A política doméstica e os militares

Por Flávio Rocha de Oliveira, Tarcizio Rodrigo de S. Melo, Juana Lorne, Julia Protes Lamberti, Lucas Ayarroio de Souza, Renan de Oliveira Ferreira e Thiago D’Carlo S. Ramalho

A influência dos setores castrenses no governo segue se ampliando. Além de apoiarem as articulações com o centrão, os militares estão cada vez mais presentes nas direções das estatais.

Os militares têm se mostrado cada vez mais presentes nas políticas do governo Bolsonaro. Desde o início de seu mandato, foram inúmeras oportunidades em que alguns membros das Forças Armadas participaram de ações tomadas pelo presidente. O ano de 2021 mantém essa tendência: esse grupo segue sendo uma forte base para o respaldo das medidas presidenciais. Nos dois primeiros meses do ano, se pode ver articulações promovidas pelos militares, como o apoio ao candidato aliado de Bolsonaro para a eleição de presidente da Câmara, Arthur Lira, e o apoio à gestão repleta de polêmicas do general Pazuello no Ministério da Saúde. 

A eleição para presidente da Câmara foi positiva para o governo. Essa vitória servirá como uma proteção para o presidente, pois ele terá um aliado capaz de emperrar as votações promovidas na Câmara que sejam contrárias aos seus interesses, possibilitando que medidas, como a PEC Emergencial, tenham sua aprovação apressada. Outra prioridade de Lira será frear investigações que tiverem Bolsonaro como alvo, além de um eventual processo de impeachment. É, porém, necessário ressaltar o forte apoio dos militares à candidatura e eleição de Lira, com articulação e, fato ainda mais visível, tendo o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, no comando das conversas – algo inédito após a redemocratização. Essa atitude mostra que as Forças Armadas possuem interesses na eleição do líder do Centrão, pois deve lhes trazer algum tipo de benefícios e proteção dos seus interesses.

As memórias do General Villas Boas

O início de 2021 também ficou marcado pelo lançamento do livro Conversa Com o Comandante, do General Villas Bôas, no qual este discute diversos acontecimentos de sua vida e, por consequência, da política brasileira dos últimos anos. Neste livro de memórias, o ex-comandante do Exército demonstra a atuação articulada dos militares para a eleição de Bolsonaro, na qual diversos militares o apoiaram ativamente em sua candidatura e com a anuência do Alto Comando do Exército. 

Agregando a isso, tem-se o tuíte publicado em 3 de abril de 2018,  às vésperas do julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, no qual Villas Boas afirmava que o “(…) Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.” 

Segundo o general, contrariando o que se pensava na época, a mensagem seria um alerta – e não uma ameaça – ao STF e que foi pensada em conjunto com o Alto Comando do Exército. Houve a gratidão posterior de Jair Bolsonaro quando foi eleito, o que se refletiu na ocupação do posto de assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República pelo próprio Villas Boas.

O oficial também garante em seu livro que, caso a ex-presidente Dilma Rousseff não sofresse impeachment, não haveria qualquer intervenção militar. O ex-comandante garante também que se Fernando Haddad saísse vitorioso nas eleições de 2018, haveria um cumprimento institucional por parte do Exército Brasileiro. Ambas afirmações podem até soar como “acalentadoras” frente aos conteúdos polêmicos do livro. Entretanto, isto é mera obrigação dos militares, prevista na lei. O pesado apoio de inúmeros integrantes das Forças Armadas a Bolsonaro é um plano estabelecido, provavelmente, desde 2014, por parte do Exército. Não é sem razão que haja um número elevado de militares, da reserva e da ativa, ocupando cargos no governo federal, uma vez que existem fortes interesses de ambas as partes nessa relação, como as medidas favoráveis que o Presidente garante a esses aliados, e uma base eleitoral e respaldo que tais integrantes das Forças Armadas podem garantir. 

Militares e o colapso da saúde

Em relação à pandemia, é importante analisar a posição dos militares no governo em relação à crise de saúde pública que prolonga no Brasil. O Ministério da Saúde  conta com mais de 30 militares em sua estrutura, sendo a terceira pasta com mais militares no governo. Chamam a atenção os graves equívocos cometidos em meio a situação pandêmica atual: foram trocadas as quantidades de vacina destinadas ao Amapá e ao Amazonas, em meio ao colapso no sistema de saúde de Manaus. Em contrapartida, 72% dos leitos dos hospitais militares no Amazonas foram reservados e seguem vazios. Isso aponta que, definitivamente, a inserção dos militares no setor de saúde, principalmente no cenário de pandemia atual, não se deu pelo conhecimento da área, por capacidades organizacionais ou altruísmo dos envolvidos.

