Relatório da CIDH escancara violações de direitos humanos no Brasil

27 de março de 2021

Por Ana Paula Teixeira, Isabela Montilha e Gilberto M. A. Rodrigues

País continua a ser cenário de brutalidades contra pobres, negros, indígenas e mulheres, num quadro de aprofundamento das desigualdades sociais, aumento da violência no campo e persistência do trabalho em condições análogas à escravidão.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou, em fevereiro passado, o relatório “Situação dos direitos humanos no Brasil”. As informações contidas neste documento referem-se à situação dos direitos humanos no país de novembro de 2018 até dezembro de 2019 e, mesmo não incluindo o período da pandemia de Covid-19, contém informações alarmantes sobre a proteção (ou falta dela) dos direitos humanos no Brasil. 

Vinte anos após a primeira visita da CIDH ao Brasil, pouco mudou no padrão comportamental do país, que segue perpetuando processos históricos de discriminação e desigualdade estrutural. Segundo a CIDH “apesar de possuir um Estado de Direito e sistema e instituições democráticas na área de direitos humanos, o Brasil enfrenta desafios estruturais para superar aspectos relacionados à discriminação historicamente negligenciada”. A Comissão aponta que tal discriminação está intrinsecamente ligada à exclusão social e ao acesso à terra no Brasil, que criam ciclos de desigualdade e pobreza extrema e impactam de forma exacerbada grupos específicos. As populações mais impactadas por este fenômeno são afrodescendentes, provenientes de comunidades quilombolas e indígenas, camponesas, mulheres e periféricas. 

Discriminação histórica – afrodescendentes, quilombolas, indígenas e mulheres 

Já no segundo capítulo do documento, a CIDH direciona suas análises para o assassinato sistemático e generalizado de pessoas afrodescendentes por parte das instituições de segurança e órgãos judiciais brasileiros. Estes, de acordo com a CIDH, são “direcionados a exterminar pessoas afrodescendentes com requintes de extrema crueldade”, o que se aproxima perigosamente de processos de limpeza étnica. Os dados trazidos pelo relatório apontam que o homicídio de pessoas afrodescendentes no Brasil cresceu 23,1% entre 2006 e 2016 e, no caso de violência policial, 67% das vítimas se consideram afrodescendentes do sexo masculino, entre 20 e 40 anos.

No caso das populações quilombolas, a discriminação racial resulta na omissão histórica do Estado, que só reconheceu formalmente a condição de povo tribal dessas populações com a promulgação da Constituição de 1988, que não resultou em uma real inclusão socioeconômica – e muito menos em reparação cultural e espacial – a essas comunidades. O apagamento das populações quilombolas faz parte de um projeto estatal, que até hoje não possui dados dimensionais ou característicos dessas. Além disso, a Comissão também alerta para a conivência estatal sobre ataques aos territórios quilombolas por atores privados ou públicos, o que compromete a capacidade dessas populações a continuar com seu modo de vida tradicional, resguardando sua identidade cultural, social e econômica. A retomada de megaprojetos nos limites de terras quilombolas também foi abordada no documento. 

Em relação às populações indígenas, as constantes ameaças de invasão territorial por “não indígenas” somam-se à emergência de agendas parlamentares que visam o desmonte de políticas indigenistas. Segundo a Comissão, apenas no final de 2018 mais de 100 projetos em trâmite no Congresso Nacional restringiam de alguma forma direitos indígenas, principalmente no tocante à demarcação de terras. O desmonte da FUNAI por parte do governo Bolsonaro também foi citado no documento. Combinado com o enfraquecimento das políticas ambientais  erode a capacidade de responsabilização às violações de direitos indígenas. Durante seu período no Brasil, a Comissão acompanhou in loco diferentes povos indígenas, como os Guarani, os Guyraroka e os Kaiowá, e constatou ataques frequentes de milícias armadas nas terras dessas populações, que frequentemente resultam em mortes e desaparecimentos. Também foi informada sobre a retomada de megaprojetos hidrelétricos e de mineração, que atualmente afetam a quase totalidade das terras indígenas em conservação na Amazônia Brasileira.

