laços com a China para resistir às tarifas e fortalecer o multilateralismo, embora se preocupem com uma “inundação” de produtos chineses que iriam para os Estados Unidos em seu mercado. No dia 10 de abril, em resposta à suspensão de 90 dias nas tarifas anunciada por Trump, os europeus também suspenderam sua retaliação.


México


Sob o lema “cooperação, sim; subordinação, nunca”, a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, tem conseguido manter uma relação de cordialidade com Donald Trump, que, por sua vez, já demonstrou admiração por sua capacidade de liderança. Ainda assim, como o resto do mundo, o México também enfrentou ameaças tarifárias por parte dos Estados Unidos. Diante do anúncio das tarifas gerais de 25% sobre aço e alumínio, Sheinbaum, que tem adotado uma postura de negociação com os EUA, reagiu com cautela. Em declaração oficial, afirmou que o México manteria o diálogo e aguardaria o chamado “tarifaço” para então definir qual seria a resposta apropriada às medidas de Trump.


No entanto, o anúncio feito em 2 de abril trouxe uma boa surpresa para o México: o país, juntamente do Canadá, foi excluído das tarifas adicionais impostas pelos EUA. Essa isenção não se deveu à boa vontade de Donald Trump, mas sim aos compromissos estabelecidos pelo Tratado de livre comércio entre México, Estados Unidos e Canadá (USMCA). As tarifas de 25% serão aplicadas apenas sobre os produtos não contemplados pelo acordo. Sheinbaum, por sua vez, pretende manter a via da negociação com Washington, ao mesmo tempo em que implementa uma nova estratégia de fortalecimento da indústria nacional, buscando maior autonomia e competitividade para a economia mexicana.


Vale destacar ainda que Trump tem utilizado a imposição de tarifas não apenas como instrumento de política comercial, mas sobretudo como uma forma de pressão sobre a política externa mexicana. Seu principal objetivo tem sido coagir o governo mexicano a agir de forma mais incisiva em temas que envolvem o combate ao contrabando de fentanil e o controle da imigração irregular. Mais recentemente, Trump voltou a ameaçar o México com novas tarifas em razão de uma disputa pelo compartilhamento de recursos hídricos na fronteira com o Texas.


Reflexos gerais do choque tarifário 


A política comercial do segundo governo Trump busca uma reconfiguração do mercado da potência que servia como centro do sistema econômico mundial desde Bretton Woods por meio de um distanciamento de praticamente todos seus parceiros comerciais em troca da busca de um superávit comercial e uma recentralização produtiva. Os efeitos dessa política podem causar uma retração de 1% no comércio mundial e também resultar em efeitos recessivos para a própria economia estadunidense. Outro custo da campanha tarifária traçada por Donald Trump é o isolamento da economia estadunidense e seu distanciamento das cadeias globais de valor, que pode levar a crises nos hábitos de consumo americanos ao encarecer produtos do dia-a-dia, como alimentos, matérias-primas e combustíveis. Esses elementos podem levar os Estados Unidos a um cenário de estagflação (recessão e inflação conjugadas).


Além disso, outro efeito que surge seguindo às medidas tarifárias aplicadas pelo governo Trump é a busca de outros países por acordos bilaterais, como as aproximações entre China, Japão e Coreia do Sul e Canadá e Europa,simbolizando respostas de históricos parceiros americanos às barreiras alfandegárias impostas. As posturas de Trump também podem afastar países em desenvolvimento da esfera estadunidense e aproximá-los da China, especialmente na América Latina, e incentivar a procura pela desdolarização e diversificação de meios de pagamento, com os efeitos cambiais negativos resultados do tarifaço recaindo especialmente sobre países emergentes. O diplomata brasileiro, Roberto Azevêdo, Diretor-Geral da OMC entre 2013 e 2020, entende que as tarifas de Trump podem ser uma forma dolorosa de provocar reformas na OMC.


Há ainda a possibilidade de que o protecionismo de Trump não leve empresas localizadas fora dos Estados Unidos a instalar suas fábricas em território estadunidense, com essas empresas preferindo burlar as tarifas promovendo novas rotas de comércio, como, por exemplo, no caso da empresa chinesa Foxconn, fabricante dos celulares iPhone, que pretende aumentar sua produção no Brasil para driblar as tarifas de Trump. As empresas Nike e Adidas, que fabricam seus calçados no Vietnã, país mais tarifado por Trump (alíquota de 46%), não têm intenção de se mover para os Estados Unidos e prevêem que seus produtos ficarão mais caros para os estadunidenses. Isso se deve, principalmente, aos altos custos de produção nos Estados Unidos.


No dia 9 de abril, em resposta à instabilidade causada no comércio internacional, Trump anunciou uma pausa de 90 dias nas tarifas de países em que os Estados Unidos impuseram uma alíquota maior que 10%, representando um importante recuo.


A tentativa de reversão dos “déficits gêmeos” levada a cabo por Trump se mostra muito arriscada para os Estados Unidos, pois leva: i) a um abalo nas relações com seus parceiros e aliados, minando a confiança nos Estados Unidos; ii) a um cenário de grande instabilidade e incerteza econômica; iii) a um possível afastamento de países em desenvolvimento da esfera de influência dos Estados Unidos; iv) a uma possível aceleração das discussões acerca da desdolarização e da diversificação de meios de pagamento; v) a um cenário cambial instável; vi) e a uma possível estagflação nos Estados Unidos. 


A guerra tarifária de Trump ainda está se desenrolando e seus efeitos são incertos, mas é possível afirmar que o atual cenário representa um abalo no sistema internacional criado sob a liderança dos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial e, em particular, no sistema multilateral de comércio sob as regras da OMC que, ao completar 30 anos de existência, enfrenta hoje grave crise.

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