Esses erros e equívocos são reflexos da posição da cúpula central do governo. Prova disso é a fala do Vice-Presidente, o General Mourão, em relação a um possível toque de recolher, no qual aponta ‘não ser viável num país como o Brasil’,  fazendo comparação entre o toque de recolher e uma ditadura. De acordo com o Vice-Presidente, a única saída possível para a pandemia a vacina. Porém, a vacina parece uma realidade cada vez mais distante, ao observar o veto do presidente Bolsonaro à Medida Provisória conhecida como MP de Proteção a Vida, que permitiria o prazo de cinco dias para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) conceder o uso emergencial da vacina do COVID-19.

O colunista Chico Alves, do UOL, trouxe a informação sobre uma pesquisa conduzida pelo Instituto Paraná acerca da imagem dos militares no governo.   Nela, o jornalista aponta que o percentual de respostas positivas é favorável às Forças Armadas. Todavia, é alta a taxa de manifestações negativas em alguns pontos da pesquisa. Num deles, a participação dos militares no governo Bolsonaro, 53,6% dos entrevistados considera que isso prejudica a imagem das Forças Armadas, enquanto 40,7% acreditam que não. Ainda que a matéria traga números que ainda mostram uma avaliação mais favorável para o estamento militar, o fato é que há números que parecem indicar que o desgaste sofrido pelo governo em diversos aspectos de sua atuação – e em especial no setor da saúde – está sendo transmitido para as instituições castrenses.

Militares e reformas no sistema de promoção de oficiais

Uma reação de oficiais do Exército levou o presidente Bolsonaro a revogar um decreto que alterava regras de promoção das Forças Armadas. O presidente editou em 7 de dezembro uma norma que acabava com a promoção por critério de antiguidade para o posto de coronel —​o último antes das patentes de oficial-general no Exército. Mas, em apenas dois dias, Bolsonaro teve que voltar atrás, diante de queixas de militares de que não havia regra de transição nas alterações e que elas afetariam oficiais que estão há mais de duas décadas em serviço. A promoção para coronel do Exército hoje é possível pelos critérios de antiguidade e merecimento. A mudança vinha sendo estudada pelo Alto Comando das Forças Armadas. O tema, no entanto, não é consenso entre militares, pois afeta justamente a hierarquia da força.

Segundo relatos, o principal argumento levado ao presidente é que sequer havia uma regra de transição e que o decreto afetaria inclusive oficiais que estão em estágio avançado na carreira. Isso porque o decreto revogado afetava as turmas formadas a partir de 1997. Não é a primeira vez que o presidente teve que revogar uma norma diante da reação de militares. Em junho, o mandatário editou um decreto para permitir que o Exército operasse aviões, e não só helicópteros. Diante da forte reação do ex-comandante da FAB, que alegou que a medida poderia comprometer operações conjuntas, Bolsonaro teve que voltar atrás. 

 Militares e Economia: Petrobrás e Eletrobrás

Apesar de fechar o ano de 2020 com lucro aproximado de 7 bilhões de reais, o governo bolsonaro entrou em confronto com o atual presidente da Petrobrás, Roberto Castelo Branco – uma indicação do Ministro  da Economia, Paulo Guedes – e que culminou com a decisão de troca de comando, além de críticas do mercado e desvalorização das ações da petroleira na bolsa de valores – houve uma queda de mais de 6% na sexta-feira (19 de fevereiro) e de aproximadamente 20% na segunda, porém voltando a subir nos últimos dias -, devido ao receio dos investidores sobre a possibilidade de alteração na política de preços. 

O indicado de Guedes, formado na escola de Chicago, é a personificação de um projeto privatista para a Petrobrás, fornecendo continuidade na política de preços, além de uma política de desinvestimentos, com a venda de refinarias e a retirada da atuação da estatal em diversos outros negócios, ao custo de aumentos sucessivos dos preços dos combustíveis nas refinarias. Com efeito, gerou descontentamentos e fissuras na base do governo, entre eles, os próprios caminhoneiros apoiadores de Bolsonaro nas eleições. O estopim entre o presidente da companhia e bolsonaro deu-se pelos fato dos preços dos combustíveis subirem pela quarta vez consecutiva em 2021 –  totalizando uma alta de 34,78% da gasolina e de 27,72% para o diesel no mesmo período desde o início de 2021 –, com um quinto aumento tendo sido anunciado.

