Conexão supremacista: tensões entre África do Sul e os Estados Unidos

Ano VI, nº 101, 14 de maio de 2025  


Por Nathalia de Andrade Costa, Matheus Albuquerque e Flávio Francisco

(Imagem: Gage Skidmore/ Flickr)


Como parte do pacote de controvérsias que envolvem o governo estadunidense, Trump, a partir da influência de Elon Musk e grupos supremacistas, assinou uma ordem executiva em que garante o abrigo a refugiados sul-africanos, abrindo uma exceção em um momento em que a própria administração fechava as portas para a entrada de refugiados de qualquer parte do globo. Nesse sentido, o presidente dos Estados Unidos se sensibilizou com as narrativas que afirmavam existir uma perseguição sistemática da África do Sul a sua minoria branca.


Regime do Apartheid na África do Sul


O apartheid foi um regime político de segregação e opressão institucionalizada, imposto pela população branca contra a maioria negra e, em menor medida, contra a população mestiça e asiática, na África do Sul, em 1948. De acordo com Analúcia Pereira (2008), os atos segregacionistas têm suas origens ainda no século XIX, com a expansão britânica nas províncias do Cabo e de Natal.

Desde o início, havia uma rivalidade anglo-bôer (nome pelo qual os britânicos os reconheciam), que se intensificou com a descoberta de jazidas diamantíferas situadas em Orange, um território bôer. Os bôeres, em maioria ex-fazendeiros, que já estavam em decadência desde a guerra de 1899-1902, passaram a se ver cada vez mais dependentes da atividade mineradora britânica. Frustrados por estarem disputando por postos de trabalho de baixa qualificação com os africanos, começaram a exigir reivindicações trabalhistas, formalizando os ideais da superioridade branca, que seriam posteriormente a base do regime de apartheid.


Em 1910, a África do Sul tornou-se independente da Coroa britânica, trazendo novos marcos racistas para a política sul-africana, como a lei Native Land Act de 1913, que determinava que somente 7% do território nacional seria destinado à maioria negra e mestiça, enquanto 93% das melhores terras seriam entregues aos brancos (Pereira, 2008). Nesse contexto, nascem as periferias de Joanesburgo, como Soweto.


Contraditoriamente, em 1948, no mesmo ano em que se instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), o apartheid surgia na África do Sul, com a vitória do Partido Nacional, acentuando as diferenças raciais e a ideologia racista dos africânderes. Uma década depois, o movimento de resistência do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), inspirado no movimento de não violência propagado por Gandhi na India, inicia campanhas de desobediência civil, lideradas por Nelson Mandela, como  também possibilitou a redação da Carta da Liberdade (1955), documento anti-apartheid. O conflito tomou novas proporções com o Massacre de Sharpeville (1960), que deixou 69 pessoas mortas e 180 pessoas feridas (Braga, 2011), e com a prisão de Mandela em 1964, condenado como terrorista à prisão perpétua no Julgamento de Rivonia. Outro importante marco ocorreu na década seguinte, com a Revolta de Soweto (1976), potencializada pela militância de estudantes negros.


Os primeiros sinais de crise do apartheid começaram nas décadas finais do século XX, com a repercussão internacional dos movimentos de resistência no país, provocou o isolamento internacional, a imposição de sanções e a expulsão da África do Sul de organismos internacionais devido às violações do regime.

Eleito presidente pelo Partido Nacional, Pieter Willem Botha decretou estado de emergência, perdendo o apoio efetivo de aliados expressivos, como os Estados Unidos, o que agravou a crise econômica sul-africana. Em 1989, seu sucessor, F. W. de Klerk, assumiu um país em crise e iniciou uma transição de regime, libertando Nelson Mandela no ano seguinte.


Em 1994, ocorreu a primeira eleição após o apartheid, marcando o fim do regime, com a vitória de Nelson Mandela, o primeiro presidente negro do país. A grande legitimidade de sua liderança lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz, concedido a ele e a Klerk ainda no mesmo ano.


A situação dos africanderês na era pós-apartheid


A transição do regime do Apartheid para a democracia multirracial sul-africana, da perspectiva dos africâneres, tem sido traumática. A sensação que predominou em parte do grupo foi a de perda completa do poder. Com a saída do Partido Nacional do comando, se transformaram em uma minoria étnica desorientada e desapossada do monopólio dos serviços governamentais, desarticulando a hierarquia racial sul-africana. As mudanças no país provocaram uma intensa emigração de africânderes para outros países do continente africano e países de língua inglesa como os Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. A ascensão de Nelson Mandela como presidente da África do Sul criou o temor entre a população branca de uma vingança negra, de modo a gerar um intenso conflito racial. Ainda que os direitos políticos fossem garantidos aos africânderes, o Partido Nacional, em um contexto democrático, não foi capaz de se reinventar sem os aparatos institucionais do governo, restringindo a representação política africânder.


