Ano VI, nº 99, 17 de abril de 2025
Por Bruna Drudi, Maria Luísa Negrini e Jana Silverman
(Imagem: Unsplash)
O Brasil participou mais um ano da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW), promovida pela ONU, demonstrando seu compromisso e preocupação com os direitos das mulheres, em particular os direitos sexuais e reprodutivos. Contudo, com a ascensão de governos autoritários em grandes potências, o Brasil deverá permanecer firme para nadar contra a maré de ódio e retrocesso.
Os Estados Unidos são caracterizados como sendo o país com maior influência dentro do cenário global das relações internacionais, uma vez que são uma das maiores potências econômicas, culturais e políticas no mundo atual. Compreende-se desse modo que os acontecimentos presentes na sua sociedade irão reverberar por todos os outros continentes do mundo. E com relação a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ocorre da mesma maneira, ações que vem ocorrendo dentro dos Estados Unidos, relacionadas a uma diminuição de direitos, podem ter grandes impactos em outras partes do mundo, incluindo o Brasil.
Em 2022, foram tomadas as primeiras iniciativas desse movimento, com a queda da decisão judicial Roe V. Wade, promulgada em 1973, que outorgia o direito ao aborto para as mulheres em todo territorio estadunidense. A partir disso, cada estado dos Estados Unidos poderia decidir por conta própria se liberariam ou não o direito ao aborto. Essa iniciativa fez com que agora, a prática do aborto esteja totalmente proibida por lei em 12 estados e restrita em mais 29.
Atualmente, com o início do segundo mandato de Donald Trump, essas ações destrutivas com relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ganham força, uma vez que, já em sua primeira semana de mandato, o presidente estadunidense encerrou o apoio financeiro a programas de planejamento familiar em países que se encontram em desenvolvimento. Esses programas são responsáveis pela promoção de direitos sexuais e reprodutivos principalmente para mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade. Dessa maneira, com a falta de financiamento dos Estados Unidos, cerca de 50 milhões de mulheres ao redor do mundo irão perder o acesso a métodos contraceptivos. Essa iniciativa já fez com que diversas clínicas que promovem a saúde sexual e reprodutiva feminina fossem fechadas pelo mundo. Essas decisões políticas ainda não têm impactado diretamente o acesso à saúde especializada para as mulheres no Brasil, mas é possível que o país não fique blindado dos desdobramentos dessa nova política que está redirecionando a ajuda externa estadunidense.
Essas ações ocorrem em decorrência da disseminação de governos de extrema direita, que não buscam como prioridade o sucesso de políticas voltadas para a garantia de direitos de grupos historicamente discriminados na sociedade, como imigrantes, a comunidade LGBTQIA+, mulheres, e afrodescendentes.
Em particular, a ascensão da extrema direita dentro da ordem mundial está promovendo o retrocesso em diversos âmbitos sociais, como a rejeição por parte desses grupos de políticas públicas que buscam fomentar a igualdade de gênero. Esse movimento ideológico tem como base pensamentos conservadores, que buscam disseminar ideias como a de “família tradicional”, e dessa forma os direitos das mulheres são desafiados dentro da esfera política e econômica, além de suas atuações fora do cenário doméstico serem sempre questionadas.
Ao se entender que a extrema direita se encontra em ascensão dentro do cenário global, e que possui como uma de suas principais pautas a manutenção das relações patriarcais dentro das famílias, é visível a ascensão de uma onda recente de ataques frontais contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No Brasil, essa onda política se manifesta na formulação de políticas públicas, que tomam como base o crescimento de discursos antifeministas e a participação do setor conservador, que busca minar direitos sexuais e reprodutivos já conquistados.
Sob esse viés, entende-se a ascensão de propostas como a PEC 164/2012, ação que buscava a proibição do aborto mesmo em casos previstos dentro da legislação, ou o projeto de lei 1904/2024, política que propunha a consideração do aborto como crime de homícido. Essas duas propostas são exemplos de como o movimento conservador se encontra em ascensão dentro do país assim como nas relações globais. Em decorrência do aumento da extrema direita, o governo federal brasileiro se encontra em conflito, pois apesar de propor discussões sobre os direitos femininos no contexto global, suas relações internas tornam o processo desafiador, já que vão contra algumas propostas relacionadas à garantia de direitos sexuais e reprodutivos femininos. Em continuação, será analisada a atuação recente do Brasil nos principais fóruns multilaterais focados na promoção dos direitos das mulheres.
A reunião da Comissão do Status das Mulheres (CSW), um dos órgãos do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), que ocorreu na cidade de Nova Iorque de 10 a 21 de março de 2025, reuniu lideranças de 45 países, incluindo o Brasil, para discutir e reafirmar seus compromissos com a Declaração de Beijing, e de proteger e amparar mulheres e meninas ao redor do globo. O projeto de resolução da 69ª comissão, no terceiro item do documento, traz à luz o fato de o ano atual ser uma oportunidade ímpar de trazer os membros dos Estados para discutir essas questões, com o intuito de reafirmar seus compromissos com a destruição de barreiras para a proteção e empoderamento das mulheres.
