Restrição das exportações de GNL estadunidense é moderada, provisória e não terá impacto imediato

25 de abril de 2024

Por Beatriz Junqueira, Giovanni Marques, Isabelle Silveira, Luciana Araújo, e Victor Mathias[1] (Imagem: Pixabay)


O governo estadunidense anunciou o congelamento temporário de aprovações aos novos projetos de exportação de gás natural liquefeito (GNL). Em meio à corrida eleitoral, a decisão de Biden é questionada pela indústria de energia e apoiada pelos ambientalistas. O que está em jogo?


Em 26 de janeiro, o governo Biden anunciou uma pausa temporária nas aprovações pendentes sobre a exportação de Gás Natural Liquefeito (GNL). Essa decisão, que gerou entre questionamentos em setores da indústria energética, foi justificada pela necessidade da mensuração do impacto das mudanças climáticas, entre os quais sua influência na economia e na segurança nacional. O posicionamento estadunidense deve ser avaliado nos contextos da corrida eleitoral e da dinâmica do mercado internacional da energia. Há de se considerar que há pouco mais de uma década os EUA se tornaram o maior produtor de gás do mundo e, desde a Guerra na Ucrânia, o maior exportador de GNL, responsável hoje por 50% do gás importado pela União Europeia. De acordo com Biden essa pausa significa que seu governo “vê a crise climática como ela é: uma ameaça existencial do nosso tempo”


A decisão significa que países que não têm acordo de livre comércio com os EUA terão as aprovações de suas exportações interrompidas, com exceção da Coreia do Sul. Ou seja, o Departamento de Energia não aprovará  novos projetos, e ganhará tempo para atualizar seus termos de análise. De acordo com a empresa internacional de consultoria Wood Mackenzie, especializada em dados e análise da economia da energia e transição energética, a medida tende a dificultar o financiamento de novos projetos, podendo prejudicar prazos de sua instalação e efetivação. No entanto, a pausa não deverá afetar os projetos de exportação de gás já operacionais ou em fase de construção.


São analisados neste artigo os possíveis impactos da medida a curto e longo prazo, levando em conta o mercado de gás natural nos EUA e em escala global, assim como o comércio internacional de GNL e a dimensão ambiental da utilização desse combustível, alvo de críticas do movimento ambientalista devido ao vazamento de Gases do Efeito Estufa (GEE) em graus considerados elevados nos seus processos de produção e transporte.


Na sua primeira seção, o presente artigo aborda as características básicas do mercado de GNL e o desenvolvimento de sua dinâmica no contexto internacional. Na segunda seção, discorre sobre a trajetória da oferta internacional de gás pelos EUA na última década. A terceira seção avalia como a medida foi recebida internamente aos EUA, tanto pelos setores ambientalistas, que vêem a decisão como convergente com os esforços para a substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis, quanto pelos críticos, preocupados principalmente com as implicações geopolíticas de uma eventual redução da presença estadunidense nos mercados globais de GNL. E, por último, são avaliados os impactos dessa medida a curto e longo prazo, seguindo-se as considerações finais.


A dinâmica do GNL no mercado energético


A comercialização do gás natural na forma de GNL é relativamente recente devido a sua complexidade e custos. Apenas no início do presente século surgiram as primeiras iniciativas para se obter e transportar o GNL de forma comprimida e em escala de produção. 


Nesse cenário, os principais países produtores e exportadores de GNL variaram, já que as preocupações relacionadas à segurança energética fizeram com que os governos diversificassem cada vez mais os seus fornecedores. No relatório mais recente, de 2023, da International Gas Union (IGU), aparecem como os principais produtores globais de GNL a Austrália, o Catar, os Estados Unidos, a Rússia e a Malásia. Até meados da última década, os principais exportadores eram a Rússia, Austrália, os EUA, o Catar e a Noruega, que atendiam às necessidades dos maiores importadores: países europeus, China e Japão. A partir de 2016, os EUA começaram a exportar grandes volumes de GNL, tornando-se um dos maiores e mais importantes players no fornecimento de gás natural mundial, principalmente para a Europa, o que será melhor explorado na próxima seção.


A demanda global por gás natural tem seguido uma trajetória de crescimento constante nas últimas décadas, devido ao seu custo relativamente baixo e também ao esforço de governos e empresas em diminuir cada vez mais o uso de combustíveis fósseis, buscando modalidades mais limpas de energia. Embora o gás seja uma energia fóssil, gera menos GEE do que os outros dois combustíveis fósseis – carvão e petróleo.


O gás natural é transportado de duas formas: os gasodutos e o GNL. A primeira forma é a preferida devido ao baixo custo, já que o GNL envolve processos tecnológicos sofisticados e caros, com a construção de usinas de liquefação e de regaseificação e seu transporte por embarcações especiais, os navios metaneiros. Ainda assim, a demanda por GNL tem crescido significativamente, impulsionada pela facilidade do gás liquefeito, de comercialização mais ágil e flexível, em atender rapidamente às necessidades dos consumidores, entre outros motivos.


