30 anos do Genocídio de Ruanda

25 de abril de 2024

 

Por João Henrique Pio Elias, Luccas Gissoni, Amanda Cristina da Silva, Isabella Werneck Zanon e Paulo Vitor Nascimento dos Santos (Imagem: Pixabay)

 

A superação do sistema colonial é marcada por corajosas demonstrações de resistências, guerras e confrontos. Essa trajetória, que pode ter como resultado uma revolução, também pode fazer surgir o neocolonialismo, pode gerar a fratura de antigos Estados ou, como em Ruanda, a luta contra a colonização pode levar a um genocídio.

 

Ruanda está na região oriental da África, a última do continente a se integrar a economia mundo capitalista, onde antes dessa integração existia um sistema de castas que dividia a população em Tutsis, formada pelos grandes criadores de gado, e Hutus, formada pelos pequenos agricultores. O sistema político era fundamentado em um clientelismo patronal, com o poder exercido pelos Tutsis na forma de uma aristocracia e de um rei denominado Miawmi, porém havia uma certa flexibilidade que possibilitava que os Hutus exercessem cargos administrativos. A partir da colonização Belga, há uma intensificação da polarização desses grupos devido ao processo de cristalização das identidades étnicas e da relação de poder, baseada na suposta superioridade natural do grupo Tutsi originada pelo mito Hamítico. Este fora introduzido pela visão cristã e pelo cientificismo, introduzido pelos eugenistas, baseado no fato de que alguns marcadores físicos dos Tutsis serem mais próximos das características europeias. 

Essa ideia servirá para legitimar a relação de dominação exercida pelo colonizador branco e pela aristocracia Tutsi, bem como da exploração do trabalho, exercida na forma do uso do trabalho forçado dos Hutus e do avanço das terras da aristocracia sobre as terras de uso comuns, com o objetivo de expandir a agricultura voltada para a exportação. Esse processo cristaliza a propriedade da terra na forma da propriedade privada que rompe a antiga relação de equilíbrio. Nesse período a configuração dos grupos em duas etnias se estabelece oficialmente, com o Miawmi criando as carteiras de identidade étnica, que determinavam a inserção social de cada indivíduo. Dessa forma, as populações das aldeias se tornaram força de trabalho e os tutsis se consolidaram como uma aristocracia agrária, proprietária de grandes extensões de terra. 

A partir de 1950 há um processo de abertura política que acirram as tensões, e que tem como desdobramento a Revolução de 1959, quando ocorre a revolta dos Hutus contra o modelo aristocrático, que resulta na abolição da monarquia, sendo de grande importância a mídia alternativa formada por imigrantes Hutus que voltaram em melhores condições de países vizinhos e que ingressaram nas escolas frequentadas pelas classes dominantes, tornando-os lideranças intelectuais responsáveis por articular a classe trabalhadora no processo de questionamento e luta contra o monopólio Tutsi. 

A Primeira República, governada por Kayibanda, manteve as fronteiras étnicas, porém estabeleceu um sistema de cota para cada etnia na esfera social pela lógica de proporção demográfica na população total do país, também servindo para determinar a distribuição de terras. A economia volta ao modelo de pequenas propriedades voltada à subsistência. Porém a dificuldade de implementar o modelo de cota e a baixa produtividade agrícola, frutos dos baixos investimentos do governo, que dificulta geração de excedentes para possibilitar a importação de bens demandados pela população, levam a revolta da população contra as classes mais elevadas, onde a instabilidade gerada e a inação do governo, favoreceu o apoio ao golpe de Habyariama e o início da Segunda República.

O governo Habyariama orienta a economia para a produção agrícola em pequenas propriedades, mas dedicada à exportação para possibilitar o retorno das importações. O governo além de fornecer subsídios, também adota políticas que restringem a liberdade dos proprietários como a proibição de cortar pés de café, de circular internamente e a obrigação de vender o café a preço fixo para companhias monopolizadoras de exportação, beneficiando a burguesia comercial apoiadora do seu governo. Desse modo, os ganhos ocorridos durante a expansão da economia se concentram nesse grupo, de modo que os grandes gastos do governo nesse setor da economia durante o período de baixa do preço do café, levam ao seu enfraquecimento e ao surgimento de grupos que visam sua substituição sendo o mais proeminente a Frente Patriótica de Ruanda (FPR).