Por outro lado, não podendo afirmar que a indicação do general da reserva, Joaquim Silva e Luna, para a presidência da companhia traga de volta uma “alma desenvolvimentista do exército”, pode-se concluir que sua indicação, na verdade, é uma tentativa do governo de ter acesso direto ao comando da instituição.  Com a posse de Silva e Luna, os militares vão compor um terço das estatais com controle direto da União, sendo de 46 empresas, 16 com presença de oficiais do exército no comando.   Um dos objetivos do presidente é tentar frear a crescente impopularidade causada pelos aumentos dos preços dos combustíveis e do gás de cozinha. 

Silva e Luna foi o primeiro militar a exercer o cargo de ministro da Defesa no governo do ex-presidente Michel Temer. Ele foi alçado ao cargo em janeiro de 2018 após a saída de Raul Jungmann. Atualmente é diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional.  Caso se concretize a posse, será a 1ª vez desde 1988 que um militar estará no comando da companhia. Vale ressaltar que o atual Conselho de Administração da Petrobrás é constituído por dois militares – ambos indicados pelo governo-, sendo o presidente do Conselho de Administração da empresa o Almirante da reserva, Eduardo Bacellar, o qual foi comandante da Marinha, Ruy  e formado em engenharia industrial mecânica e com experiências diversas fora da Petrobras, entre elas em empresas como os bancos Brascan e de Montreal

Em síntese, esse cenário expõe os choques entre os diversos grupos, que aparecerão em várias entrevistas que surgiram logo após o anúncio da substituição do presidente da Petrobrás. Enquanto o vice-presidente Mourão minimizou a importância do evento ao dizer que a ação foi por questões de confiança, Paulo Guedes chegou a afirmar que a troca foi fruto de ‘satisfação política’ de Bolsonaro aos caminhoneiros. 

A deliberação do governo Bolsonaro em indicar Silva e Luna e as próprias declarações do presidente sobre a política de preços podem resultar em processos para a petrolífera em diversas esferas, tanto nos órgãos de controle e esfera administrativa, como no próprio Judiciário. Existem dois pontos principais que podem frustrar a tentativa do governo:  é necessário a aprovação do militar como membro do Conselho de Administração para poder assumir o posto da presidência e, também, sua candidatura deve cumprir os requisitos de eletividade para ao cargo.

No primeiro caso, haverá uma Assembleia Geral Extraordinária da estatal, o qual o Conselho de Administração – formado por um presidente e dez conselheiros, sendo seis deles do bloco do acionista controlador (o governo federal) – decidirá sobre a aceitação do indicado. Entretanto, há certa resistência de parte do conselho e até o último dia 2 de Março, soma-se o total de quatro membros que pediram para deixar seus cargos na agremiação.  

O outro ponto é sobre a eletividade do militar com relação ao cumprimento dos requisitos mínimos das Leis das Estatais (Lei 13.303/2016). O artigo 17 da Lei das Estatais determina que a indicação para presidência de qualquer empresa pública ou sociedade de economia mista tem de ser feita “entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento”, com experiência comprovada na área, além de formação acadêmica relacionada ao cargo que foi indicado. Se eventualmente o militar não atender a tais dispositivos, há a possibilidade da União, devido ao seu papel majoritário de controle, poder ter que arcar com processos de perdas e danos gerados aos acionistas.

Na expectativa da escolha do novo presidente da Eletrobras, nomes de militares são cotados como opção para substituir Wilson Ferreira, que renunciou ao cargo em Janeiro deste ano, como noticiou o jornal O Globo em artigo publicado no dia 25 de Janeiro, logo após o anúncio da saída do então presidente da estatal. Ferreira permaneceria no cargo até 05 de março.