Com o desenvolvimento tecnológico e a ampliação do número de países fornecedores de gás natural, o preço desse combustível tem apresentado uma tendência constante de queda, tanto no caso do produto transportado por gasodutos quanto na modalidade GNL. Em 2022, no entanto, os preços internacionais do gás natural sofreram um forte aumento em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia – importante fornecedor de gás aos países europeus, principalmente para a Alemanha – e das sanções econômicas e das rupturas de laços comerciais derivadas desse conflito político. 


Os EUA no mercado global de GNL


De acordo com dados da União do Gás Internacional, até 2020 o Catar e a Austrália eram os maiores exportadores de GNL. Cada um desses dois países vendeu cerca de 11 bilhões de pés cúbicos por dia (pcd) naquele ano, enquanto os EUA exportaram cerca de 6,5 bilhões de pcd. Em 2023, os EUA se tornaram o maior exportador mundial de GNL, com vendas totais de quase 14 bilhões de pcd, segundo a Agência de Informações de Energia, o banco de dados do Departamento de Energia (DoE) daquele país. O crescimento espetacular das exportações estadunidenses de GNL é resultado da chamada “revolução do xisto”, quando empresas dos EUA passaram a extrair gás natural e petróleo de um tipo de rocha até então inacessível, o xisto betuminoso, por meio das técnicas inovadoras da perfuração multidirecional e do fraturamento hidráulico (“fracking”). Dessa maneira os EUA, que até o início da década passada enfrentavam o declínio de sua produção interna de combustíveis e dependiam fortemente das importações de petróleo e (em menor medida) de gás natural, triplicaram sua produção de gás entre 2008 e 2018. Nesse processo, alcançaram a autossuficiência energética em 2015 e passaram de importadores a exportadores de combustíveis, principalmente de GNL. 


Quando eclodiu a guerra na Ucrânia, empresas dos EUA aproveitaram a oportunidade para suprir a demanda do mercado europeu por gás natural, ocupando o espaço vazio deixado pela drástica redução da importação do gás russo. Assim, a exportação do GNL estadunidense para a Europa chegou a mais de 7 bilhões pcd em 2022, um aumento de 119% em comparação com 2021, de acordo com a Agência de Informações de Energia dos EUA. Os principais importadores são França, Reino Unido, Espanha e principalmente a Alemanha, que está instalando uma rede de terminais flutuantes de GNL no seu litoral.


Como a nova política foi recebida


Os ambientalistas vêem com bons olhos o congelamento temporário das aprovações de novos projetos estadunidenses voltados à exportação de GNL. O Sierra Club – a organização ambiental mais influente dos EUA – comemora a decisão como uma vitória histórica no combate às mudanças climáticas e na eliminação progressiva dos combustíveis fósseis.


De acordo com o Sierra Club, as exportações de gás natural não estavam alinhadas com as metas climáticas globais, pois, segundo o grupo, além de reforçarem o uso de combustíveis fósseis em escala global, contribuem para a destruição das comunidades locais, afetam diretamente ecossistemas e aumentam o custo da energia doméstica. Os ambientalistas ressaltam que, apesar de sua utilização ser mais limpa que a do carvão e do petróleo, o gás também é uma fonte fóssil. E, no caso específico do GNL, seu transporte e armazenamento têm maior potencial poluente, já que em todas as etapas do processo produtivo se verifica o vazamento de gás para a atmosfera. Além disso, o GNL  ofusca as oportunidades de investimento em  fontes menos poluentes. 


Outro fator destacado pelo Sierra Club é a falta de controle ou restrição para o destino da exportação desse recurso energético, colocando em risco a segurança nacional. O GNL também apresenta consideráveis perdas em seu processo de liquefação e regaseificação –  uma perda de energia em torno de 10 a 15% em comparação com 1% a 2% do transporte via gasoduto.


A Wood Mackenzie destaca um outro problema que a administração Biden tentou resolver ao restringir as exportações de GNL. Além da pressão dos ambientalistas, existe uma pressão por parte do lobby de grandes consumidores industriais, que se opõe às exportações devido à inflação recente do preço do gás natural nacional.


No mercado de energia estadunidense a decisão suscitou críticas e preocupações. O influente Instituto Americano de Petróleo (API, na sigla em inglês), que reúne um grande número de empresas de petróleo e gás, alegou que a decisão “não é apenas ilegal – ela entrega a vantagem energética dos Estados Unidos a nações hostis”. O API alega efeitos geopolíticos negativos, porque a medida poderá reforçar a influência russa no mercado global do GNL. Afinal, os EUA têm se posicionado como uma importante fonte alternativa ao gás russo.


