O Banco do Brics e os desafios da desdolarização: um balanço

Ano VI, nº 100, 30 de abril de 2025


Por Alexandra Rodrigues Sanches, Ester Gonzalez de Souza, Maria Eduarda Carbinatto Carita e Ana Tereza L. Marra de Sousa

(Imagem: Ricardo Stuckert/ Agência Brasil)

 

Em um cenário marcado por disputas geopolíticas e desafios estruturais à ordem financeira internacional, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado em 2014 pelo BRICS, tem buscado atender às demandas de financiamento de seus membros, países do Sul Global. Com uma estratégia de desdolarização e aumento do uso de moedas locais, contudo, o banco vem enfrentando desafios. O balanço de sua atuação nos últimos anos mostra que houve avanços, mas que desacordos internos e a própria estrutura do sistema financeiro e monetário limitam os seus objetivos.

 

Criação e funcionamento do NBD

 

Fundado em julho de 2014 por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (grupo conhecido como BRICS), o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) tem como missão financiar projetos que impulsionem infraestrutura e sustentabilidade. Seus investimentos priorizam áreas estratégicas, como energia limpa, transporte eficiente, saneamento básico e ações contra as mudanças climáticas.

 

O NBD financia seus projetos a partir de três fontes principais. A primeira vem das contribuições diretas dos países BRICS, fundadores do banco (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). A segunda é a emissão de títulos verdes (green bonds) – uma espécie de ‘empréstimo sustentável’ captado em mercados globais, em que investidores compram títulos para financiar iniciativas em energias renováveis ou infraestrutura resiliente ao clima. Por fim, o banco amplia sua capacidade por meio de parcerias estratégicas: acordos com bancos públicos (como o BNDES, no Brasil) e empresas privadas, que podem cofinanciar obras em troca de retornos alinhados à agenda socioambiental.

 

Embora tenha sido concebido no contexto da cooperação estratégica entre os países do BRICS, respondendo aos seus anseios pela multipolarização do sistema financeiro, o NBD tem buscado construir uma trajetória institucional autônoma. Legitimada pela frustração dos países em desenvolvimento em relação ao acesso de recursos internacionais, a proposta de criação do banco, formalizada na Cúpula de Fortaleza em 2014, foi uma resposta concreta às dificuldades colocadas pela ordem financeira ao desenvolvimento do Sul Global. O NBD foi estruturado como uma instituição aberta a todos os países membros da ONU. 

 

Mandatários na Cúpula de Fortaleza, em 2014, na qual foi estabelecido o NBD. Fonte: http://www.casarosada.gov.ar/informacion/fotos (Licenciada sob Creative Commons).

 

A adesão de Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos e Uruguai (ainda em processo), aprovada em 2021, à estrutura acionária do banco representa um movimento estratégico de expansão e diversificação que visa posicionar o NBD como uma entidade multilateral de alcance global. Assim, observa-se um duplo caráter em sua identidade: de um lado, uma organização forjada no interior do BRICS; de outro, um banco de desenvolvimento que busca ampliar seu escopo e projeção internacional.

 

Especificidades de um banco do Sul Global

 

Desde sua criação, o banco atraiu a atenção de diversas nações em desenvolvimento devido sua proposta: a de ser uma alternativa às instituições financeiras tradicionais, como o Banco Mundial. Uma das mudanças está em seu modelo de governança. Enquanto no Banco Mundial o poder dos Estados é definido pela contribuição financeira de cada país, no NBD cada país fundador possui 19,42% das ações do banco, o que garante paridade de poder decisório e elimina a possibilidade de veto unilateral.

 

Entre os princípios do NBD está o compromisso de oferecer soluções financeiras sob medida para cada país, sem impor regras ou políticas pré-definidas de forma alheia ao membro. Essa abordagem ganha relevância quando comparada ao modelo tradicional de instituições como o Banco Mundial, frequentemente criticado por vincular empréstimos a condicionalidades rígidas, que já envolveram a necessidade de reformas internas – como privatizações, cortes de gastos públicos ou abertura acelerada de mercados –, medidas associadas a agendas neoliberais que, em muitos casos, geram impactos sociais controversos.

 

De outra maneira, o NBD prioriza o diálogo com as necessidades locais, sem exigir ajustes estruturais como contrapartida. Essa postura permitiu ações ágeis em contextos críticos: durante a pandemia de COVID-19, o Banco concedeu financiamento emergencial de 10 bilhões de dólares, a fim de mitigar os efeitos da emergência de saúde nas economias nacionais dos países membros. Outro exemplo emblemático é a liberação de R$ 5,7 bilhões em crédito destinado à reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes de 2024, direcionados para a recuperação de infraestrutura, habitação e sistemas de alerta climático.

