Argentina e FMI

14 de junho de 2023


Por Bárbara Fasolin Koboyama, Francisco Zupanovich, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Melissa Souza Jorge e Rafaela Castilho Miranda (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)


A Argentina enfrenta uma nova crise econômica que afeta profundamente a sociedade. A combinação de problemas econômicos, como alta inflação e pobreza crescente, juntamente com uma situação política interna instável, aumenta as tensões sociais no país. A crise afeta todas as camadas da sociedade, desde a classe média, que não consegue manter seu padrão de consumo, até os trabalhadores mais pobres, que sofrem com fome e desemprego. A desvalorização do peso afeta os preços dos alimentos, além do mercado imobiliário que contribui para uma dolarização informal da economia.


Panorama introdutório

A Argentina vive nova crise em sua economia que, somada à estreita situação política interna, abala a sociedade e aumenta tensões sociais. A pobreza aumenta e grande parte da população não tem renda suficiente para arcar com os gastos básicos. 

O país voltou a conviver com altas taxas de inflação, que chegaram a 102,5% no acumulado em um ano, informa o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC). O impacto da crescente perda de renda das famílias no cenário para as eleições presidenciais marcadas para outubro é claro.

De maneira geral, a crise econômica argentina afeta a maior parte da sociedade sem acesso à moeda forte. Se por um lado a classe média não conseguem manter seus padrões de consumo, as classes mais baixas – os trabalhadores – sofrem diretamente com a fome e o desemprego. A desvalorização do peso afeta desde os preços de bens de consumo básicos, como alimentos, até o mercado imobiliário e força uma dolarização informal da economia, prejudicando os mais pobres.


Em 2018, o ex-presidente Maurício Macri negociou com o FMI um contrato de crédito no valor de US$ 57 bilhões, como parte de um plano para deter o colapso da moeda local e evitar um novo calote da dívida. O acordo gerou controvérsias acerca das condições impostas pelo FMI, que incluíam medidas de austeridade e reformas estruturais. 


Já o atual governo de  Alberto Fernandez tem adotado medidas para tentar conter a inflação e a instabilidade financeira. Implementou políticas de controle cambial, aumentou impostos sobre exportações e buscou renegociar a dívida externa. Além disso, abriu programas de assistência social e incentivos fiscais, visando reduzir a pobreza e impulsionar o crescimento. Além disso, tenta fortalecer as relações com parceiros internacionais para obter apoio financeiro e assistência técnica. No entanto, há um problema sem solução à vista: desde a moratória de 2005, o país não tem pleno acesso ao mercado internacional de crédito e tem dificuldades para atrair investimentos. O fato da maior parte de sua dívida ser nominada na moeda estadunidense limita as alternativas de solução da crise.


Relação Argentina e FMI 


O problema da dívida externa vem desde o primeiro século como país independente e se acentua a questão até os dias atuais. É um quadro recorrente no continente. A dívida externa se apresenta no sistema como uma maneira de condicionar os países do Sul a participar da economia global pelos parâmetros estipulados pelo poder hegemônico.


O  primeiro acordo do país com o FMI data de em 1957, segundo o Voces en el Fenix. A política argentina anterior, nos anos de governo Juán Domingo Perón (1946-1955), era voltada ao nacional-desenvolvimentismo, em um contexto no qual o país se encontrava com saldo de crédito no sistema internacional no imediato pós-guerra. Após esse momento, a Argentina passou por governos que fecharam diversos acordos com o FMI.


A fase mais recente da trajetória da dívida argentina tem seu início durante a última ditadura militar (1976-1983). Os dados do Museo de la Deuda Externa Argentina demonstram que os compromissos se multiplicaram, saindo de 8,2 mil milhões de dólares em  1976  e passaram a 45 mil milhões de dólares em 1983. Além disso, o câmbio desvaloriza em 1.800% e o país teve uma inflação superior a 400%. María Emilia Val diz em seu artigo, Deuda pública de Argentina: de la última dictadura al default de 2001, que o período da ditadura é marcado pela diminuição do papel regulador do Estado ao mesmo tempo que os agentes privados, como o setor financeiro e especulativo, geraram uma grande dívida pública.