Por fim, a CIDH constatou também as bases machistas, patriarcais e estereotipadas que permeiam as relações sociais no Brasil. A Comissão constata que, apesar do desenvolvimento da Lei Maria da Penha desde sua última visita ao país, acompanhada de outros esforços contra a violência e discriminação de gênero – como as Delegacias de Defesa da Mulher e a adoção do Protocolo Único de Atendimento -, o Brasil segue apresentando índices alarmantes de assassinatos de mulheres. O documento utiliza de forma central o dado da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que aponta que 40% do total de assassinatos de mulheres na macrorregião ocorrem no Brasil. Nesse sentido, e levando em consideração que a maioria dos feminicídios brasileiros são cometidos por cônjuges ou parceiros das vítimas, o relatório expressa extrema consternação da Comissão às tentativas do governo Bolsonaro em tentar ampliar o acesso dos brasileiros a armas de fogo. As análises do CIDH também trazem perspectivas interseccionais de vulnerabilidade, visto que mulheres afrodescendentes representavam em 2015 quase 70% das mulheres assassinadas no Brasil. 

 

A discriminação socioeconômica

No que tange à discriminação socioeconômica, o relatório centraliza-se em dois grupos: as pessoas trabalhadoras rurais, camponesas e de migração forçada e as pessoas em situação de rua, população sem teto, vivendo em favelas e áreas periféricas. Inicialmente, abordando o primeiro grupo, destaca-se o histórico discriminatório estrutural relacionado aos conflitos de terra que, unido com os processos de desigualdade social, demonstra a perpetuação dos modelos de concentração de posse e propriedade de terras por pequenos grupos ou indivíduos. Embora esforços para a redistribuição de terra, através da reforma agrária, tenham se expandido desde a redemocratização com a consolidação da Constituição de 1988, em 2019 houve a suspensão do processo de distribuição de terras pelo INCRA, impactando diretamente 250 processos em curso.

Com os avanços da democratização de bens rurais em oposição ao processo de concentração de terra, intensificaram-se os conflitos rurais entre pessoas latifundiárias, camponesas e trabalhadoras rurais como demonstrado pelo aumento de 47% dos casos de conflitos no campo no Brasil nos últimos nove anos, chegando a 1.254 casos e um pouco mais de meio milhão de pessoas envolvidas somente em 2019, de acordo com o Relatório Anual de Conflitos do Campo no Brasil. A violência como modelo de atuação em disputas sobre terra, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), não é um fator isolado, como demonstrado pelos casos dos massacres na Fazenda Santa Lúcia no Pará, e especificamente com o recente caso Fazenda Brasil Verde x Brasil, no qual a repressão, e até mesmo a execução acometida por forças de segurança privada, não acarretou em nenhum julgamento ou condenação.

Em relação ao segundo grupo, as pessoas em situação de rua, população sem teto, vivendo em favelas e áreas periféricas, a comissão ressaltou o histórico de ausência de políticas públicas eficazes para a ocupação da terra urbana e a concretização dos direitos à moradia e habitação no país. De acordo com a CIDH, o fato de que há uma ausência de dados oficiais precisos sobre esse fenômeno, dificulta ainda mais o processo de construção e a execução de políticas públicas eficazes para o enfrentamento dos problemas. Aponta-se que embora existam esforços para construir uma política habitacional ampla e efetiva, tais políticas têm enfrentado desmonte por cortes orçamentários e reconfigurações, como o “Minha Casa Minha Vida”, que busca possibilitar a aquisição de casas por famílias classificadas como de baixa remuneração e que teve suas estimativas orçamentárias de 2020 reduzidas em 50% com relação ao ano anterior

 

As consequências da discriminação socioeconômica: As vítimas de trabalho forçado ou em condição análoga à escravidão e do tráfico de pessoas 

Já na última parte do relatório, são analisadas as consequências da discriminação socioeconômica, a partir das situações das vítimas de trabalho forçado ou em condição análoga à escravidão e do tráfico de pessoas. Inicialmente, destacam-se as recorrentes violações de direitos humanos no campo, na migração interna e internacional, bem como a situação de rua a qual muitas pessoas se encontram no país, acarretando na sua exposição e vulnerabilidade ao aliciamento para fins de tráfico de pessoas e para o trabalho escravo ou análogo à escravidão.