 

Ademais, o NBD inova na centralidade atribuída à sustentabilidade como um dos pilares do banco. Ao lado do compromisso de não imposição de reformas estruturais como condição para acessar o banco, o NBD opera sob três outros pilares:

 

1) Compromisso com metas globais: apoio aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e ao Acordo de Paris, alinhando projetos às metas climáticas dos países membros;

 

2) Flexibilidade financeira: captação de recursos em múltiplas moedas (como renminbi (RMB), rúpias e rand), reduzindo a dependência do dólar e ampliando o acesso ao capital privado;

 

3) Cooperação técnica: troca de conhecimentos entre países para otimizar soluções de desenvolvimento sustentável.

 

Esses princípios orientam a Estratégia Geral do NBD, um plano quinquenal que define prioridades e metas. Entre 2017 e 2021, a primeira estratégia consolidou a atuação inicial do banco. Até dezembro de 2021, o NBD havia aprovado mais de US$30 bilhões em projetos, sendo que os primeiros financiamentos foram realizados em 2016. A carteira de projetos do banco esteve significativamente concentrada em China e Índia, inicialmente, mas a partir de 2020 houve uma crescente participação de Brasil, África do Sul e Rússia (até o início da Guerra da Ucrânia) impulsionada, em partes, pela criação da linha de financiamento emergencial para resposta à COVID-19. Contudo, ainda se mantém quantitativamente a concentração de mais recursos para Índia e China, conforme gráfico 1 abaixo.

 

Gráfico 1 – Portfólio de projetos por país

Fonte: NBD (https://www.ndb.int/projects/)

 

Até 2021, a distribuição setorial dos investimentos do NDB refletiu seu compromisso com a sustentabilidade: mais da metade dos recursos foi destinada aos setores de energia limpa, transporte, saneamento e desenvolvimento urbano. Além disso, cerca de 32% do total aprovado até 2021 foi direcionado à linha emergencial para enfrentamento da pandemia, com o banco se readequando às necessidades concretas dos seus membros no cenário da crise.

 

No que diz respeito à emissão de títulos, o NDB mobilizou aproximadamente US$ 63 bilhões até o final de 2021, sendo 92% denominados em dólares e o restante em moedas locais, como Renminbi (RMB) (5%), Rublo (2%) e Rand sul-africano (ZAR) (1%).

 

Balanço da Estratégia 2022-2026

 

A partir de 2022, a Estratégia Geral do NDB, para o período de 2022 a 2026, passou a consolidar sua atuação como banco de desenvolvimento global, e posicionar-se como líder em infraestrutura sustentável para economias emergentes. As principais diretrizes estratégicas incluíram:

 

·         Alocar 40% do volume total de aprovações a projetos climáticos, voltados à mitigação e adaptação às mudanças climáticas;

·         Expandir as operações não soberanas (sem garantia estatal) para 30% do total de financiamentos, incentivando a participação do setor privado;

·         Aumentar o uso de moedas locais em 30% das operações, reduzindo riscos cambiais e fortalecendo os mercados domésticos;

·         Cofinanciar 20% dos projetos com outros bancos multilaterais de desenvolvimento;

·   Intensificar a mobilização de capital privado por meio de instrumentos financeiros sofisticados e veículos especiais de investimento;

·         Expandir sua base de membros de maneira geograficamente equilibrada, promovendo a diversificação de riscos e o fortalecimento institucional.

 

Passados mais da metade do período ao qual a estratégia 2022-2026 se direciona, é possível efetuar um balanço parcial. A atual presidente do NBD, Dilma Rousseff, assumiu o cargo em março de 2023 (substituindo Marcos Troyjo), com dois grandes problemas: uma crise de liquidez e problemas de governança. O “NBD passou 15 meses sem captar recursos em dólares, de dezembro de 2021 até março de 2023”: a Guerra da Ucrânia e a suspensão de empréstimos à Rússia trouxeram significativas incertezas sobre a atuação do banco. Ainda, havia a falta de um plano interno de governança.