Os anos 1970 são marcados pela maior disponibilidade de capitais (eurodólares e petrodólares), que seriam reciclados nos países periféricos, devido à crise do dólar e à crise do petróleo, explica Mario Rapoport em seu artigo La deuda externa argentina y la soberanía jurídica: sus razones históricas. Essas condições externas levaram  à possibilidade de instaurar as políticas econômicas precursoras do neoliberalismo, sobretudo através das condições geradas pela repressão das forças populares, baixa na qualidade de vida da população e pelo processo de desindustrialização durante a ditadura.


A agenda neoliberal


A agenda neoliberal instaurada no período da ditadura leva o país a mudanças em sua política externa, seguindo com suas consequências no período de redemocratização e que se acentua no governo Menem, que mais aderiu ao neoliberalismo. De acordo com Juan Manuel Telechea, pelo jornal Cenital, antes os dólares eram usados como fins produtivos, ou seja, voltados a uma política econômica de desenvolvimento interno, e, após a liberalização da economia, o endividamento é usado para se manter a paridade entre o peso e o dólar. A inflação e demanda por dólares age como um mecanismo de defesa para evitar a perda do poder de compra, que, por outro lado, desvaloriza o câmbio e faz com que o país entre em um ciclo vicioso descendente.


A situação deixada após a ditadura militar era catastrófica tanto em termos de dívida quanto em termos sociais. Segundo El Diario Ar, o retorno à democracia é marcado por um índice de 20% de pobreza no país, enquanto o país tinha um índice de 4 a 5% no ano anterior ao regime militar.


Ainda segundo o artigo de María Emilia Val, o governo Alfonsín (1983-1989) adota uma posição crítica aos acordos feitos durante a ditadura, questionando a legitimidade dos compromissos e buscando diálogo com os credores. No entanto, os agentes externos não aceitaram negociar sem que fosse firmado um acordo com o FMI. O governo fechou um acordo com o Fundo em 1984. 


Inicia-se o segundo ciclo de aumento da dívida externa durante o governo Carlos Menem (1989-1999), eleito após a renúncia de Alfonsín. A política externa adota medidas neoliberais, como acatar ao Consenso de Washington (1989), a conversibilidade do peso argentino ao dólar, desregulamentação e a privatização das empresas estatais. À princípio, essas medidas apresentaram resolver parte do problema por possibilitar acesso ao país ao crédito internacional e controlar o déficit na balança de pagamentos. Entretanto, argumenta a economista María Emilia Val, os anos de 1994 a 1999 demonstram que o endividamento cresceu, passando de cerca de US$ 64 bilhões a quase US$ 122 bilhões.


Nota-se a dimensão da crise pelos acontecimentos em dezembro de 2001, momento em que a República Argentina teve cinco presidentes em um período de 11 dias. Enquanto a crise econômica piorava, o governo Fernando de la Rúa (1999-2001), que sucedeu Menem, anunciou o corralito, uma medida que limitava os saques bancários a 250 pesos/dólares por semana (a cotação era 1/1). Segundo o Página 12, isso gerou descontentamento social e grande parte da população buscou se prevenir. Fernando de la Rúa declara estado de sítio e renuncia à presidência do país, passando o cargo a Adolfo Rodríguez Saá (2001). Entre as principais medidas adotadas nesse momento, pode-se mencionar que se manteve o corralito até o governo Eduardo Duhalde (2002-2003), o qual flexibilizou a medida, liquidou a conversibilidade do peso, confirmou a moratória do pagamento da dívida e aplicou um ajuste fiscal demandado pelo FMI.


A política neoliberal na Argentina – e em outros países do mundo no final do século XX – demonstra indicadores contraditórios. Segundo Thatiane Letícia, em sua tese Neoliberalismo na Argentina e a sua contribuição para a crise de 2001, uma série de fatores levam à crise de 2001, principalmente pelo plano de convertibilidade, ocasionada pela “combinação de políticas liberalizantes com o câmbio fixo, junto a queima de ativos públicos e decréscimo da eficiência dos investimentos.” Ainda que aumentasse o poder de compra externo, isso não refletia no poder de compra interno, resultando em um aumento dos preços para a população e um saldo negativo da balança de pagamentos.


O neoliberalismo foi um agente causador da default – termo que indica a impossibilidade de pagar a dívida externa. A internacionalista Thatiane Letícia argumenta que o plano de conversibilidade é um dos principais pontos que levaram o país a esse momento e que, apesar da entrada líquida de capitais sustentar o modelo, a medida aumentou o endividamento. O papel do neoliberalismo na crise econômica da Argentina começa desde o período da ditadura e se estende até a crise de 2001.


