Ano VI, nº 101, 14 de maio de 2025
Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Julia Lemos, Julia Rodrigues Silva, Lucas Paié, Lucca León Franco, Maria Clara de Faria Lima e Rebeca Borges Rodrigues de Camargo
(Imagem: Daniel Torok/ Fotos Públicas)
O impacto do “tarifaço” de Donald Trump tem gerado intensas discussões na imprensa brasileira, revelando desde desafios econômicos até possíveis oportunidades. Enquanto a grande mídia brasileira debate custos e impactos, veículos de diferentes matizes ideológicos apontam caminhos para o país reagir, diversificar mercados e repensar sua inserção global.
Em seu primeiro mandato (2017-2021), Donald Trump implementou uma agenda protecionista e nacionalista, ancorada no slogan “America First” (América em primeiro lugar, em tradução livre). Com o início de seu segundo governo, as promessas e ações seguiram a mesma linha: medidas anti-imigratórias, discursos antiglobalização e negacionistas, evidenciados pela retirada dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde (OMS), além das tarifas impostas a diversos países, como China e México, sob a justificativa de reduzir o déficit comercial dos EUA e impor reciprocidade aos parceiros comerciais.
A retomada do trumpismo reforçou a ascensão da extrema-direita, que tem conquistado espaço político ao redor do mundo. Apesar da diversidade de grupos e agendas, há características comuns à extrema-direita mundial, como o negacionismo, o conservadorismo e o esvaziamento de pautas identitárias. A extrema-direita norte-americana exerce forte influência no cenário internacional devido à posição de potência hegemônica do país. Em solo brasileiro, essa influência se materializou na figura e no mandato do ex-presidente da República (2019-2022), Jair Bolsonaro, que declarou publicamente sua admiração por Trump. Ambos os líderes possuem discursos e ações convergentes como o negacionismo diante da pandemia de Covid-19, a propagação de fake news sobre os processos eleitorais, além dos ataques à China, apesar do país ser um grande parceiro comercial do Brasil e dos EUA. Contudo, a extrema-direita norte-americana e brasileira, apesar do alinhamento de seus principais líderes, apresentam distinções, como a expressiva presença de militares na política brasileira e o forte viés anti-imigrante na estadunidense.
Apesar do alinhamento ideológico recente, as relações entre Brasil e EUA são históricas e passaram por transformações ao longo do tempo. As relações comerciais entre os dois países se fortaleceram com a abertura do mercado norte-americano para o café, principal commodity brasileira, e ocuparam papel central na política externa brasileira durante o século XX, como destaca Monica Hirst (2006). Como afirma Pecequilo (2018, p. 301), devido à superestimação do poder estadunidense e aos preconceitos sobre o Brasil, as relações Brasil-EUA resultam em um “comportamento pendural do país em direção aos Estados Unidos”, ou seja, uma tendência de aproximações e afastamentos. Dessa forma, o “tarifaço” trumpista, anunciado no denominado “Dia da Libertação”, desenha um novo cenário para a relação bilateral.
Ao lado de 126 países, a tarifa mínima de 10% foi imposta às exportações brasileiras, mesmo com o superávit norte-americano nas relações comerciais com o país, isto é, as exportações estadunidenses para o Brasil são maiores do que as importações. O impacto econômico e político das tarifas no país ainda é incerto e vem repercutindo em diferentes veículos da imprensa brasileira, desde as percepções iniciais até as potenciais oportunidades econômicas, o que será explorado nas próximas seções.
Desde março de 2024, o Grupo de Trabalho “Imprensa e Política Externa Brasileira”, do OPEB, coordenado pela professora Ismara Izepe de Souza acompanha semanalmente a cobertura da política externa em quatro veículos: Folha de S. Paulo, Veja, Oeste e Brasil 247. A metodologia do trabalho envolve a leitura e análise de reportagens, editoriais e artigos de opinião, com foco nas abordagens político-ideológicas sobre a inserção internacional do Brasil. Os veículos foram escolhidos por sua representatividade: Folha e Veja compõem a mídia tradicional de grande projeção; a revista Oeste expressa a visão da extrema-direita, com forte viés opinativo e baixa aderência factual; e o Brasil 247 representa a esquerda, com apoio consistente ao governo Lula também no plano internacional.