Algo que chama atenção é o décimo item:
10. Reconhecer ainda que as mulheres e as raparigas desempenham um papel vital como agentes de mudança e que a concretização do pleno potencial humano e do desenvolvimento sustentável não é possível se metade da humanidade continuar a ser privada dos seus plenos direitos humanos e oportunidades (CSW, 2025, p. 4).
É interessante pensar nesse trecho quando se faz um paralelo entre a realidade vivida pelo Brasil há alguns anos. O compromisso do país com relação aos direitos das mulheres brasileiras está sendo resgatado aos poucos pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando comparado aos governos anteriores de Jair Bolsonaro e Michel Temer. Isso é evidente com a ativa participação do país na 69a conferência, em que Cida Gonçalves, ministra das Mulheres, proferiu declarações em que dava destaque aos feitos do governo Lula para igualdade de gẽnero e proteção de meninas e mulheres. Em seus discursos, ela ressaltou a restituição do Ministério das Mulheres, em 2023, e a aprovação da Lei da Igualdade Salarial e Remuneratória entre Mulheres e Homens (nº 14.611/2023).
Em junho de 2024, o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) divulgou suas Observações Finais com relação aos relatórios periódicos combinados do Brasil em maio do mesmo ano. No documento, o Comitê aborda aspectos positivos e negativos das implementações do Brasil à garantia e proteção dos direitos das mulheres, parabenizando o Estado-Parte por realizar ações de melhoria estrutural e política para mitigar a discriminação contra as mulheres.
Contudo, o comitê traz parágrafos de preocupações. Com relação à violência de gênero contra as mulheres, o comitê se demonstrou preocupado com as altas taxas ainda permanentes de violência de gênero contra a mulher, além do aumento de feminicídios, estupros, e violência doméstica, que fica evidente nos itens 22 a), c), e e). O comitê trouxe como recomendação reforçar medidas para prevenir e punir perpetradores em casos de violência de gênero, além de implementar de forma eficaz a Política das Mulheres Programa Viver Sem Violência, nos itens 23 a) e c).
Apesar das ressalvas feitas pelo comitê, infelizmente ainda não é possível dizer que o Brasil conseguiu mitigar ou abaixar essas taxas. Isso é visível quando os principais meios de notícias possuem como principal temática casos em que a justiça brasileira, apesar da existência de leis como a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), Lei Mariana Ferrer (Lei n. 14.245/2021) e a Lei de Violência Política de Gênero (Lei n. 14.192/2021), ainda apresenta resistência na proteção das vítimas, acobertando os agressores, indo de forma contrária às recomendações da CEDAW. Recentemente, na cidade de Paranaguá-PR, uma jovem vítima de crime sexual, mesmo apresentando as gravações de uma câmera de segurança, em que mostrava ela dizendo “não” pelo menos 11 vezes enquanto era arrastada pelo agressor e posteriormente estuprada, o pedido de prisão do criminoso foi negado duas vezes. Essa ação vai de encontro à resolução da CSW 69, especialmente no item 15 (k), que afirma:
15. (k) Garantir que as vítimas e sobreviventes de todas as formas de violência contra mulheres e meninas, incluindo a violência sexual e de gênero e a violência sexual em conflitos, tenham acesso rápido e universal a serviços sociais e de saúde de qualidade, como serviços psicológicos e de aconselhamento, bem como acesso à justiça, incluindo serviços jurídicos, para acabar com a impunidade; (CSW, 2025, p. 5).
Segundo Petchesky (1996), citado por Corrêa (1999, p.41) – “os direitos sexuais são a criança mais jovem nos debates internacionais sobre o significado e a prática dos direitos humanos, em particular dos direitos humanos das mulheres”. Assim, é fundamental que o governo brasileiro mantenha seu compromisso não apenas no plano teórico, mas que garanta que suas leis e políticas estejam sendo efetivamente aplicadas e respeitadas. Em face do crescimento de movimentos de extrema-direita no panorama internacional, como evidenciado anteriormente no governo Trump dos Estados Unidos, é preciso que o Estado brasileiro se mantenha coerente com os direitos conquistados com muita luta pelas mulheres.
Finalmente, é notório o quanto o Brasil ainda precisa avançar nas questões de gênero, principalmente nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Não há liderança feminina sem que haja proteção e amparo às vítimas de crimes como esses, e não há sensação de segurança enquanto a justiça brasileira permanecer inocentando e acobertando homens que o praticam. O Brasil precisa assegurar a efetiva aplicação de suas políticas, fazendo com que esses direitos sejam exequíveis. Nesse sentido, deve-se não apenas amparar e proteger melhor as mulheres dentro do território nacional, mas também cumprir com os compromissos internacionais adquiridos pelo pais, através de tratados como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará). Espera-se que a maré conservadora atual vindo dos EUA, não desvie o Brasil dessa tarefa crucial.
Referências
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ARAÚJO, Janaína. Lei da Igualdade Salarial: projeto amplia fiscalização do cumprimento da norma que completa um ano. Rádio Senado, 4 jul. 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/07/04/lei-da-igualdade-salarial-projeto-amplia-fiscalizacao-do-cumprimento-da-norma-que-completa-um-ano. Acesso em: 12 abr. 2025.
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