A primeira eleição presidencial após esse ocorrido dá início ao período de 12 anos dos governos peronistas de Néstor e Cristina Kirchner. Os governos Kirchner visam a renegociação das dívidas externas do país. De acordo com Voces en el Fénix, pode-se considerar um momento exitoso uma vez que 92% dos credores aceitaram as condições para o pagamento das dívidas.


O mandato de Nestor Kirchner (2003-2007) marca uma negociação muitas vezes negada pelas instituições internacionais, mas que foi possível cancelar parte da dívida em 2006. Enquanto isso, os anos de governo Cristina Kirchner (2007-2015) conseguem um bônus no país e uma melhoria das questões sociais. No entanto, a crise de 2008 piorou muito as condições de governabilidade.


Ainda de acordo com o artigo do projeto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires, o país conseguiu colocar um título de US$ 2 bilhões, comprados pelo governo da Venezuela, que garantiu recursos externos para a Argentina durante o governo de Cristina Kirchner. Essa questão se apresenta como uma dificuldade devido à confiabilidade do país no sistema internacional.


Além das políticas internas, o contexto externo se demonstra propício à colaboração para a resolução da questão da dívida externa visto que as primeiras décadas do século XXI é marcado por eventos como a instabilidade política-econômica internacional devido à crise de 2008, o conflito agrário do mesmo ano e a ascensão da esquerda na América Latina. Logo, a situação da dívida externa foi controlada até o final dos governos Kirchner.


O acordo da Argentina com o FMI que leva novamente o país a uma situação de crise e dívida foi feito em 2018, durante o governo de Maurício Macri.


Dolarização 


A saída de capitais, a desvalorização do peso e a contração das reservas internacionais que levaram o governo Macri a celebrar um acordo com o FMI em 2018 também colocaram a inflação numa escalada galopante. Conforme o Instituto Nacional de Estatística e Censos da Argentina, o INDEC, em abril o aumento dos preços chegou a 108,8% no acumulado dos últimos 12 meses – o maior valor em quase 32 anos, segundo a Folha de S. Paulo. Com as eleições presidenciais previstas para outubro, o debate público na Argentina tem sido marcado por propostas de recuperação econômica, especialmente em relação à alta inflação. Javier Milei, economista liberal que despontou como candidato da extrema direita e tem ganhado popularidade, defende a dolarização da economia.


Segundo Luiz Carlos Bresser Pereira e Aldo Ferrer, entende-se por dolarização da economia o processo através do qual a moeda nacional é substituída pelo dólar. Para Franklin Serrano, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isso pode significar diversas coisas: permissão legal para para que se façam transações e se mantenham depósitos denominados em dólar, em paralelo com a moeda local; emissão de moeda local lastreada por reservas em dólar; ou, ainda, a adoção do dólar como unidade monetária oficial e substituição total da moeda local. Na prática, a dolarização pode ser pensada como uma ferramenta para conter a inflação porque ancora uma moeda desvalorizada à divisa internacional mais forte.


Apesar disso, a dolarização está longe de ser um consenso. O principal argumento para sua adoção é a contenção da inflação, junto com a diminuição da desconfiança dos investidores financeiros, dos juros e da fuga de capitais. Em contrapartida, os críticos enfatizam que dolarizar implica a perda da autonomia monetária e da capacidade de intervenção do governo em momentos de crise. Vale destacar ainda que a política econômica dos Estados Unidos está alinhada ao contexto e aos interesses estadunidenses, e estes nem sempre coincidem com os interesses de outros países – especialmente quando tratamos de um país latino-americano, que possui estrutura produtiva distinta da estadunidense.


Na América Latina, o  Equador dolarizou sua economia há duas décadas. A Argentina tem sua economia informalmente dolarizada, assim como a Venezuela. Isso quer dizer que a economia já é bimonetária – isto é, funciona com duas moedas – por conta da grande desvalorização do efetivo local. Essa substituição espontânea por parte da população se dá justamente pelo aumento da inflação, que faz com que os argentinos busquem se proteger contra a desvalorização do peso; o resultado é o uso do dólar como padrão de preços e valores.


Da forma como ocorre hoje, entretanto, a dolarização na Argentina não estabiliza preços, mas sim contribui para a escassez crônica de dólares que gera mais instabilidade e desvalorização do peso. Como resultado, ela inibe a capacidade do governo de implementar políticas monetárias para estabilização e dificulta ainda mais o controle da inflação. 