Enquanto descendentes de holandeses que historicamente foram construindo uma língua específica, a transição também foi sentida com uma disputa cultural, já que o inglês passou a dominar como a língua oficial do Estado. Um dos objetivos dos africânderes na era pós-apartheid era utilizar as instituições de ensino que eram segregadas em espaços de resistência para sobrevivência da língua africânder e de outros elementos culturais como o calvinismo (BBC, 2020). Entretanto, o ingresso de negros e brancos de origem britânica nessas instituições inviabilizou a criação de trincheiras de resistência, levando alguns segmentos africânderes, principalmente acadêmicos, a fazer referência a um apagamento cultural no país. Em parte, o discurso sobre o declínio cultural africânder é consequência da dificuldade de se forjar uma nova experiência africânder sem um componente racial, as narrativas que estruturavam o imaginário desse grupo tinham como pilar fundamental a ideia de superioridade racial.


A noção de perda cultural, entretanto, é mais sentida entre africânderes de meia-idade que experimentaram em algum momento da vida o empoderamento propiciado pelo regime do Apartheid. A jovens não revelam a mesma melancolia em relação aos temas da cultura, embora demonstrem orgulho da herança africânder. É necessário, contudo, ressaltar como parcela dessa população passou por um processo de empobrecimento associado ao desmonte de práticas que garantiam privilégios raciais no mercado de trabalho. A pobreza que assola a população branca não é comparável com a pobreza crônica da população negra sul-africana, mas é interpretada como desdobramento de uma sociedade hostil aos africânderes, o que reforça a retórica de um “racismo reverso” na era democrática da África do Sul.


Elon Musk na era do Apartheid 


Elon Musk é sem dúvida uma das personalidades atuais mais comentadas dentro da mídia tradicional e das redes sociais. Isso devido a sua influência, poder econômico e político decorrentes de seus contratos com governos nacionais por meio da SpaceX, a aquisição do Twitter, atual “X” e também por sua empresa produtora de carros elétricos Tesla. Mas por trás da riqueza, das posses e das polêmicas nos quais Ellon se envolve e se interessa em propagar, há um passado repleto de contradições e pouco abordado nas mídias informativas. Trata-se de seu período em sua terra natal: a África do Sul.


Nascido em 1971, em Pretória, Elon cresceu e se desenvolveu na capital e no polo administrativo do Partido Nacional Sul-Africano à época. Elon é filho de um engenheiro sul-africano, Erron Musk, e de uma modelo canadense (Maye Haldeman). Enquanto Erron era filho de um sul-africano e uma britânica, Maye era filha de um norte-americano que residiu anos no Canadá e que se mudou com sua família para a África do sul em meados da década de 1950 (Mercury News, 2016). O pai de Elon, cerca de um ano após seu nascimento, foi eleito para o Conselho da cidade de Pretória, representando à época o partido progressista local. Segundo relatos do próprio Elon, a família viveu em condições muito confortáveis durante sua infância, tendo em vista o sucesso de negócios que seu pai desenvolveu no ramo de engenharia elétrica e mecânica (G1, 2025). O dinheiro garantiu não só uma aposentadoria precoce ao pai, mas também diversas viagens, embarcações e acesso às melhores instituições educacionais aos filhos em meio a um regime político que segregava indivíduos, restringindo direitos e criando caos social nas cidades de maioria negra (The Guardian, 2025).


Elon estudou durante sua adolescência no colégio Pretoria Boys High School. (Mercury News, 2016). Tratava-se de um colégio local de elite, que por um longo período ficou restrito a estudantes brancos. O pai, Erron, em diversas entrevistas comenta sobre o alto padrão de vida usufruído na África do Sul, morando em uma boa casa na região suburbana de Pretória, longe dos conflitos político-sociais decorrentes do regime de apatheid; também cita as diversas viagens de avião,  que propiciaram a participação na exploração de uma mina de esmeraldas na Zâmbia, próximo ao lago Tanganika. Elon Musk já realizou diversos pronunciamentos acerca da mina de esmeralda, em entrevistas e via seu perfil no “X”. Em um passado longínquo há trechos de entrevistas no qual o dono da SpaceX revela seu conhecimento sobre os antigos negócios de seu pai. Porém, nos últimos anos, o bilionário tem negado veementemente a existência.


A questão da mina e do financiamento paterno são tópicos sensíveis ao hoje bilionário, tendo em vista que propicia uma contradição frente ao seu discurso de sucesso auto proporcionado, no qual realizou o pagamento dos estudos no Canadá e Estados Unidos por meio do próprio trabalho fora dos períodos letivos (Snopes apud Twitter/X, 2022). As atuais versões de pai e filho acerca do tema destoam, gerando contrapontos e questionamentos sobre a influência das origens familiares e financeiras na fortuna de Elon. 


As ações de Donald Trump contra a África do Sul


No dia 25 de janeiro, Elon Musk se envolveu, mais uma vez, em uma grande controvérsia ao fazer uma saudação supostamente nazista em uma festa de celebração da posse do presidente Donald Trump. Os apoiadores e simpatizantes do empresário sul-africano interpretaram o aceno como um gesto de empolgação excessiva. Por outro lado, opositores e grupos progressistas entenderam que a saudação nada mais era do que a manifestação de uma postura supremacista natureza nazista. Os críticos levaram em consideração, além do passado marcado por cicatrizes do apartheid, ações e comentários de Elon Musk contra políticas de equidade, diversidade e inclusão. Enquanto proprietário da plataforma “X”, o empresário se manifestou várias vezes contra movimentos progressistas e antirracistas, além de postar mensagens de apoio a grupos fascistas e supremacistas. Em entrevista a CNN, questionou a relevância da questão racial nos Estados Unidos e afirmou apoiar uma sociedade baseada no mérito dos indivíduos (BBC, 2022).