O trabalho consiste na catalogação e análise crítica dos conteúdos jornalísticos. Em 2024, o grupo analisou um total de 317 peças jornalísticas (SILVA et al., no prelo). Já em 2025, até o momento, foram registradas 113 publicações. No recorte temático dedicado aos Estados Unidos, foram identificadas, em 2025, 35 publicações, com destaque para palavras-chave como “Governo Trump” e “EUA”, além de “Comércio”. Também aparecem termos como “Deportação”, “Diplomacia Brasileira”, “Tarifas”, “China” e “Amazônia”, refletindo os principais eixos de cobertura em torno da atuação do presidente norte-americano e seus desdobramentos internacionais, inclusive no Brasil. O esforço coletivo tem permitido não apenas mapear a cobertura sobre temas internacionais, mas também fomentar debates qualificados sobre como diferentes campos ideológicos interpretam e instrumentalizam a política externa brasileira. Trata-se de uma ferramenta analítica valiosa para compreender as disputas em torno do lugar do Brasil no mundo e o papel da mídia nessa construção.
A grande imprensa e o tarifaço
A cobertura que a Folha de S. Paulo conferiu ao “tarifaço” – entendido aqui como o pacote de aumentos de tarifas que incidem no comércio exterior – oferece um bom exemplo de como o jornal mobiliza uma retórica de pseudo neutralidade jornalística que, longe de se confundir com ausência de posicionamento, opera como forma de poder simbólico.
Nas reportagens de capa relativas aos tarifaços, por exemplo, predominam vozes de economistas ligados a bancos, consultorias privadas ou think tanks liberais. Com raras exceções, representantes de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores ou especialistas em justiça tarifária aparecem apenas como notas de rodapé ou em trechos que enfatizam a “reação” a um quadro já consumado.
Tal assimetria de fontes sugere que a “expertise” relevante é a do mercado, enquanto os sujeitos diretamente afetados pelo reajuste emergem apenas como espectadores de decisões superiores. Do ponto de vista teórico, tem-se aí o que Hallin (1989) chama de “objetividade estratégica”: a redação mantém a aparência de pluralidade, mas garante que o núcleo da narrativa permaneça dentro dos limites do consenso tecnocrático.
O vocabulário reforça essa moldura. Termos como “ajuste necessário”, “medida inevitável”, “racionalização de subsídios” ou “sinalização aos mercados” naturalizam a política de aumento, apresentando-a como resposta quase automática a imperativos econômicos externos. Ao se referir ao tarifaço, frequentemente se fala em “recomposição de custos” ou “equilíbrio fiscal”, deslocando o debate moral – quem paga a conta e por quê – para um registro técnico supostamente neutro. Nos editoriais e em colunas assinadas por economistas alinhados ao liberalismo, o posicionamento político ganha contornos mais explícitos, ainda que envoltos em retórica moderada. Em termos ideológicos, a Folha ratifica um liberalismo econômico temperado por prudência discursiva, algo que poderia ser rotulado de “conservadorismo cordial”. Defende-se a primazia do mercado e a meritocracia, mas evita-se qualquer retórica abertamente moralista; em vez disso, recorre-se às “leis da economia” para justificar a inevitabilidade das decisões. O efeito é conferir um verniz científico a escolhas que, no fundo, são políticas.
A Folha de S. Paulo encena um equilíbrio, mas esse equilíbrio é construído sobre um viés liberal-conservador implícito. O jornal apresenta o tarifaço como um fato natural da economia, respaldado por especialistas do mainstream financeiro, enquanto confina vozes dissonantes a notas marginais. A linguagem empregada — “inevitável”, “necessário”, “racional” — converte a política em técnica e esvazia o espaço para disputas democráticas sobre quem deve arcar com o ajuste.
Assim, sob a pretensa pluralidade, o veículo consolida a hegemonia de uma visão de mundo que privilegia a estabilidade macroeconômica e a satisfação dos mercados, em detrimento de outras perspectivas de justiça social. Desse modo, a objetividade proclamada converge com um posicionamento político conservador — não vociferado, mas insinuado nas entrelinhas, mantendo a aura de jornal pragmático, técnico e moderado.
Caberia também breves considerações sobre a postura que a revista Veja tem adotado em relação ao “tarifaço”, que é entendido como uma jogada arriscada de um presidente que, mesmo fora do setor privado, continua agindo como se controlasse a banca do comércio global. Ao invés de apostar na sorte, Trump aposta no controle, como revela a frase destacada no texto: “Ser o dono da banca é melhor”. A Veja enxerga essa estratégia como parte de um movimento maior para forçar uma reindustrialização americana, ao custo de tensões internacionais e distorções no fluxo global de mercadorias.
