As guerras invisíveis: o conflito no Sudão e a violência naturalizada

14 de junho 2023

 

Por Jéssica Batista, Luiza Zomignan e Umaro Bassem (Imagem: Pixabay)

 

Atualmente existem 19 países enfrentando conflitos graves em todo o mundo. Todos formam parte do chamado Sul Global, com exceção da Ucrânia, único que desperta interesse e solidariedade excepcionais por parte da mídia e da comunidade internacional.

 

Introdução

 

Pauta destacada em veículos nacionais e internacionais de notícia, a Guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada no dia 24 de fevereiro de 2022, é considerada o maior conflito militar no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Tudo indica que a tragédia já deixou mais de 280 mil mortos, destruiu 9 cidades ucranianas e forçou o deslocamento de cerca de 14 milhões de pessoas.

 

O conflito também expôs posicionamentos preconceituosos e desiguais em relação às guerras e conflitos internacionais. 

 

No dia 25 de fevereiro de 2022, por exemplo, o jornalista Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News, demonstrou uma perspectiva supremacista durante a cobertura do conflito ao afirmar: “Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, que têm visto conflitos violentos há décadas. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia, cidade onde você não esperaria isso!”. Por sua vez, o jornalista Daniel Hannan em artigo para o The Telegraph, escreveu frases sobre como os ucranianos “se parecem tanto com a gente”, inclusive “assistem Netflix”.

 

Diante desses comentários, que reforçam estereótipos dos mais diversos tipos, um dado parece relevante: a Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED, 2023) demonstrou em seu Índice de Gravidade do Conflito que atualmente 19 países atendem aos critérios para níveis altos ou extremos de conflitos, sendo Síria, Mianmar e Nigéria alguns exemplos. Com exceção da Ucrânia, todos os outros são países periféricos, do Sul Global. Este fato pode contribuir para explicar elementos como:  a seletividade dos discursos e a naturalização da violência em determinadas regiões; a diferença na cobertura jornalística e na resposta pública a esses eventos; e a maior empatia,  comoção e gestos de solidariedade internacional e global em relação à Ucrânia, em comparação com outros graves conflitos existentes

 

Figura I – Mapa dos Conflitos Graves 2023

Fonte: ACLED. Disponível em: <https://acleddata.com/conflict-severity-index/>. 

 

O exemplo do Sudão

 

O Sudão está localizado na África Subsaariana e é caracterizado por sua rica diversidade étnica e cultural. Embora o país esteja atualmente enfrentando um conflito moderado, de acordo com o Índice da ACLED, a sua história tem sido marcada por uma falta de estabilidade e paz duradoura desde a independência do domínio colonial britânico, em 1956. Entre 1955 e 1972 o país vivenciou uma guerra civil devastadora, que resultou em cerca de meio milhão de mortes. Outro conflito grave ocorreu entre 1983 a 2005, com a morte de cerca de 2 milhões de pessoas. Além disso, segundo dados levantados pela ONU, desde 2003 as regiões dominadas por grupos rebeldes – como Darfur – têm sido palco de enfrentamentos com o governo nacional, provocando pelo menos 300 mil mortes e 2,5 milhões deslocamentos até o momento. É pertinente, portanto, questionar o porquê dessa realidade não receber a devida visibilidade e atenção internacional.

 

Atualmente, o Sudão vive tensões relacionadas às disputas pela exploração dos recursos naturais, ao envolvimento de grupos paramilitares em atividades econômicas ilegais e aos interesses geopolíticos estrangeiros no país. O conflito mais recente, protagonizado pelo líder militar Abdel Fattah al-Burhan de um lado e, de outro, o comandante das Forças de Apoio Rápido (RSF, em inglês) Mohamed Hamdan Dagalo, ultrapassou a marca de 700 mortos e 5 mil feridos. Os atuais rivais trabalharam em conjunto para derrubar o ex-presidente Omar al-Bashir em 2019 e concretizar o golpe militar no país, em 2021. 

 

Em busca de segurança, a família migrou do Sudão do Sul para o Sudão, mas agora está à procura de um novo lugar.

