Ano VI, nº 101, 15 de maio de 2025
Por Laura Pugliesi Rivaben, Osmaik Cardoso do Nascimento, Rian Vieira de Sousa, Tiago Amadei Navarro Barbiellini e Gilberto M. A. Rodrigues
(Imagem: Ricardo Stuckert/ Agência Brasil)
A política externa brasileira passou a refletir uma nova fase de abertura e escuta ativa da sociedade civil. Essa “nova onda” de participação social, retomada em 2023, marca uma transição da diplomacia centrada exclusivamente no Estado para uma diplomacia aberta às vozes da sociedade, dos territórios e dos movimentos populares. A transição tem se manifestado de forma significativa nos debates e reuniões que envolvem o BRICS. Com a presidência brasileira, o país adotou uma postura inovadora ao integrar a sociedade civil em debates antes restritos ao alto escalão diplomático. Essa mudança foi amparada pelo eixo People to People (P2P), uma das frentes do BRICS voltadas à cooperação entre os povos e à institucionalização da escuta social como parte da construção de agendas multilaterais.
Essa valorização da escuta social se materializou em uma série de eventos e processos de consulta realizados ao longo do primeiro semestre do ano. O Ministério da Fazenda, por exemplo, organizou dois encontros presenciais no Rio de Janeiro e em São Paulo, com a participação de diversas organizações da sociedade civil, para discutir as prioridades da presidência brasileira do BRICS. Entre os temas abordados, destacaram-se as questões relacionadas à facilitação do comércio e dos investimentos entre os países membros, a promoção de novos instrumentos de financiamento para o enfrentamento às mudanças climáticas e a cooperação em parcerias público-privadas. Esses encontros evidenciam o crescente envolvimento da sociedade civil nas questões financeiras do BRICS, com destaque para o fortalecimento de um espaço de diálogo e a construção de propostas mais inclusivas e transparentes para o futuro do Grupo.
O Itamaraty tem promovido ativamente o engajamento de movimentos sociais e organizações da sociedade civil na formulação de políticas dentro do BRICS, refletindo o compromisso do Brasil com um multilateralismo mais inclusivo. A presença de pesquisadores do BRICS Policy Center nos Grupos de Trabalho do BRICS People’s Civil Forum 2025 destaca esse movimento, com a participação de especialistas em áreas como ecologia, finanças, inteligência artificial e institucionalidade. O Fórum Civil, um espaço crucial para o diálogo entre a sociedade civil e os governos, tem se consolidado como uma plataforma para a formulação de propostas que são, posteriormente, encaminhadas aos líderes do BRICS. Essas contribuições, que resultam em documentos de posição, abordam temas como a justiça climática e a transição energética, promovendo uma maior participação dos movimentos sociais na definição das agendas de desenvolvimento sustentável.
Como parte desse movimento, a sociedade civil participou da Reunião de Sherpas em abril. Historicamente, este é um encontro fechado às lideranças diplomáticas dos países, o que destaca a quebra de padrão da coordenação brasileira: conceder à sociedade civil um lugar à mesa. Segundo Gustavo Westmann, chefe da Assessoria Internacional da Secretaria Geral da Presidência da República (SGPR) na coordenação do P2P, essa ação assegura a escuta das proposições de movimentos populares, entidades sindicais, representações empresariais, acadêmicas e/ou parlamentares, na diversidade de atores que integram o pilar social do grupo de cooperação do Sul Global. Essa participação gerou propostas que ainda serão postas em documentos oficiais e analisadas nas próximas semanas. Mas alguns pontos que já se sabe que foram abordados são: uma maior participação feminina, uma postura ativa contra conflitos e o papel do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB).
Adicionalmente, cabe registrar o papel do BRICS Think Tank Council (BTTC), liderado pelo IPEA e integrado por instituições e especialistas brasileiros durante a presidência do Brasil. A partir de um processo de consultas baseados em eixos temáticos e da realização de um webinário, o BTTC produziu um documento de recomendações para a presidência brasileira que incluiu, entre outros temas, o desenvolvimento institucional e a transparência dos BRICS, transição energética, mudança climática e as relações financeiras.
Esses processos de consulta e participação refletem a crescente inclusão da sociedade civil nas decisões políticas globais e a busca por uma diplomacia mais plural, que dialogue diretamente com as necessidades e desafios locais.
Origens dessa “nova onda”
Desde 2023, o Brasil tem protagonizado a abertura de conferências de blocos, grupos e Fóruns internacionais para a sociedade civil, por exemplo G20, BRICS, COPs. Identifica-se aqui tanto uma relação com o momento histórico do país, quanto com o objetivo de renovação de sua imagem internacional após um período de isolamento diplomático, devido à repulsa internacional ao governo anterior, agravado pelo fenômeno da pandemia de COVID-19.
A valorização da participação social no Brasil tem raízes profundas nos movimentos populares que resistiram à ditadura militar. A partir do final dos anos 1970, sindicatos, organizações estudantis, pastorais da Igreja e movimentos sociais urbanos e rurais voltaram a se mobilizar, driblando a repressão do regime autoritário em defesa de direitos básicos e liberdades democráticas. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder em 2003, a participação social ganhou nova dimensão institucional. Os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff implementaram mecanismos sistemáticos de diálogo com a sociedade civil, quadruplicando o número de conferências nacionais temáticas e ampliando os conselhos de políticas públicas.