No que diz respeito ao Brasil, a Veja demonstra uma postura crítica, porém auto-referenciada como construtiva. A revista não se limita a denunciar os efeitos negativos do tarifaço sobre setores brasileiros como o de suco de laranja ou as exportações de carne e soja, altamente dependentes do mercado chinês. Ela também aponta as fragilidades estruturais da economia brasileira. A notícia publicada em 25 de abril de 2025, afirma, por exemplo, que “exportar produtos é fácil; difícil é exportar impostos e ineficiências”, evidenciando que o problema não é apenas externo, mas interno. Ao mesmo tempo, há um reconhecimento de que o governo brasileiro tenta agir com racionalidade, buscando contrapartidas como a redução da tarifa sobre o etanol de milho americano, atualmente em 18%.
Em relação à política dos Estados Unidos, a Veja apresenta uma visão ambivalente. De um lado, reconhece que o protecionismo de Trump pode ser parte de uma estratégia legítima para proteger a indústria nacional. De outro, dá espaço para críticas fundamentadas, como as de Jason Furman, ex-assessor de Barack Obama, que afirma que “déficits nem sempre significam que um país está abusando dos Estados Unidos”. A revista também aponta que o tarifaço pode ter consequências internas negativas para os próprios americanos, ao elevar os preços de produtos que hoje dependem de importações, como o suco de laranja brasileiro — essencial para suprir a demanda americana, diante da fragilidade dos pomares locais.
Além disso, a Veja parece defender uma visão de longo prazo sobre a relação do Brasil com os Estados Unidos, que vai além da figura de Trump. A revista reconhece que o comércio exterior dos EUA representa apenas 13% do seu PIB, e que mesmo isolados, os americanos não “morreriam de fome”. No entanto, ela alerta que esse isolamento não seria benéfico para ninguém, nem mesmo para os próprios americanos. Essa análise sugere que, mesmo com líderes nacionalistas, os vínculos comerciais com os Estados Unidos ainda são importantes e devem ser preservados, mas com cautela e estratégia.
Por fim, a Veja enfatiza que, diante do cenário global instável, o Brasil precisa agir com inteligência. A revista defende que o país busque novos mercados — como a União Europeia — e aproveite o momento para discutir reformas estruturais que aumentem sua competitividade. Segundo a Veja, mais do que reagir ao tarifaço, o Brasil deve aproveitar a oportunidade para se reposicionar globalmente e corrigir suas próprias fragilidades econômicas.
A voz da extrema-direita
A revista Oeste aborda o “tarifaço” com foco nas reações do governo brasileiro, em especial as do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A revista direciona o leitor a ser contrário às avaliações realizadas pelo Brasil sobre a política trumpista, enquanto ofusca as explicações dos possíveis impactos dessa medida para o mercado brasileiro.
Reconhecida por sua tendência editorial conservadora e liberal, a Oeste apresenta as críticas do presidente Lula ao “tarifaço” utilizando recortes de suas falas, e as exibe com um teor polêmico e espaventoso, relativizando os motivos principais da crítica realizada pelo governante. A revista contrapõe essa visão quando aponta – injustamente – que o Brasil também adota políticas comerciais restritivas e, portanto, não possui legitimidade para condenar a postura americana. Neste mesmo sentido, as publicações destacam que o “tarifaço” é uma política exercida por Trump para combater o protecionismo internacional, servindo como mecanismo de defesa da indústria americana. É destacado que, enquanto os Estados Unidos aplicam tarifas médias de 2% sobre produtos importados, o Brasil mantém uma média até 5 vezes maior, o que justifica – na análise realizada pela Oeste – a medida imposta por Trump e a descredibilidade das críticas de Lula e do Itamaraty.
Reforçando a necessidade de aplicação dessas super tarifas, as relações dos Estados Unidos com a China são expostas como argumento. A Oeste destaca que o “tarifaço” é visto como um instrumento de pressão contra a expansão comercial chinesa, e registros da queda nas exportações da China após a implementação das tarifas são utilizados como evidência do êxito da política trumpista. Assim como na análise voltada ao Brasil, há uma mensagem implícita sobre a legitimidade da ação americana.
Com a encruzilhada geopolítica destes países, a linha editorial da Oeste aponta a oportunidade do crescimento econômico do Brasil, com foco no agronegócio, através do aumento das exportações brasileiras, que podem substituir o vácuo deixado pelos Estados Unidos e China.
