Crise no Congo e a participação do Brasil

08 de maio de 2021

Por Pedro Lagosta, Magaly Morais, Enrique Lima e Kethelyn Santos

O Brasil já teve intensa mobilização militar e humanitária na ajuda ao país africano. A formação de um exército nacional congolês mostra-se essencial para que o Estado tenha um controle soberano sobre seu território. Mas, o foco não deve ser apenas técnico-militar, sendo necessário cada vez mais atenção no monitoramento dos direitos humanos violados na região e investimentos que permitam um desenvolvimento socioeconômico do país.
Histórico de conflito na República Democrática do Congo  A República Democrática do Congo atualmente enfrenta uma crise humanitária que já fez cerca de 6 milhões de vítimas. A nação é rica em recursos minerais como cobre, cobalto e diamante, mas a maioria da população vive em situação de pobreza. Tal quadro é reflexo de um conflito histórico de dimensões internacionais e domésticas, que se desdobraram até a atual crise humanitária. O que hoje se entende pelo Congo era em 1885 o Estado Livre do Congo, pertencente à Bélgica do rei Leopoldo II. Durante esse período, o território era explorado predatoriamente a fim da extração de recursos naturais. O colonialismo belga matou milhões e se apropriou de todos os recursos do território, impedindo o desenvolvimento da região de modo a ter infraestrutura e instituições de governança precárias ou inexistentes. É nesse período que residem as origens dos atuais problemas. Já durante o governo do presidente Mobutu, a partir de 1965, o Ocidente ofereceu suporte ao regime, uma vez que o país poderia ser um aliado africano no contexto da Guerra Fria, contribuindo para a manutenção de um governo despótico e corrupto que se apropriava da estrutura do Estado para enriquecer a si mesmo e a seus aliados. Ao findar da Guerra Fria e com o colapso no preço das commodities no final da década de 1980, o sistema de Mobuto, baseado na cleptocracia, perdeu as fontes necessárias para a manutenção de seu poder e controle. Diante disso, em 1990 foi forçado a abandonar o estado de partido único e iniciar um processo de abertura democrática. No entanto, faltava às instituições uma estrutura consistente para regular a disputa entre os partidos, o que acentuou ainda mais as instabilidades políticas.  O genocídio de Ruanda Em uma tentativa de aumentar sua legitimidade, Mobutu mobilizou a opinião pública contra imigrantes, atingindo principalmente a população de ascendência ruandesa nas províncias de Kivu. As tensões entre as comunidades indígenas e esses imigrantes irromperam em uma série de confrontos violentos, que viriam a se deteriorar ainda mais após o genocídio de 1994 em Ruanda. Com a morte de mais de 800 mil tutsis por parte do governo Hutu, refugiados cruzaram a fronteira para o Congo (nomeado como Zaire durante o período), dentre eles uma série de genocidas Hutu, soldados e milicianos responsáveis pelos assassinatos em massa. Com a simpatia de Mobutu, se abrigaram dentro do país ao redor de Goma e Bukavu para se organizarem em prol da retomada do poder em Ruanda por meio da força. Em 1996 com o domínio do governo Tutsi sob Ruanda, o país decidiu invadir o Zaire em busca dos antigos genocidas. Juntamente com Uganda, o país subsidiou uma coalização de rebeldes, fornecendo munições e contribuindo para a dissolução do reinado de Mobutu e consequente tomada do controle do país por parte dos rebeldes. Em maio de 1997, Laurent-Désiré Kabila foi instalado como novo Presidente do país. No entanto, as relações entre ele e seus antigos aliados se romperam até o ponto em que Ruanda e Uganda tentaram montar uma nova rebelião contra o novo líder, que recebeu apoio de Angola, Namíbia e Zimbabwe, transformando a região em um vasto campo de batalha com o envolvimento de pelo menos onze países africanos, de modo a fragmentar o Congo em quatro zonas de controle. Apesar da assinatura de um acordo cessar-fogo e o estabelecimento da missão de paz da ONU, o Congo permaneceu marcado por conflitos que são, como visto, o produto de dinâmicas regionais e locais, da fraqueza do Estado em função da herança colonial, bem como de conflitos de interesses da elite local. A relação histórica entre o Brasil e a RDC  Seguindo o Acordo de Cessar-Fogo de Lukasa, em Julho de 1999, entre a República Democrática do Congo e as nações de Angola, Namíbia, Ruanda, Uganda e Zimbabwe, o Conselho de Segurança estabeleceu a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (Monuc) pela resolução 1279 em 30 de novembro de 1999. Sua atuação inicial tinha como foco acompanhar o cessar-fogo e observar a retirada de tropas estrangeiras do país. A partir de novas resoluções aprovadas posteriormente, a Monuc teve seu mandato expandido, aumentando sua atuação no cessar-fogo.  