Nota em homenagem a José Alberto “Pepe” Mujica Cordano (20 de maio de 1935 – 13 de maio de 2025)

Ano VI, nº 101, 14 de maio de 2025  


Por Grupo de Trabalho América Latina

(Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil)


Morre um presidente, nasce um símbolo: a lição latino-americana de José Mujica


Com profundo pesar, o GT América Latina do OPEB recebe a notícia do falecimento de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai, militante histórico da esquerda latino-americana e uma das figuras mais emblemáticas da luta por justiça social, democracia e soberania na região.


Mujica foi mais do que um chefe de Estado. Sua trajetória, marcada por décadas de coerência ética, compromisso com os trabalhadores e simplicidade de vida, expressa uma rara convergência entre prática política e reflexão filosófica. Lutou como guerrilheiro tupamaro durante a ditadura uruguaia, foi preso por mais de uma década em condições desumanas, e, ao sair da prisão, contribuiu decisivamente para a redemocratização de seu país. Como presidente (2010–2015), mostrou que é possível governar com sobriedade, firmeza moral e sensibilidade para os mais vulneráveis.


Mesmo após o fim de seu mandato, Mujica permaneceu como uma voz ativa no debate político latino-americano, frequentemente criticando o consumismo desenfreado, a captura da democracia pelo capital financeiro e a crescente desconexão entre os governantes e o povo. Recentemente, mesmo com a saúde fragilizada, seguiu participando de eventos internacionais e mantendo diálogo com lideranças progressistas, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem compartilhou laços políticos e afetivos.


A morte de Mujica também nos interpela sobre o esgotamento geracional das grandes lideranças populares latino-americanas. Enquanto a nova direita se reestrutura com narrativas antissistema de viés autoritário, os nomes que ainda representam o ciclo progressista da “onda rosa” iniciado nos anos 2000 — como Lula, Cristina Kirchner e Evo Morales — envelhecem sem que, até agora, tenham se consolidado figuras com a mesma densidade simbólica e capacidade de articulação regional. O desaparecimento de Mujica acende, assim, um alerta: é urgente renovar os quadros da esquerda, formar lideranças à altura dos desafios do presente e reconstruir projetos comuns de futuro para a América Latina.


O legado de José Mujica para a América Latina ultrapassa fronteiras nacionais e ciclos eleitorais. Em tempos de desilusão com a política, sua figura tornou-se símbolo de integridade e autenticidade. Seu governo implementou políticas avançadas em temas como legalização da maconha, direitos das mulheres e minorias sexuais, além de consolidar uma diplomacia independente, voltada para a integração regional e a solidariedade entre os povos. Ele recuperou valores históricos do pensamento latino-americano — como o anti-imperialismo, o internacionalismo e o comunitarismo — em diálogo com as urgências do século XXI.


Mais do que gestor, Mujica foi pedagogo político. Suas falas simples, mas carregadas de sabedoria, tocaram jovens, trabalhadores, intelectuais e movimentos sociais de todo o continente. Em uma de suas últimas entrevistas, declarou: “Quando compramos com dinheiro, não estamos comprando com dinheiro. Estamos comprando com o tempo da nossa vida que tivemos de gastar para ganhá-lo”. Sua crítica contundente ao consumismo neoliberal nunca foi abstrata, mas fundamentada numa ética da liberdade concreta: “Sou contra o consumo desenfreado, contra o desperdício, porque isso é roubar tempo de vida das pessoas”.


Mujica entendia o trabalho não como alienação inevitável, mas como parte da vida social que deveria estar a serviço da dignidade humana. Em sua visão, “o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Deve ser a favor da felicidade humana, do amor, das relações humanas, do cuidado com os filhos, dos amigos, do meio ambiente.” Ao dizer que os pobres não são aqueles que têm pouco, mas os que “nunca estão satisfeitos e sempre querem mais”, ele deslocava o debate político para um campo de valores, reconstruindo o horizonte utópico da esquerda em tempos de pragmatismo tecnocrático e mercantilização da vida.


Seu desaparecimento físico, portanto, marca não apenas o fim de uma trajetória individual admirável, mas também o encerramento de um ciclo simbólico para a esquerda latino-americana. A morte de Mujica nos convoca a refletir sobre a renovação de lideranças e a reconstrução de uma utopia latino-americana comum, enraizada na justiça social, na democracia substantiva e na integração regional. Também é um momento para reafirmar o papel da política como espaço de sentido coletivo e não apenas de gestão burocrática ou espetáculo de vaidades.


Neste momento de luto, o OPEB reafirma seu compromisso com os valores que Mujica encarnou: soberania popular, solidariedade entre os povos e construção de uma América Latina mais justa, integrada e emancipada. Sua vida permanece como farol para os que lutam por um futuro onde liberdade, igualdade e solidariedade não sejam apenas promessas, mas práticas concretas.


De guerrilheiro a presidente, de prisioneiro a estadista, José Mujica percorreu uma trajetória que uniu firmeza e generosidade, radicalidade e moderação, coragem e sensibilidade. Viveu entre flores e trincheiras, entre a luta armada e o cultivo de hortas, sem jamais abandonar o povo e suas causas. Falava baixo, mas dizia muito. Possuía pouco, mas oferecia tudo. Sua austeridade não era pose, mas escolha política e ética. Ensinou que a simplicidade é uma forma de liberdade e que o essencial está no que não se pode comprar. Ao partir, deixa um legado imenso, não apenas de feitos políticos, mas de exemplo humano. Seu nome seguirá entre nós, como lembrança viva de que é possível fazer política com dignidade, poesia e sentido.


São Bernardo do Campo, 13 de maio de 2025

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