A crítica à China aparece tanto nos aspectos econômicos – como competidor desleal – quanto ideológicos, reforçando o alinhamento da Oeste com uma visão de mundo típica da direita e da extrema-direita. Dentro dessa perspectiva, as publicações enxergam nas políticas de Trump uma oportunidade para o Brasil se reposicionar no comércio global, desde que saiba negociar estrategicamente e romper com o excesso de regulamentações e a dependência do Estado. A Oeste projeta um cenário em que o Brasil poderia ampliar suas exportações e tornar-se mais competitivo, desde que, em sua perspectiva, adote uma postura mais liberal e menos ideológica na geopolítica. Assim, o “tarifaço” não é visto como um obstáculo, mas como uma chance para o país rever sua política e buscar protagonismo econômico.
Uma visão do campo da esquerda
No caso do Brasil 247, portal de notícias brasileiro cuja linha editorial é frequentemente associada à esquerda progressista e, por vezes, considerada alinhada ao Governo Federal, observa-se uma postura crítica em relação ao chamado “tarifaço” de Donald Trump. O veículo articula essa temática com as potencialidades brasileiras e os conflitos comerciais entre os Estados Unidos e a China.
Desde os primeiros anúncios da Casa Branca sobre a imposição de tarifas, o portal passou a publicar reportagens, colunas e editoriais que discutem possíveis benefícios para o Brasil decorrentes dessa política, especialmente por meio de entrevistas com autoridades nacionais. Um exemplo disso é a matéria intitulada “Tarifaço traz riscos, mas o Brasil pode ganhar, diz Mercadante“, na qual o Presidente do BNDES destaca oportunidades de crescimento nos setores agropecuário, industrial e energético do país. Em paralelo, os esforços do governo brasileiro para mitigar os impactos negativos dessas medidas também são abordados em reportagens como “Política tarifária dos EUA não é conveniente para nenhum lugar do mundo, diz Lula“, na qual o presidente da República critica abertamente a estratégia estadunidense, afirmando que o Brasil não será compelido a escolher entre os Estados Unidos e a China no novo cenário geopolítico. A importância do multilateralismo e das relações estratégicas com a China é reiteradamente defendida em diversas publicações, como na matéria “Guerra tarifária abre caminho para o BRICS, avalia senador: ‘Enquanto uns choram, outros vendem lenço’“, que apresenta o bloco como uma alternativa promissora e indicada para o Brasil ampliar sua inserção comercial no Sul Global.
As publicações do Brasil 247 também demonstram uma construção dicotômica do cenário internacional, na qual a China é frequentemente retratada de maneira positiva, em contraste com os Estados Unidos. Em diversas ocasiões, o país asiático é apresentado como um aliado estratégico do Brasil e, principalmente, como contraponto às políticas tarifárias unilaterais adotadas por Washington. Um exemplo para ilustrar essa ênfase é a matéria “China manteve discurso coerente e provou ser a última linha de defesa da civilização, diz empreendedor“, baseada em uma declaração de Arnaud Bertrand nas redes sociais, que foi destacada de forma elogiosa pelo portal. Essa valorização da posição chinesa também aparece em “‘O céu não vai cair’: China minimiza o tarifaço de Trump”, na qual o país é destacado como confiante frente às medidas norte-americanas.
Em uma abordagem mais opinativa, a matéria “O tarifaço de Trump e o ‘malware power’“ ilustra com clareza a visão crítica do veículo, ao afirmar que “o imperialismo, mais uma vez na história, tenta dar as cartas no jogo supremacista geopolítico”, reforçando a leitura de que há uma tentativa hegemônica por parte dos Estados Unidos que deve ser desafiada por uma “nova configuração multipolar”.
Por fim, em uma análise geral, o portal de notícias evita menções ao governo anterior, de Jair Bolsonaro, focando suas críticas diretamente à Trump. Também identifica-se a republicação de conteúdos e matérias provenientes de outros veículos, que compartilham da mesma orientação editorial, como as reportagens “Alheio à realidade, Trump não consegue explicar seu fiasco econômico“, “Caos de Trump derruba o PIB e o mercado acionário nos EUA“ e “Global Times explica por que os EUA perderão a guerra comercial contra a China“, todas alinhadas a uma narrativa crítica à política econômica norte-americana e favorável ao reposicionamento de países como o Brasil no sistema internacional.