A Monuc ajudou na organização das primeiras eleições democráticas do Congo em 46 anos, no dia 30 de Julho de 2006, sendo vitorioso Joseph Kabila, filho de Laurent Kabila. A Monuc continuou a atuar após as eleições, desenvolvendo tarefas políticas, militares e de reconstrução do país. Apesar da tímida melhora no país, a República Democrática do Congo ainda sofria diversos problemas relacionados à violência, crises humanitárias e violações de direitos humanos, as quais levaram a novos grupos armados e forças estrangeiras a se espalhar pelo país.  Em 1 de julho de 2001, observando a continuidade de problemas no Congo, a Monuc teve uma mudança em seu nome a partir da resolução 1925, agora renomeado Missão das Nações Unidas para a estabilização da República Democrática do Congo (Monusco). Essa mudança tinha como objetivo a observação de um novo estágio alcançado pelo país, buscando ampliar a atuação da ONU no controle da violência e problemas internos que abalavam os congoleses. A nova missão autorizava o uso de quaisquer meios necessários para a execução de um mandato, o qual focava a proteção de civis e defensores humanitários frente à crescente violência, e apoiava o governo da RDC para a estabilização e consolidação da paz.  Apesar da atuação do governo local e da Monusco, os ciclos de violência, principalmente na porção oriental do país, se mantiveram. Como forma de aumentar as capacidades da ONU e aumentar o apoio a RDC, em 28 de março de 2013, a partir da resolução 2098, foi aprovada uma extensão no mandato da Monusco e a criação da Força da Brigada de Intervenção (FIB), com intuito de fortalecer a operação a partir de uma força armada própria da ONU. Isso representou a criação de uma força armada ofensiva por parte da ONU, tendo como princípio básico a manutenção da paz. A missão foi liderada pelo Brasil, com Carlos Alberto dos Santos Cruz como Comandante da Força, entre julho de 2013 a dezembro de 2015. A participação brasileira representava a atuação do país em uma política externa pró-ativa, a convocação de um general brasileiro pela ONU confirmou o protagonismo do Brasil naquele momento de engajamento com os países africanos. Santos Cruz havia atuado como Comandante-Geral na missão do Haiti entre setembro de 2006 e abril de 2009, obtendo resultados positivos.   Em maio de 2018, Elias Rodrigues Martins Filho assumiu a posição de Comandante da Força, atuando até outubro de 2019. A participação brasileira continuou com Ricardo Augusto Ferreira Costa Neves entre outubro de 2019 e março de 2021. O novo Comandante da Força, Marcos De Sá Affonso da Costa, outro general brasileiro, foi anunciado em abril deste ano. Ele irá atuar dentro do novo mandato da Monusco, o qual foi estendido até 20 de dezembro de 2021, a partir da resolução 2556.  Esse novo mandato tem como objetivo a missão a proteção de civis e o apoio para a estabilização, fortalecimento de instituições públicas e reformas nos setores de governança e segurança. A participação brasileira na Monusco representa o histórico de participação do país em missões de paz da ONU, principalmente em relação à aproximação que o Brasil teve com o continente africano durante os governos Lula.  A crise humanitária atual na RDC  A pandemia do Covid 19 tem tido forte impacto no número de óbitos em escala global, entretanto na República Democrática do Congo existem outras interfaces que subsidiam o contexto atual de reforços humanitários destinados ao país. Dentre as principais agências como ONU, OIM, Save the Children, o foco consiste em erradicar concomitantemente a epidemia de Ebola que novamente eclodiu no final de 2020, concorrendo com o Covid-19, e ainda, os ataques milicianos de grupos radicais no Eastern Congo.  