 

Imagem II – Duplamente deslocados 

Fonte: Charlotte Hallqvist/ UNHCR

 

De acordo com estudos do PNUD publicados em 2017, no livro “Tendências da desigualdade de rendimentos na África subsaariana”, há evidências de que as elites locais, muitas vezes em conluio com os governos, trabalham contra reformas e iniciativas que beneficiam os mais vulneráveis. Seu interesse é perpetuar a exclusão, a pobreza e as desigualdades, buscando expandir seu próprio poder. Essa dinâmica também está presente em outros países periféricos. No Sudão do Sul, por exemplo, a ONU relatou que a “fome é usada como uma tática de guerra”, com as forças governamentais negando o acesso a recursos essenciais para a sobrevivência das comunidades que vivem em áreas controladas pela oposição. As diferenças étnicas e religiosas também são exploradas pelas elites como justificativas para a discriminação entre grupos e para legitimar o uso da violência. 

 

O Sudão enfrenta uma realidade social grave e complexa. O desrespeito e a fragmentação dos territórios originários africanos resultaram em instabilidade e condições constantes de colapso, o que contribuiu para a posição de “Estado Pária” de muitos desses países diante do sistema internacional.Embora as diferenças étnicas e religiosas sejam apontadas como razões para a instabilidade no país, assim como aqueles que ocorrem em outras partes do Sul Global, os seus conflitos internos resultam de uma complexa interconexão de fatores socioeconômicos, territoriais e geopolíticos enraizados nas estruturas dessas sociedades, exploradas e subjugadas historicamente pelo colonialismo e pelo capitalismo à escala global. 

 

Resquícios coloniais e a naturalização da violência

 

Para além da exploração da mão de obra e das riquezas naturais da África, como diamantes e minerais, os colonizadores também procuravam subjugar a população local através da disseminação da ideia de inferioridade da população dessas regiões. 

 

O sociólogo Aníbal Quijano (2005) cunhou o termo “colonialidade do poder” para descrever como a lógica colonial esteve fundamentada em uma hierarquia racial e cultural que colocou os grupos não europeus em posição de inferioridade. Justificativa-se, assim, a exploração, a opressão e a dominação dos povos colonizados, fornecendo uma base ideológica para a imposição das normas, valores e instituições dos colonizadores sobre as culturas locais.Isto resultou em um estigma profundo nas regiões colonizadas que, ainda hoje, leva a constante reprodução de preconceitos e estereótipos. 

 

Apesar do fim formal do colonialismo, as estruturas de poder e dominação impulsionadas com o colonialismo e o neocolonialismo persistem,  não estando limitadas a uma fase histórica específica. É um sistema contínuo, intimamente ligado às estruturas fundamentais do sistema capitalista global, que molda as relações sociais, políticas, econômicas e culturais até os dias de hoj. 

 

Com o estabelecimento da globalização perversa, analisada pelo geógrafo brasileiro Milton Santos (2008), as estruturas de poder coloniais são utilizadas para perpetuar e reforçar as desigualdades. A ótica racista hegemônica na mídia internacional desconsidera todo o processo histórico e estrutural vivenciado por países como o Sudão e República Democrática do Congo. Fomenta, assim, um entendimento das guerras e dos conflitos como parte intrínseca da realidade africana, sendo a violência naturalizada e associada à supostas características cognitivas, epistêmicas e culturais das pessoas que (sobre)vivem nessas áreas.

 

Imagem III – Criança Sudanesa

Fonte: Noorani/UNICEF/UNI235957


Os meios de comunicação desempenham um papel crucial na formação da percepção pública internacional sobre os conflitos. Declarações como as dos jornalistas D’Agata e Hannan, mencionadas anteriormente, desumanizam pessoas que também enfrentam violência, morte, separação, deslocamento, fome e todos os efeitos das guerras. Esses jornalistas não apenas prejudicam e desinformam o público em geral, como contribuem para sustentar e perpetuar a lógica desigual da colonialidade do poder analisada por Aníbal Quijano (2005) e da globalização perversa denunciada por Milton Santos (2008). A denúncia sobre os conflitos, assim como a solidariedade internacional, deve ser estendida a todos os indivíduos que sofrem os efeitos devastadores da guerra, do Norte ou do Sul, do Centro ou da periferia. 

 

Referências:

 

ACLED. Conflict Severity Index. 19 de janeiro de 2023. Disponível em: <https://acleddata.com/conflict-severity-index/>. Acesso em: 06 de junho de 2023.

SANTOS, Milton. Capítulo III – Uma globalização perversa. In: Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 15ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2008. 

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. CLACSO, Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales, Buenos Aires, 2005.

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