Um dos nomes apontados era o de Ruy Flaks Schneider.  Atualmente existem diversos nomes na administração da estatal que são indicações das Forças Armadas. Também aparece o nome do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que é considerado um aliado pelos defensores da privatização. Para especialistas, o mercado aguarda o novo nome com expectativa, já que pode representar o fim do “projeto liberal” traçado pelo governo e apontar para uma guinada intervencionista do presidente Bolsonaro, em linha com a indicação do general Silva e Luna para a presidência da Petrobras

Política de Segurança & Defesa 

Diante de uma das piores crises sanitárias na história do país e do cenário devastador em Manaus, a Força Aérea Brasileira (FAB) não possuía mais aviões cargueiros de alta capacidade de transporte e alcance (C-130 e KC-390 são cargueiros médios), que poderiam ajudar a levar suprimentos para a capital do Amazonas por causa de duas decisões do governo federal. A primeira foi o cancelamento em fevereiro de 2020 de uma licitação para a compra de uma aeronave usada Boeing-767-300ER, no âmbito do Projeto CX-2, que já se arrasta faz alguns anos. A segunda foi outro cancelamento de licitação em 20 de agosto de 2020, atingindo o leasing da mesma aeronave, que vinha sendo alugada desde 2016. O ministro da saúde, General Pazuello, disse que seis aviões (de porte e capacidade menor que os aviões visados pelo CX-2) da FAB seriam mobilizados para levar oxigênio para Manaus. O governo ainda tentava tomar emprestado um supercargueiro com o governo norte-americano para ajudar na ponte-aérea do oxigênio para o Amazonas.

Além da crise relacionada à licitação do CX-2 na FAB, em 2020, as Forças Armadas usaram verbas públicas para bancar a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas. O levantamento utilizou informações do Painel de Preços do Ministério da Economia, a mesma ferramenta pública que revelou as compras milionárias de leite condensado. Na ocasião, o Ministério da Defesa (MD) justificou que se tratava de um item “necessário” aos militares, dado seu alto teor energético e calórico. O MD informou que aguarda a notificação da Procuradoria Geral da República. Em nota, a pasta afirma que o “Ministério da Defesa e as Forças Armadas reiteram seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos. Eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.

No começo de dezembro de 2020, o presidente, Jair Bolsonaro, participou do batismo e do lançamento ao mar do submarino Humaitá (S-41) e da união das seções do submarino Toneleiros (S-42), em cerimônia que marcou as comemorações do Dia do Marinheiro. O Humaitá é o segundo da classe, fruto da cooperação tecnológica com a França – iniciada em 2008 -, que já lançou ao mar o submarino Riachuelo (S-40), que está nas fases finais de testes, com previsão de ser entregue para operação à Marinha em 2021. No total, estão planejados quatro submarinos convencionais, de propulsão diesel-elétrica, e um de propulsão nuclear. Além dos submarinos o programa visa toda a infraestrutura relacionada para construí-los e mantê-los, o custo total do programa originalmente era de € 6.7 bilhões, é sabido que este valor sofreu reajustes da ordem de R$ 1.5 bilhão no governo Temer. 

Relações com os Estados Unidos

A cooperação com os Estados Unidos, prevista em 2020 entre os governos Trump e Bolsonaro, foi abalada na gestão do Presidente dos EUA, Joe Biden, após receber um dossiê de 31 páginas recomendando a suspensão de acordos entre EUA e o Brasil. O documento surge em momento de intensa expectativa sobre os próximos passos da relação entre Brasil e Estados Unidos sob o governo atual. O longo dossiê pede o congelamento de acordos, negociações e alianças políticas com o Brasil enquanto Jair Bolsonaro estiver na Presidência. O documento condena a aproximação entre os dois países nos últimos dois anos e aponta que a aliança entre Donald Trump e seu par brasileiro teria colocado em xeque o papel de “Washington como um parceiro confiável na luta pela proteção e expansão da democracia”. O texto recomenda que Biden restrinja as importações de madeira, soja e carne do Brasil,  por meio de ordem executiva ou via Congresso “a menos que se possa confirmar que as importações não estão vinculadas ao desmatamento ou abusos dos direitos humanos” segundo o dossiê.

Foi assinado durante a administração de Trump e o governo Bolsonaro um acordo militar bilateral com os Estados Unidos, o Acordo para Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E, na sigla em inglês). A parceria dá acesso indireto a empresas do Brasil – como subcontratadas – a um fundo de desenvolvimento de tecnologia para defesa que chega a 100 bilhões de dólares. O governo brasileiro pretende trazer mais capacitação para a indústria nacional de defesa, que tem hoje cerca de 220 empresas, entre elas Embraer, Taurus e Avibrás, que, com poucas excessões, são em sua maioria pequenas ou microempresas. O Brasil exporta produtos de defesa hoje para 85 países, com vendas de 1,23 bilhão de dólares em 2019. A meta do governo é abrir mais mercados, especialmente o estadunidense, considerado o maior do mundo na área.

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