Nos governos do PT, a orientação explícita foi a de governar “com participação popular efetiva” e ouvir “todas as vozes” da sociedade. Lula e Dilma frequentemente destacavam, em discursos, que a formulação de políticas deveria considerar as demandas que vinham “de baixo” por meio dessas instâncias. Entre 2003 e 2016, ocorreram dezenas de Conferências Nacionais emblemáticas, cujas resoluções influenciaram políticas públicas – por exemplo, as conferências de Saúde baseadas na participação social fortaleceram o SUS; a de Educação (2010) embasou o novo Plano Nacional de Educação; a das Cidades gerou subsídios para o Estatuto da Cidade e planos diretores municipais, entre outras.
Após um hiato e desmonte da participação social durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) – período em que diversos conselhos foram extintos ou esvaziados por decreto – o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, vem promovendo uma retomada dessa agenda. Logo nos primeiros dias de governo, em janeiro de 2023, Lula instituiu o Conselho de Participação Social vinculado à Presidência da República, reunindo 68 representantes de movimentos e entidades de todo o país e estabelecendo reuniões trimestrais presididas por ele próprio.
Nesse momento, ao ampliar os mecanismos de participação, o governo pretende melhorar a qualidade das políticas públicas, fazendo com que elas reflitam as necessidades reais da população, especialmente de grupos historicamente marginalizados (mulheres, negros, indígenas, juventude, periferias, LGBTQIA+). O PPA Participativo de 2023 é um exemplo: mais de 85% das propostas mais votadas foram incorporadas ao plano de governo.
O governo também quer levar essa cultura participativa para o plano global, resgatando a sua imagem internacional. Esse é um dos objetivos para que tenha o feito na presidência do BRICS. Ao incluir a sociedade civil nos fóruns do Grupo, busca-se diferenciar o Brasil como um país que propõe uma nova ordem internacional mais democrática, plural e centrada no Sul Global, colocando os povos no centro da geopolítica.
Espera-se que esse movimento se reflita em outros fóruns internacionais e que passem a considerar a opinião da sociedade civil nas tomadas de decisões que a afetam direta ou indiretamente. Assim como já ocorreu durante a presidência do G20 em novembro de 2024. Ainda, os representantes da sociedade civil consideram que a iniciativa brasileira tem potencial para marcar profundamente o BRICS, ao inaugurar um novo modelo de integração das demandas sociais nos seus mecanismos de decisão.
Além disso, essas iniciativas citadas anteriormente, como o P2P e o BRICS People’s Civil Forum 2025, refletem um compromisso concreto com a inclusão de atores não estatais na formulação de políticas multilaterais, sinalizando uma transformação significativa na abordagem do BRICS em relação à governança global. Ao valorizar a escuta ativa e o diálogo com diversos segmentos sociais, o grupo não apenas fortalece sua legitimidade, mas também se posiciona como um modelo de cooperação internacional mais inclusivo e sensível às demandas do Sul Global.
Desafios dessa “nova onda”
Por mais que a voz da sociedade civil esteja influenciando na proposição de documentos que direcionam a política mundial, isso nem sempre significa que as mesmas políticas serão implementadas de forma efetiva. Pode-se fazer um paralelo com a política ambiental, em que mesmo com ampla participação, especialmente de técnicos e especialistas, a pauta avança muito lentamente. No ano passado, durante o G20 Social, houveram críticas quanto aos eventos do grupo serem adjacentes aos eventos principais, inclusive fisicamente apartados, de modo que a participação da sociedade civil ainda se deu em segundo plano.
Outro importante desafio a ser observado é a distância em que a sociedade civil se encontra de estar no centro da tomada de decisão. Na reunião da Trilha Financeira em 24 de março de 2025, uma demanda levantada pela sociedade civil, especificamente o Movimento Nacional de População em Situação de Rua (MNPSR), é de que essa busca de diálogo com a sociedade civil se converta em políticas públicas. Por enquanto, apesar da implementação dos espaços de diálogo com a sociedade civil, sua participação está bastante restrita às formas de “consulta”. As proposições da sociedade civil dentro do BRICS passarão por um processo de análise e seleção que não é feito pela mesma, mas sim por representantes dos governos. Quais filtros serão aplicados nessa seleção? Além disso, por ser um grupo informal, como serão os mecanismos de avaliação da implementação das demandas populares? Nesse sentido pode-se almejar muito mais da participação da sociedade civil na governança internacional, para além de um caráter consultivo que ela atinja o caráter decisório.
O Brasil dá um grande passo para a mudança de paradigmas internacionais ao propor a implementação da participação social nos BRICS, e nos demais grupos e conferências que presidiu e virá a presidir, desde 2023. Isso porque são raros os momentos em que se dá voz à sociedade civil no âmbito internacional e a política externa é comumente avaliada como insulada, excludente e até mesmo secreta. Essa onda brasileira, de trazer para perto a sociedade civil nos seus momentos de protagonismo internacional, mostra sua intenção de contribuir para uma nova ordem mundial, baseada na democracia, inclusão e transparência. Isso resulta em um maior reconhecimento internacional para o Brasil, mas também para o BRICS, que amplia sua legitimidade e compromisso com o Sul Global e o combate às desigualdades.
Referências
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