Contudo, se a questão racial, quando levada em consideração a subalternidade de latinos e negros, não parecia ter tanta importância, o mesmo não se poderia afirmar quando o assunto envolvia a população branca. Elon Musk, aproveitando o impacto e a força do Presidente Donald Trump nos primeiros dias na Casa Branca, forçou o governo a intervir em assuntos do seu país de origem. O empresário alegou que as autoridades sul-africanas, através de uma nova lei de terras aprovada por Ciryl Ramaphosa, poderiam causar o genocídio de brancos no país (NBC, 2025). O cenário pintado por Musk previa a expulsão compulsória de africânderes de suas terras e o aumento da tensão racial no país, assim como havia acontecido em Zimbábue.


Assim, a África do Sul, além de sofrer com a alta das tarifas, encarou a pressão de Donald Trump para que recuasse em suas “ações contra a população branca”. O presidente ofereceu abrigo às vítimas africânderes na condição de fugitivos de discriminação racial injusta. Por outro lado, a Ramaphousa argumenta que não há qualquer indício de que haja uma política deliberada de tomada de terras de proprietários brancos, a acusação dos estadunidenses é improcedente. De fato, a população branca é proprietária de cerca de três quartos de terras agrícolas no país. A lei sul-africana, assinada em janeiro, versa sobre a possibilidade do Estado tomar terras privadas sem compensação se for do interesse público.


Na segunda semana de maio, Trump aguardava a chegada dos primeiros “refugiados” que serão assentados nos Estados Unidos (NPR, 2025). A ideia de genocídio não é levada a sérios pelos acadêmicos africanos e está basicamente restrita aos círculos da extrema direita que, mais uma vez, demonstra como a dimensão racial é fundamental para construção do seu imaginário. Ao receber refugiados brancos, Trump acena para grupos ligados à supremacia branca nos Estados Unidos e, também, reforça as teses que enquadram as populações brancas como vítimas de maiorias não-brancas, imigrações e constituição de democracias multirraciais no Ocidente. O governo, dessa forma, coloca em prática uma solidariedade branca que energiza grande partes das bases das extremas-direitas nos Estados Unidos e na Europa.


Referências


ÁFRICA, N. Na África do Sul, cultura foi um importante mecanismo de combate ao Apartheid. Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/na-africa-do-sul-cultura-foi-um-importante-mecanismo-de-combate-ao-apartheid/>.


BBC. Is Afrikaans in danger of dying out?. Mai. 2020. Disponível em: < https://www.bbc.com/future/article/20200514-is-afrikaans-in-danger-of-dying-out>. 


BBC. Don Lemon on an xtremely awkward Elon Musk Interview. Mar, 2024. Disponível em: < https://www.bbc.com/audio/play/m001xfxr>  


BRAGA, Pablo de Rezende Saturnino. A rede de ativismo transnacional contra o apartheid na África do Sul. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. 344 p.

Brasil 247. “Conheça a trajetória de Elon Musk: de mina de esmeraldas na Zâmbia ao ativismo de extrema-direita”. 2024. Disponível em: <https://www.brasil247.com/geral/conheca-a-trajetoria-de-elon-musk-de-mina-de-esmeraldas-na-zambia-ao-ativismo-de-extrema-direita>

‌LEPORE, J. The World According to Elon Musk’s Grandfather. Disponível em: <https://www.newyorker.com/news/daily-comment/the-world-according-to-elon-musks-grandfather>.

LILES, Jordan. “What We Know About Elon Musk and the Emerald Mine Rumor”. Snopes, 2022. Link dispobível em: < https://www.snopes.com/news/2022/11/17/elon-musk-emerald-mine/>.

 

PEREIRA, A. D. Apartheid: apogeu e crise do regime racista na África do Sul (1948-1994). Desvendando a história da África, p. 139–157, 2008.

NBC. How a land law sparked Elon Musk’s accusations of ‘genocide’ against his home country. Fev, 2025. Disponível em: < https://www.nbcnews.com/news/world/south-africa-racist-white-farmers-trump-musk-genocide-ramaphosa-rcna190749>. 


NPR. White South African Afrikaner refugees arrive in U.S. on a government-chartered plane. Mai, 2025. Disponível em: < https://www.npr.org/2025/05/12/nx-s1-5395067/first-group-afrikaner-refugees-arrive>.

OLIVEIRA, Luciana. “A trajetória de Elon Musk”. G1, 2025. Link disponível em < https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2025/01/20/a-trajetoria-de-elon-musk.ghtml#gamer>. 

‌SAVAGE, R. The making of Elon Musk: how did his childhood in apartheid South Africa shape him? Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2025/mar/10/making-of-elon-musk-childhood-apartheid-south-africa>.


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