O grupo armado ADF – Forças militares Aliadas, constituído de rebeldes muçulmanos ugandeses, opositores do regime de Yoweri Museveni,  categorizado como “grupo terrorista” pelos EUA, vem atuando violentamente com sequestros, estupros, mortes, queimas de casas e vilarejos, incitando deslocamento forçado no continente. Segundo relatórios da ONU, o país sofre “recordes de mortes em atrocidades de grupos armados” e esses crimes com mortes de civis podem ser classificados como crimes contra humanidade. Os conflitos armados intensivos ocorrem predominantemente na província Kivu do Norte (Nord-Kivu), onde o contingente estimado de deslocados aproxima-se de 2 milhões,  e ainda  nas regiões de Ituri, Tanganyika Province e South Kivu. A OIM constitui um dos vetores de resposta em assistência humanitária multisetorial para fins de apoio no controle do Covid-19 e estabilização do Ebola, e pós-Ebola, além da tentativa de amparo com medidas para prover alimentação a população vitimada e carente. Dentre os enfrentamentos complexos da população na região nos últimos 2 anos e meses recentes, configuram outras enfermidades que somadas ao histórico de “eclosões de instabilidade sistêmica”, geram pressão adicional e infraestrutura aos precários serviços assistenciais oferecidos. Nos termos da OIM Vision (Feb. 2021), “The lack of effective governance of mineral resources also continues to remain a significant challenge for conflict resolution economic, growth and respect of human rights.” O papel do Brasil na Monusco no contexto atual  Com a retomada das relações entre Brasil e a República Democrática do Congo (RDC) nos governos Lula, a Monusco e outros instrumentos de cooperação técnica-militar ganharam força. Atualmente, o general brasileiro Marcos de Sá Affonso da Costa chefia a missão de paz no país, substituindo o general também brasileiro Costa Neves. A Monusco conta com 13 mil integrantes de 50 países diferentes, atuando principalmente no leste da RDC, local de diversos conflitos e ataques.  O principal grupo armado congolês, ADF (Allied Democratic Forces), foi responsável pela morte de 849 civis no ano de 2020. Não somente isso, praticam violência sexual e outros crimes contra a humanidade. Para o até então comandante da operação, general Costa Neves, a situação na RDC não é apenas de intervenções militares externas, mas de um esforço coletivo para a proteção dos direitos civis de crianças e mulheres (as principais vítimas), junto ao monitoramento de todas as violações de direitos humanos. Também se discute cada vez mais como os acordos e intervenções militares externas prolongam o conflito, sendo necessária a formação de um exército nacional congolês para a consolidação de um Estado soberano. Em 2013, ocorreu a criação da FIB (Force Intervention Brigade), também chefiada por um general brasileiro. Seu objetivo principal, junto da Monusco, era neutralizar os grupos armados no leste do Congo, porém tratava-se de mais um esforço técnico-militar. O Brasil vem sendo o ator principal na missão, utilizando-se do sistema internacional para tentar implementar medidas de médio e longo prazo, visando a soberania e o desenvolvimento da RDC. Dentro dessas medidas, encontram-se políticas de serviços públicos e fomento econômico, indo além de intervenções militares. O estreitamento na cooperação militar entre os países pode ser responsável pela intensificação das relações comerciais também, afinal, abre vias para o intercâmbio de informações, pessoas e tecnologias.  Dessa maneira, é notável como o Brasil é capaz e possui recursos para ajudar o Congo. Experiências prévias de cooperação naval com a Namíbia e Angola evidenciam isso, sendo possível até replicar algumas medidas na RDC. A formação de um exército nacional congolês mostra-se essencial para que o Estado tenha um controle soberano sobre seu território. Mas, o foco não deve ser apenas técnico-militar, sendo necessário cada vez mais atenção no monitoramento dos direitos humanos violados na região e investimentos que permitam um desenvolvimento socioeconômico do país.

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