A FPR, à semelhança de Habyariama, possui um modelo autoritário e violento de atuação, porém estava ligada principalmente aos interesses de uma incipiente burguesia industrial, bem como possuía uma visão negativa do campesinato, onde o objetivo era reorientar a economia para um modelo industrial, por meio de um êxodo rural. Estabelece-se um medo no campesinato relacionado ao risco de perder a propriedade das terras, conquistadas durante a revolução de 1959, onde se faz uma correlação entre essa vertente política e a antiga aristocracia agrária do período monárquico. À medida em que as forças do governo iam perdendo terreno para a FPR, os meios de comunicação reforçavam essa correlação e criavam outra estabelecendo uma estreita ligação entre a RPF e os Tutsis e destes com a riqueza, sendo culpados pela situação socioeconômica, de modo que os Tutsi seriam traidores a serviço da RPF. 

O genocídio se torna uma espécie de resistência a um novo modelo social tido como restaurador das antigas relações, onde as autoridades e os habitantes da cidade se articulam para encontrar e executar as vítimas [1]. Porém, aliado a isso há a adesão dos camponeses, atraídos pela suspeita da perda da terra e também os benefícios oriundos da pilhagem da propriedade das vítimas, onde ocorre um processo de alienação que transforma as perseguições em uma atividade econômica. A antiga relação pré-colonial que estabelecia uma relação de solidariedade entre esses grupos foi dissolvida a tal ponto que ocorre a desumanização do outro, visto apenas como uma ferramenta utilizada para a obtenção de ganho, algo que foi sendo desenvolvido ao longo dos processos de socio-metabolismo durante e pós colonização. 

A descolonização do continente africano seguiu, em muitos casos, uma transição neocolonial pela qual as potências coloniais, mesmo recuando da dominação política direta, mantiveram o controle econômico e político de suas ex-colônias. Essa trajetória significou a derrota de projetos pan-africanistas mais radicais e envolveu a balcanização das nações africanas, bem como a aliança de algumas elites locais com o imperialismo. Dessa forma, as potências conseguiram garantir seus interesses no continente promovendo disputas locais que algumas vezes assumiram contornos étnicos. A transição neocolonial produziu, portanto, a fratura de Estados e, em casos extremos como o de Ruanda, o genocídio.

O papel da França

Assim, o papel da França no genocídio em Ruanda foi multifacetado e controverso, tendo implicações significativas para os direitos humanos. Antes do início do genocídio, a França mantinha laços estreitos com o governo ruandês da época, liderado pela etnia Hutu. Esses laços incluíam fornecimento de apoio militar, treinamento e assistência política ao governo Hutu.

Durante anos, a França foi vista como um aliado próximo do governo Hutu, apoiando sua política e contribuindo para a tensão étnica e política no país. Esse apoio pode ter dado ao regime Hutu uma sensação de impunidade e segurança para avançar em seus planos genocidas. De acordo com a BBC, “A França estava ciente das preparações para o genocídio e apoiou o regime Hutu, tanto militar quanto logisticamente”. Ressaltando as acusações graves de que a França não apenas estava ciente do que estava por vir, mas também desempenhou um papel ativo em sustentar o regime.

Além disso, há acusações de que a França ignorou ou minimizou os sinais de preparação para o genocídio, tanto dentro de Ruanda quanto em relatórios de organizações internacionais. Algumas fontes também alegam que a França forneceu apoio direto a líderes hutus envolvidos nos massacres.

A atuação da França durante o genocídio em Ruanda levanta questões importantes sobre sua responsabilidade no cumprimento dos direitos humanos. Ao apoiar um governo envolvido em crimes contra a humanidade, a França demonstra que sua atuação no continente africano é neocolonial e co-responsável pela produção do genocídio, e não comprometida com a proteção dos direitos fundamentais dos povos africanos.

Portanto, o papel da França no genocídio em Ruanda é uma questão complexa que requer uma análise cuidadosa das políticas e ações do governo francês nos estágios colonial e neocolonial. Esta questão tem implicações profundas para os direitos humanos e para a maneira como os países devem agir em resposta a violações graves desses direitos em outras partes do mundo. A implicação direta de um país como a França em tais eventos também abre um precedente alarmante sobre a ética na política externa e a importância do cumprimento rigoroso dos princípios de direitos humanos internacionais.

Sobreviventes

Ruanda fez progressos econômicos impressionantes nas últimas três décadas, transformando-se em um exemplo de crescimento e desenvolvimento na África Subsaariana. Entretanto, como reportado pela Folha de São Paulo, esse crescimento não apagou as cicatrizes deixadas pelo genocídio. Muitos dos sobreviventes ainda lidam com traumas psicológicos profundos, refletidos em toda a sociedade. Este cenário evidencia uma complexa interação entre desenvolvimento econômico e saúde mental coletiva, mostrando que os avanços materiais não são suficientes para superar as feridas do passado.