Os dilemas de Alberto Fernández  


Atualmente, o governo peronista se encontra com baixas reservas internacionais e enfraquecido politicamente. A estratégia adotada desde o início deste ano não visa estabilizar a economia e impedir que a espiral de preços não saia do controle até as eleições. 


O Governo vai ordenar uma forte alta dos juros, que atingirão níveis recordes, para frear a dolarização, e o Banco Central terá mãos livres para operar com o dólar. Por sua vez, projetam-se mais intervenções no mercado de câmbio e acordos com credores.


Além disso, até as eleições o governo pretende finalizar uma nova negociação com o Fundo Monetário Internacional, na qual pretende obter um adiantamento de US$ 11 bilhões para o final do ano. A China já aceitou o pagamento de importações em yuan até um limite de US$ 5 bilhões. Por sua vez, o governo brasileiro ainda não demonstrou apoio oficial à Argentina na gestão de sua crise, além do encontro entre Lula e Fernández no início de junho.


Importância do Brasil


A relação Brasil-Argentina desempenha um papel decisivo na América Latina e se destaca como uma estratégica, com grande influência econômica e política. A proximidade geográfica e desafios comuns levaram à necessidade de relações estáveis e produtivas entre os vizinhos. O comércio bilateral entre os dois países abrange muitos setores, incluindo manufatura, agricultura, energia e serviços. Tal relacionamento promove o crescimento econômico mútuo, aumenta o investimento e cria oportunidades de negócios para empresas de ambos os lados.  


Ambos os países foram protagonistas de iniciativas de integração sul-americanas como o Mercado Comum Sul (Mercosul) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). O objetivo dessas organizações é promover a cooperação econômica, política e social entre os Estados membros, fortalecendo a estabilidade e a influência da região no cenário internacional. 


A volta de Lula à presidência criou expectativas positivas para uma nova era de cooperação e entendimento mútuo no Brasil e na Argentina. Os observadores estão entusiasmados com o desejo demonstrado pelo ex-presidente de fechar acordos benéficos e buscar relações mais próximas entre os países vizinhos. 


Eleições


As próximas eleições presidenciais da Argentina estão previstas para outubro, como mencionado. Os efeitos da crise na política são evidentes na figura do atual presidente, Alberto Fernandez, que viu sua popularidade derreter com o avanço da crise. Em abril, Fernandez desistiu de disputar a reeleição. Sem ele, os peronistas seguem divididos entre Sergio Massa, nomeado ministro da Economia por Fernandez no ano passado, e Daniel Scioli, embaixador da Argentina no Brasil com uma carreira política já conhecida. A vice-presidente Cristina Kirchner anunciou que não disputaria as eleições ainda em dezembro de 2022, depois de uma série de acusações de corrupção. Nas pesquisas de intenção de voto, a coalizão peronista Frente de Todos aparece em segundo lugar.


Conforme a CNN Brasil, os favoritos da oposição conservadora são o atual prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, e a ex-ministra da Segurança, Patricia Bullrich. Em março, o ex-presidente Macri anunciou que não disputaria as eleições. Nas pesquisas, a aliança de oposição Juntos pela Mudança aparece na ponta.


Enquanto conservadores e peronistas não conseguem se articular em torno de um único candidato, ganha tração uma terceira força política: o deputado federal ultraliberal Javier Milei, líder da coalizão A Liberdade Avança. Milei é economista e professor, foi eleito deputado federal em 2021 e se tornou conhecido a partir de 2018 por criticar as gestões de Cristina, Macri e Fernández e por seu modo agressivo de falar. Se define como “anarcocapitalista” e sua principal proposta é a dolarização da economia argentina. Segundo a Folha de S. Paulo, ele aparece à frente em parte das pesquisas de intenção de voto quando os candidatos são citados por nomes. 


Segundo Facundo Nejamkis, diretor da pesquisa de opinião Opina Argentina, “Há uma tendência ascendente de eleitores muito irritados com a política que aparentemente estão optando por essa nova força”. A quatro meses das eleições, resta saber se o descontentamento geral será suficiente para alavancar a candidatura de Milei – não seria a primeira vez que um deputado federal de fala agressiva e tido como “terceira força” presidiria um país latino-americano.


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