Prováveis impactos


Mas, na prática, a decisão de Biden pouco impacta a exportação de GNL do país no curto e até no médio prazo. Isso se dá porque já existe uma capacidade de exportação de 90 milhões de toneladas por ano de terminais já em funcionamento, além de uma capacidade adicional de 86 milhões de toneladas por ano estar em construção, o que deverá inundar o mercado entre 2024 e 2030, conforme dados da Wood Magazine. E mesmo no cenário de queda de preço do GNL com relação ao seu pico em 2022, as exportações tendem a aumentar e continuar lucrativas, mostrando que a oferta de GNL estadunidense está mais do que garantida, ainda mais se considerados os reservatórios de shale gas, o gás do xisto, existentes no país.


Por meio de comunicado divulgado pela Casa Branca, o próprio governo Biden assegurou que os EUA permanecem inabaláveis no compromisso de apoiar seus aliados em todo o mundo e garantiu que a suspensão não afetará a capacidade do país de continuar a fornecer GNL aos aliados no curto prazo, especialmente para a Europa. Desse modo, a medida, se for temporária, não significa risco para a segurança do abastecimento de gás, visto que existe bastante GNL em oferta.


Entretanto, se a suspensão durar e a demanda pelo gás se mantiver, a trajetória e o ritmo de crescimento do setor no longo prazo podem ser afetados. Analistas acreditam que os atrasos na aprovação de novos projetos vão colocar pressão sobre a dinâmica de mercado por volta de 2030, gerando consequências duradouras no mercado global, já que os investimentos no setor de GNL, nos últimos anos, têm grande participação dos EUA.


Diante disso, os importadores terão suas opções limitadas e buscarão outras alternativas. Esses compradores poderão começar a olhar para projetos concorrentes fora dos EUA, como os do Canadá, da Austrália e, principalmente, do Catar. Na Europa, os governos exercerão ainda mais pressão para a diversificar a matriz, buscando diminuir a dependência do gás importado. Os países asiáticos, em especial Japão e Coreia do Sul, maiores clientes do GNL estadunidense, poderão rever a estratégia de uso desse gás como substituto do carvão, como forma de reduzir a demanda.


Quanto aos preços, atualmente os preços internacionais de GNL estão em viés de baixa. Entretanto, a interrupção nas licenças de novos projetos pode elevar os preços internacionais do gás no longo prazo. No mercado interno dos EUA, os efeitos tendem a ser menores. Com a previsão de 86 milhões de toneladas/ano de projetos de GNL atualmente em construção, os preços do Henry Hub, centro de distribuição de gás natural norte-americano, devem se manter acima de US$3,5 por milhão de BTU.


Conclusão


Em menos de uma década, EUA começaram a exportar grandes volumes de GNL, tornando-se um dos maiores players no fornecimento de gás natural mundial. O excedente de produção interna coincidiu não somente com o aumento da demanda global por gás, mas com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Os altos preços de energia provocados pela guerra, entre os quais se destaca o gás, gerou oportunidades que foram aproveitadas pelos exportadores estadunidenses. Em 2019 os EUA eram responsáveis por cerca de 5% de toda a importação de gás pela Europa e hoje essa participação beira os 50%. Essa nova condição de grande e crescente exportador de GNL provocou questionamentos internos, principalmente de ambientalistas. 


Nesse sentido, a decisão de Biden é convergente com as posições do movimento ambientalista nos EUA. Mas é preciso ter claro que a proibição se refere apenas às novas autorizações de terminais de exportação, com impacto pequeno na exportação de GNL do país no curto e médio  prazos, já que não afeta projetos que estejam em fase de construção ou em processo de operação. Além disso, a medida de proibição estabelece a possibilidade de exceção em situações emergenciais de segurança nacional imprevistas e imediatas. Assim, a medida não muda as previsões de exportação até 2028. É possível, porém, que após essa data, caso a medida se torne permanente, venha a comprometer o ritmo de crescimento do setor 


Contudo, o verdadeiro motivo da decisão tem a ver com a proximidade das eleições presidenciais estadunidenses. A medida de Biden é uma clara tentativa de se aproximar dos eleitores jovens e preocupados com o clima, com o objetivo de aumentar o seu apoio eleitoral. Ela marca um contraste com o opositor Donald Trump, que defende abertamente a exploração de combustíveis fósseis (entre os quais o GNL), além de questionar constantemente a legitimidade da preocupação com o aquecimento global. Há de se ressaltar, mais uma vez, que a medida é provisória. Caso eleito, nada garante que o governo Biden II vá manter essa proibição diante das considerações econômicas e geopolíticas.


[1] Agradecimentos aos professores Giorgio Romano Schutte e Igor Fuser.

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