A Comissão destaca que o Brasil, além de ter sido o último país da região a abolir a escravidão, em 1888, seu contencioso internacional em Direitos Humanos demonstra a persistência de práticas de raiz escravocrata. Também aponta as condenações do Estado brasileiro, citando a não investigação e punição a execução extrajudicial de um trabalhador rural no caso da Fazenda Garibaldi e no caso da Fazenda Brasil Verde, e também ausência de proteção dos trabalhadores contra práticas de trabalho forçado e servidão por dívidas

Ressalta-se a existência do ciclo de perpetuação do trabalho em condição análoga da escravidão, devido às situações de vulnerabilidade econômica extrema daqueles que se encontram nessa situação e a ausência de políticas públicas efetivas para mitigar tal vulnerabilidade faz com que mesmo aqueles que tenham saído dessa condição, retornem a ela,. Segundo informações cedidas pelo governo brasileiro, nos últimos 20 anos, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados dessa situação

O ponto de maior preocupação, pela CIDH, é a extinção do Ministério do Trabalho, em 2019, pasta responsável por coordenar centralizar ações contra a erradicação do trabalho em condição análoga a escravidão, devido à delegação de suas competências para outros ministérios e órgãos, com possíveis danos à construção e execução de políticas públicas trabalhistas, também fragilizando a proteção social dos trabalhadores. Observa-se também, com alguns pontos da reforma trabalhista, aprovada em 2017, a precarização das relações de trabalho, contribuindo para o aumento de práticas exploratórias em condições análogas às de escravidão, podendo eventualmente imperdir os trabalhadores de buscar reparações perante o Poder Judiciário. 

 

Tráfico de pessoas

Abordando a situação de pessoas vítimas do tráfico de pessoas, retoma-se os vínculos entre o trabalho forçado e o tráfico de pessoas, como no caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde x Brasil, embora esse caso específico tenha um quadro situacional específico do campo, os padrões encontrados replicam-se nos espaços urbanos. Ressalta-se o dever do Estado em garantir as medidas necessárias para a libertação dos trabalhadores rurais e urbanos em situação análoga à de escravidão, embora seja necessária a cooperação internacional para o combate ao fenômeno.  

Mencionam-se os casos recorrentes de trabalho forçado no meio urbano, principalmente em grandes capitais como São Paulo, onde migrantes vítimas de tráfico foram resgatados em oficinas de costura subcontratadas por grandes grupos empresariais, alguns transnacionais. Nota-se que na cidade de São Paulo, 60% dos trabalhadores resgatados situavam-se em confecções e mais de 30% eram mulheres. 

Dois avanços em relação à problemática foram destacados pelo relatório da CIDH:  a aprovação da Lei de Migração de 2017, que traz avanços com relação a legislação anterior, e a aprovação da Lei nº13.334/2016, tratando da prevenção e punição ao tráfico interno e internacional de pessoas, assim como de medidas de proteção às vítimas. Por fim, a comissão concluiu que o Estado brasileiro deve atender  à construção de um processo sustentável da solução do problema, alertando sobre a necessidade de buscar soluções a longo prazo, unindo entes federativos internos e entidades internacionais, para mitigar as desigualdades estruturais do país.

 

[1] OEA. A CIDH publica seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e destaca os impactos dos processos históricos de discriminação e desigualdade estrutural no país.<http://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/050.asp>. Acesso em 21/03/2021.

[2] CIDH, Situação dos direitos humanos no Brasil, 12 de fevereiro de 2021, p. 23.

[3] Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Humanos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 6.

[4] Agência Brasil, Disque 100, ministério explica dados sobre violência policial, 26 de junho de 2020.

[5] CIMI, Congresso Anti-Indígena Os parlamentares que mais atuaram contra os direitos dos povos indígenas.

[6] CEPAL, Al menos 2.795 mujeres fueron víctimas de feminicidio en 23 países de América Latina y el Caribe en 2017, 15 de novembro de 2018; CEPAL. Observatorio de Feminicidios 2016 – 2017, s/f.

[7] INTRODUO (bibliotecaagptea.org.br)INCRA, Reforma Agrária Compromisso de todos, 1997

[8] Ministério Público Federal, A Reforma Agrária e o Sistema de Justiça, 2019.

[9] Repórter Brasil, Governo Bolsonaro suspende reforma agrária por tempo indeterminado, 08 de janeiro de 2019.

[10] Comissão Pastoral da Terra (CPT), Relatório Anual: Conflitos no Campo Brasil 2019, 2020.

[11]  Frontline Defenders, Brazil: two years since the Pau d’Arco massacre, still no justice, 24 de maio de 2019.

[12] Exame, Em 2020, recursos para Minha Casa Minha Vida serão 50% menores.

[13] Corte IDH, Caso Garibaldi vs. Brasil, sentença de 23 de setembro de 2009.

[14] Corte IDH, Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016.

[15]  Escravo Nem Pensar, O ciclo do trabalho escravo contemporâneo, 24 março 2014.

[16]  ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Humanos.

[17]  MPT, OIT, Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, 10 de junho de 2020.

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