 

Foto de 13.04.2023 – Reunião do presidente Lula da Silva com a Presidência do Novo Banco de Desenvolvimento e cerimônia alusiva à posse da presidenta do NBD, Dilma Rousseff. Foto: Ricardo Stuckert/PR. Fonte: https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/52814234486. (Licenciada sob Creative Commons)

 

Rousseff restaurou o NBD. A governança da instituição foi fortalecida através da criação de um Comitê Executivo, e a liquidez foi restabelecida – US$3,9 bilhões foram levantados nos primeiros quatro meses de mandato de Dilma. A missão de ter mais financiamentos em moedas locais passou a ser um dos objetivos principais do banco. Em agosto de 2023, o NBD realizou sua primeira emissão de títulos na moeda sul-africana, o Rand sul-africano (ZAR).

 

No período entre 2022 e até abril de 2025, trinta e cinco (35) projetos foram aprovados pelo NBD. Contudo, grande parte ainda está em dólar, como é possível observar na tabela 1 abaixo.

 

Tabela 1 – Quantidade de recursos aprovados segundo o tipo de moeda (2022-abril/2025)

Ano

Quantidade de projetos aprovados

Quantidade aprovada em dólares (em milhões)

Quantidade aprovada em outras moedas (em milhões)

2022

12

US$ 1.020,04 (8 projetos)

€ 730 (2 projetos em euro)

¥ 2.992 (2 projetos em RMB)

2023

8

US$ 1.439,3 (7 projetos)

¥ 1.280 RMB (1 projeto em RMB)

2024

13

US$ 1.380,35 (8 projetos)

€ 94 Euros (1 projeto em euro)

¥ 5.266 RMB (3 projetos em RMB)

R 18,5 (1 projeto em ZAR)

2025

2

US$ 75 (2 projetos)

0

Fonte: Elaboração própria a partir de https://www.ndb.int/projects/all-projects/

 

Em perspectiva, os dados da tabela 1 mostram que em 2022, apenas 2 projetos (16,6% do total no ano) foram feitos em moedas locais do país devedor – todos para a China em Renminbi. Já no ano seguinte (2023), apenas um financiamento de um total de oito foi aprovado em moeda local (também para a China em RMB). No ano de 2024, o NBD aprovou quatro financiamentos em moedas locais do total de 13 projetos deferidos – sendo um deles na moeda sul-africana (ZAR), um ano após a primeira emissão de títulos na moeda. Uma curiosidade é que foi realizado o primeiro empréstimo em RMB para projeto fora da China: para o Brasil (¥ 1.425 milhões) em 2024, voltado à empresa CPFL, comandada pela chinesa State Grid Corporation of China (SGCC), visando a modernização da rede elétrica.

 

Até o momento, nenhum projeto de 2025 foi aprovado em moeda local. Dessa forma, cerca de 20% do total dos projetos aprovados no período analisado (2022-abril de 2025) fora feito em moedas locais, em termos de valor, contudo, conforme mostra-se no gráfico 2, abaixo, esses projetos em moeda local (RMB + ZAR) representaram 34% do que foi emprestado pelo banco, significando, assim, que o NBD pode já ter atingido sua meta de providenciar pelo menos 30% dos seus financiamentos em moeda local, apesar de isso se dar só a partir do RMB  (com 19%) e do ZAR (com 15%), e de o dólar (com 54%) representar ainda a maioria.

 

Gráfico 2 – Financiamento do NBD por tipo de moeda (2022-abril/2025)

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em https://www.ndb.int/projects/all-projects/. Os dados para realizar conversões de cada moeda em dólar, considerando o câmbio médio do ano, foram fornecidos por https://www.exchange-rates.org/.

 

Em relação aos financiamentos soberanos e não-soberanos, 28,57% dos realizados de 2022 até este momento se classificam como não soberanos, o que demonstra uma forte aproximação do objetivo estabelecido no Plano Estratégico (30%) para essa modalidade de recurso, mostrando que o NBD tem conseguido ampliar sua atuação. 

 

No que diz respeito à mitigação e adaptação às mudanças climáticas, os dados fornecidos pelo próprio NBD não permitem uma breve análise, uma vez que os projetos aprovados podem ser classificados de mais de uma forma, o que faria necessário uma análise minuciosa de cada um dos 35 projetos aprovados durante o período.

 

Desafios para o presente e o futuro

 

Apesar da crescente expansão de sua influência como uma alternativa ao sistema financeiro tradicional, o NBD ainda enfrenta desafios. A lentidão no processo de admissão de novos membros – aprovados em 2021, mas alguns ainda em fase de integração – representa um fator que limita sua capacidade de ampliação global.

