A guerra em torno da Huawei

Por Mikael Servilha

A disputa na tecnologia 5G excede a esfera do mercado de tecnologia digital, manifestando questões sensíveis na disputa política global. Atualmente a China, líder em número de patentes, concentra 34% dos registros relacionadas à tecnologia 5G. A Coreia do Sul possui 24,5%, a União Europeia (UE) 17% e os EUA aparecem em quarto, na classificação, com 13% .

Maior fornecedora de equipamentos para redes de telecomunicação do mundo, a Huawei foi colocada no centro dos debates sobre a implantação da tecnologia 5G em diversos países. O sucesso da empresa, que atualmente lidera em número de patentes relacionadas ao 5G, é emblemático e ameaça o domínio estadunidense na economia global. A problemática, assim, excede a esfera do mercado de tecnologia digital, manifestando questões sensíveis para analistas de Relações Internacionais. Em artigo publicado no Le Monde diplomatique, Evgeny Morozov defende que o cenário envolvendo a nova geração de rede móvel e a Huawei corresponde apenas a uma parte em um quadro maior de disputa geopolítica e geoeconômica entre os EUA e a China.

O êxito da Huawei no segmento deve-se, em parte, ao seu compromisso com a inovação. No período 2014-2018, o orçamento destinado à pesquisa cresceu 149%, ultrapassando o crescimento dos investimentos da Apple, Microsoft e da Samsung, em ações de P&D, no mesmo período. Como resultado, em 2019 mais de US$ 15 bilhões foram investidos em pesquisa e inovação pela companhia asiática. 

Aspirações de Estado

De natureza privada e com sede na cidade chinesa de Shenzhen, a proeminência da Huawei é emblemática, pois concretiza as aspirações do Estado chinês para a sua indústria de tecnologia. Durante muito tempo a China esteve restrita à condição de linha de montagem de industrias transnacionais. Frases como “fabricado na China, projetado na Califórnia”, expressas em aparelhos da Apple, por exemplo, reforçaram a condição de subdesenvolvimento da indústria do país. Nesse sentido, segundo Morozov, o progresso da empresa indica que “uma nova era está surgindo, na qual esse slogan poderia finalmente ser atualizado para projetado na China, fabricado no Vietnã”. 

Na avaliação dos EUA, essa transformação coloca em xeque a manutenção da sua hegemonia. No pós-guerra, outros países, como a Alemanha, o Japão e os Tigres Asiáticos, conseguiram um expressivo crescimento econômico e industrial, mas esses processos foram possibilitados, em parte, por meio de estratégias dos EUA. No caso da China o cenário é oposto. A potência asiática conseguiu esse feito com sua própria agenda geopolítica, enquanto os EUA perdem o seu protagonismo tecnológico. Atualmente a China, líder em número de patentes, concentra 34% dos registros relacionadas à tecnologia 5G. A Coreia do Sul possui 24,5%, a União Europeia (UE) 17% e os EUA aparecem em quarto, na classificação, com 13%.    

Em razão dessa disparidade, o governo estadunidense vem intensificando os esforços para limitar o avanço das empresas chinesas na implementação da tecnologia 5G. A campanha contra a tecnologia da China inclui empresas como a estatal ZTE, outro player importante no campo de equipamentos de computação, WeChat, TikTok e diversas outras companhias não tão conhecidas. Entretanto, a Huawei é o principal alvo. Para Morozov os EUA veem a Huawei como um “exemplo do comportamento desonesto chinês – amplamente confundido com o sucesso meritocrático no marcado – o qual rouba propriedade intelectual, intimida parceiros e prejudica concorrentes negociando produtos subsidiados por Pequim”. O autor bielorrusso destaca, também, que os EUA afirmam que a Huawei contribui para a “diplomacia da armadilha da dívida” operada pela China, da qual o Estado credor chinês utiliza do endividamento de outros países para alcançar seus objetivos estratégicos. Tanto a Huawei quanto a ZTE combinaram seus projetos de construção de redes na África e na América Latina com a disponibilidade de empréstimos chineses para muitos governos locais.   

Retaliação estadunidense

Medidas retaliatórias, por parte dos EUA, já foram tomadas contra o setor de tecnologia chinês. A grande dificuldade da China, no momento, é a dependência de componentes, em especial semicondutores, fabricados em Taiwan ou nos EUA. Entretanto, a China vem buscando tornar sua produção tecnológica cada vez mais resiliente. Para Pequim, a independência da indústria de tecnologia é condição necessária para a independência nacional. 

Washington levantou acusações de que os equipamentos produzidos pela Huawei poderiam ser utilizados como aparato de espionagem da China. As acusações invocam a Lei de Inteligência Nacional da China, de 2017, que obriga que empresas e cidadãos chineses colaborem com o governo quando requisitado. Esse instrumento jurídico objetiva, em parte, aproximar os setores militar e o tecnológico e, de acordo com Morozov, é cópia da política dos EUA. A Huawei negas todas as acusações de espionagem.

Por outro lado, ofensivas estadunidenses de espionagem já foram comprovadas em documentos da NSA (Agência de Segurança Nacional), vazados em 2013 por Edward Snowden. Foi revelado, inclusive, que a NSA monitorou conversas da presidente brasileira em exercício, Dilma Rousseff. Sobre isso, Morozov defende que “o domínio da Huawei em 5G seria um grande obstáculo para a supremacia dos EUA em inteligência”.

Evidencias produzidas pelos EUA para apoiar as acusações de espionagem chinesa são escassas ou inexistentes. No entanto, por meio de pressões políticas e econômicas dos EUA, diversos países vêm buscando se afastar da Huawei. O Chile deve desconsiderar a Huawei no seu projeto de cabos submarinos. A Índia ameaçou, como medida de retaliação, excluir a empresa chinesa do seu mercado. O Reino Unido exigiu que suas operadoras de redes móveis removessem todos equipamentos Huawei até 2027. A UE, que possui dois potenciais fornecedores de tecnologia 5G – a finlandesa Nokia e a sueca Ericsson –, não definiu política comum, garantindo a soberania de cada Estado Membro, dado que a questão foi enquadrada em termos de segurança nacional. 

Leilão indefinido

No Brasil o leilão do 5G foi adiado para 2021 e até a primeira quinzena de novembro de 2020 não há definição sobre a exclusão ou permanência da Huawei no futuro da telecomunicação brasileira. O Brasil tem sido assediado pelos EUA, que buscam convencer o país a afastar a empresa chinesa de seu ecossistema de telecomunicações. Cabe destacar que o alinhamento automático à Washington, marca da política externa do governo Bolsonaro, vai de encontro à principal parceira comercial brasileira, a China. Em 10 de novembro de 2020 o Brasil declarou apoio aos princípios contidos no programa Clean Network (Rede Limpa), ação liderada pelos EUA a fim de bloquear o avanços das empresas chinesas na implantação da tecnologia 5G. No dia seguinte, o subsecretário de Donald Trump, Keith Krach, fez um apelo, em Brasília, para que os países aliados se unam para se protegerem dos interesses de segurança nacional do “Partido Comunista Chinês”. 

O subsecretário também afirmou que a disputa pelo 5G é tema caro tanto para republicanos quanto para democratas. Ainda que o apoio ao Clean Network não implique necessariamente no banimento da Huawei na corrida pela instalação do seu padrão de 5G no Brasil, o país faz um forte aceno ao governo Trump, em suas últimas semanas no poder nos EUA.

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