À guisa de conclusão: as distintas visões midiáticas sobre as relações entre Brasil e EUA
Tendo em conta esses aspectos, as relações entre Brasil e Estados Unidos têm sido objeto de intensa cobertura e análise por parte da mídia brasileira, refletindo não apenas os eventos diplomáticos e econômicos, mas também as diversas orientações ideológicas dos veículos de comunicação. A imprensa desempenha um papel crucial na mediação da política externa, influenciando a percepção pública e moldando o debate sobre os interesses nacionais. Diferentes veículos adotam enfoques distintos, que vão desde a valorização da parceria estratégica com os Estados Unidos até críticas à dependência e à influência norte-americana sobre as decisões internas do Brasil.
Ao comparar os diferentes veículos de imprensa analisados, percebe-se uma clara diversidade de posicionamentos ideológicos em relação ao “tarifaço” do governo Trump. Essa diversidade se manifesta tanto na escolha dos temas abordados quanto na forma como são interpretados e enquadrados – veículos com orientação mais alinhada a perspectivas liberais ou conservadoras tendem a destacar os aspectos positivos da aliança bilateral, enfatizando ganhos econômicos, cooperação estratégica e alinhamento político, especialmente em áreas como comércio, segurança e investimentos. Nessa abordagem, prevalece a ideia de que o fortalecimento dos laços com os Estados Unidos representa uma oportunidade para consolidar o papel do Brasil como ator relevante no cenário global.
Por outro lado, há veículos que adotam uma postura mais crítica, muitas vezes associados a correntes progressistas ou nacionalistas, que problematizam a assimetria dessa relação e denunciam os riscos de uma dependência excessiva. Essas análises enfatizam temas como a soberania nacional, as pressões norte-americanas sobre políticas ambientais, o papel das multinacionais e a postura intervencionista dos EUA em temas sensíveis da política interna brasileira. Também costumam trazer à tona episódios históricos marcados por ingerência externa, que reforçam uma leitura mais cautelosa ou até mesmo desconfiada da parceria.
A Folha de S.Paulo, mantendo seu tradicional equilíbrio entre análise e pragmatismo, apresenta uma aparente “neutralidade”, realizando escolhas editoriais que tendem a enquadrar o tarifaço como uma “decisão técnica” inevitável. Há uma clara predominância de vozes de economistas vinculados ao setor financeiro — como bancos, consultorias privadas e think tanks liberais — enquanto perspectivas de movimentos sociais, sindicatos ou especialistas em justiça tarifária aparecem de forma esporádica e periférica, geralmente apenas como reação.
Por outro lado, revistas como Veja e Oeste mostram visões distintas sobre o debate. A primeira, ainda que crítica, explorou tanto os desafios imediatos quanto às possíveis adaptações estratégicas do Brasil no cenário global, tendo uma postura construtiva, não se limitando a denunciar os efeitos negativos em setores agrícolas, embora mantenha um foco significativo nas implicações econômicas imediatas. Já a segunda abordagem, da Oeste, alinhada a uma postura conservadora e crítica ao governo Lula, analisou o tarifaço sob a ótica de economistas associados à revista, interpretando as tarifas como uma ferramenta legítima de negociação, e não como uma medida comercial extrema. Ao enfatizar a necessidade de revisão da política externa e comercial brasileira, a revista procura deslegitimar as críticas feitas por Lula e pelo Itamaraty, embora não apresente propostas concretas ou uma visão estratégica e funcional de longo prazo para a relação bilateral com os EUA.
Em contraste, o Brasil 247, associado com a esquerda progressista e muitas vezes alinhado aos posicionamentos do governo atual, amplificou uma narrativa contestatória, vinculando as medidas de Trump a interesses protecionistas elitistas e imperialistas, enfatizando a urgência de o Brasil reduzir sua dependência dos EUA, articulando-a com os conflitos comerciais entre Estados Unidos e China.
Compreender essas construções narrativas torna-se, portanto, essencial para uma leitura crítica e informada dos caminhos possíveis para a inserção do Brasil no cenário global. Mais do que meros transmissores de informação, jornais e revistas atuam como agentes indiretos no jogo político, influenciando o foco dos debates, as prioridades nacionais e a forma como o país percebe seus aliados estratégicos. Em um mundo globalizado e hiperconectado, no qual o fluxo de informações é intenso e muitas vezes polarizado, desenvolver uma leitura plural e cuidadosa da imprensa é um passo decisivo para que cidadãos, analistas e formuladores de estratégias possam tomar decisões mais conscientes e alinhadas aos interesses de longo prazo do Brasil.
Referências
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