 

Além disso, os empréstimos em moedas locais, ainda estão limitados, nesse ciclo 2022-abril/2025 ao RMB e ao ZAR, uma vez que o NBD ainda não avançou na emissão de títulos em moeda local de todos os seus membros. Em 2023, Rousseff destacou que o NBD já estava em “estágio avançado de obtenção das aprovações necessárias para emitir títulos em rúpias na Índia e também iniciamos estudos legais para nos capacitar a captar recursos em reais brasileiros”. Contudo, como é possível ver no histórico de emissões do banco, não se efetuou ainda nenhuma emissão na moeda indiana ou brasileira.

 

De um lado, a diversificação para além do dólar e do euro esbarra na própria organização do sistema monetário e financeiro internacional, cuja liquidez está mais concentrada nessas moedas, sendo mais fácil captar recursos a partir delas. De outro, entre os países do BRICS, o que possui mais liquidez e tem moeda mais internacionalizada é a China – que é, como mostraram os dados da tabela 1 e gráfico 2, o que mais tem conseguido captações com moeda local. Contudo, essa maior facilidade para captação e centralidade da moeda chinesa (entre as moedas locais dos BRICS) já seria motivo de preocupação por parte da Índia, considerando que isso gera desequilíbrio entre os membros e reforça a centralidade chinesa no banco. 

 

Assim, apesar de no discurso do NBD (e dentro do BRICS) haver certo consenso sobre a necessidade de desdolarização e uso de moedas locais, na prática, ainda que haja avanços, há obstáculos sobre como isso deve ser feito. Esses limites podem levar a subutilização do potencial geopolítico da instituição. Da perspectiva do Brasil, a incorporação do real na emissão de títulos no NBD –  considerando a defesa do governo Lula à multipolaridade financeira e monetária – deveria ser seriamente discutida e avançada.

 

Referências

BANCO CENTRAL DO BRASIL. BRICS. Brasília: Banco Central do Brasil. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/brics. Acesso em: 24 abr. 2025.

Brasil 247. Dilma recupera finanças do NDB e amplia financiamento estratégico a governos e empresas. Publicado em: 15 de março de 2025. Disponível em: https://www.brasil247.com/economia/dilma-recupera-financas-do-ndb-e-amplia-financiamento-estrategico-a-governos-e-empresas. Acesso em: 16 de abril de 2025. 

COSTA, Carlos Eduardo Lampert. Considerações sobre o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, 2023. (Texto para Discussão, n. 2939). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/publicacoes. Acesso em: 16 abr. 2025.

FARINELLI, Victor. Dilma: banco do Brics aumentou empréstimos e reduziu custos. Publicado em: 23 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/23/dilma-banco-do-brics-aumentou-emprestimos-e-reduziu-custos/. Acesso em: 16 de abril de 2025. 

MOREIRA, Assis. Banco do Brics quer fazer primeira emissão em reais ainda neste ano. In: Valor Econômico, 26/08/2023. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/assis-moreira/coluna/banco-do-brics-quer-fazer-primeira-emissao-em-reais-ainda-neste-ano.ghtml 

NEW DEVELOPMENT BANK – NDB. General Strategy 2022–2026: Scaling up Development Finance for a Sustainable Future. Shanghai: NDB, 2022. Disponível em: https://www.ndb.int/about-us/strategy/. Acesso em: 16 abr. 2025.

NEW DEVELOPMENT BANK – NDB. All Projects, 2022–2026. Disponível em: https://www.ndb.int/projects/all-projects/. Acesso em: 16 de abril de 2025.

Painel. Banco dos Brics diz que crise de liquidez em gestão anterior atrasou projetos. Folha de São Paulo. Publicado em: 21 de agosto de 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/08/banco-dos-brics-diz-que-crise-de-liquidez-em-gestao-anterior-atrasou-projetos.shtml. Acesso em: 16 de abril de 2025. 

RAKHMAT, Muhammad Z. Strategic Sustainability: Indonesia’s Green Bet on the “BRICS Bank”. Publicado em: 31 de março de 2025. Disponível em: https://chinaglobalsouth.com/analysis/strategic-sustainability-indonesias-green-bet-on-the-brics-bank/. Acesso em: 16 de abril de 2025. 

SAVAGE, Rachel. Banco dos Brics faz primeira emissão de títulos na África do Sul em moeda local. Publicado em: 16 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/banco-dos-brics-faz-primeira-emissao-de-titulos-na-africa-do-sul-em-moeda-local/. Acesso em: 16 de abril de 2025. 

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