A busca pela justiça foi uma prioridade no pós-genocídio, com a criação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda e os tribunais Gacaca. Segundo a BBC, embora muitos líderes e perpetradores tenham sido julgados, persistem críticas quanto à abrangência e ao impacto dessas ações judiciais. Questões sobre a eficácia dos tribunais Gacaca, em particular, refletem as dificuldades em alcançar uma reconciliação plena, levantando debates sobre a melhor forma de lidar com a memória coletiva e a responsabilização pelos crimes.

A maneira como Ruanda tem administrado as consequências do genocídio ilustra a complexidade dos direitos humanos em contextos de pós-conflito. A necessidade de tratar os traumas, garantir justiça e promover uma verdadeira reconciliação são essenciais para a saúde a longo prazo da nação. Enquanto Ruanda continua a evoluir economicamente, a atenção aos direitos humanos e ao bem-estar psicológico de sua população será crucial para garantir que o país não apenas sobreviva, mas também prospere de maneira sustentável e inclusiva.

Trinta anos após o genocídio, Ruanda ainda está no processo de cura. A resiliência dos sobreviventes e o crescimento econômico são testemunhos da força do espírito humano e da capacidade de recuperação. No entanto, as persistências de traumas e a luta contínua por justiça e reconciliação lembram ao mundo que os impactos de tais tragédias ultrapassam gerações. Assim, a memória dos eventos e das vítimas deve continuar sendo uma peça central na narrativa nacional e um pilar para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Comentários de Paul Kagame (atual chefe de Estado)

Paul Kagame, atual presidente do país, teceu críticas aos países do ocidente que não agiram para evitar o massacre e considerou falha a tentativa dos Estados Unidos em expressar solidariedade por meio do seu secretário de Estado – Anthony Blinken – nas redes sociais, sem reconhecer as verdadeiras vítimas que são o povo Tutsi. Outras autoridades corroboram o posicionamento do presidente pois consideram que a ambiguidade estadunidense em não reconhecer as vítimas e principalmente os algozes é uma deturpação da História. 

Intrinsecamente ligado a história do genocídio por ser o líder dos opositores ao governo de Habyarimana, o presidente pede que o dia 7 de Abril seja um dia de comemorações sem críticas ao povo ruandês. Por ser tutsi e um dos fundadores do FPR, compor o governo pós-genocídio possui mais que legitimidade para representar Ruanda. Kagame no 30º ano após o genocídio em discurso agradece aos países vizinhos que na época os acolheu e não faz critica aos soldados que estavam ali em missão de Paz, mas culpabiliza toda a comunidade internacional pela negligência a Ruanda durante os 100 dias de massacre ao povo Tutsi, principalmente a França que fechou os olhos para a barbárie como foi revelado em relatórios franceses.

Contudo, Kagame gera polêmica, pois é um personagem controverso, famoso por ser inflexível e não aceitar discordâncias, acusado de perseguição política e até mesmo assassinatos por vingança ao massacre de 1994. Especialistas das nações unidas possuem evidências de que ele está apoiando uma operação militar na República Democrática do Congo em apoio a um grupo de rebeldes do M23, que é justificado pelo suporte aos Tutsis congoleses, ação esta que está levando milhares de pessoas a pedir refúgio em Ruanda.  Em paralelo é elogiado por elevar o país subsaariano por meio de políticas que afetaram diretamente no seu crescimento econômico, comprovando sua política controversa.

[1] É interessante notar que havia uma certa dubiedade no termo tutsi de modo que a mídia alertará sobre o risco de confusão ao usar a aparência como marcador, de modo que recomendava que em caso de dúvida fossem vistos os passaportes e consultadas as autoridades. No caso dos camponeses o foco eram grupos com mais propriedades, onde essa lógica de disputa por propriedades e terras chega ao ápice de haver falsas acusações entre os caçadores para assim expandir suas posses. 

 

REFERÊNCIAS:

BBC. France was ‘blind’ to Rwanda genocide, French report says. 26 de março de 2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/news/world-europe-56536659>. Acesso em 11 abr. 2024.

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria. In: A arma da teoria. Rio de Janeiro: Codecri, 1980. Cap. IV. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/tematica/1980/arma/04.htm>. Acesso em 11.abr.2024.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FONSECA, Danilo Ferreira da. Ruanda: A produção de um genocídio. Dissertação (mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica. São Paulo. 2010. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/12637/1/Danilo%20Ferreira%20da%20Fonseca.pdf. Acesso em: 10 Abri. 2024.

N’KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo: último estágio do imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

WALLERSTEIN, Immanuel. A África e a economia mundo. In: ADE AJAYI, J. F. (ed.). História Geral da África VI: África do século XIX à década de 1880. Brasília: Unesco, 2010. cap. A África e a economia-mundo, p. 27-47. ISBN 978-85-7652-128-80. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190254.  Acesso em: 9 abr. 2024.

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