08 de maio de 2021
Por Ana Beatriz Aquino, Gustavo Mendes de Almeida, Mirella Acioli, Rafael Osório Reis Sales, Nicole Lima
Em meio à pandemia de covid-19, fragilidades nas instituições e num cenário de incertezas e crises, o Peru se prepara para o segundo turno das eleições presidenciais, Na disputa estão a direita fujimorista, na figura de Keiko Fujimori, e a esquerda popular, no programa de Pedro Castillo. A população encontra-se desmotivada politicamente, mas espera de qualquer dos candidatos transformações políticas efetivas e o fortalecimento do Estado
Em um contexto de crise institucional, econômica e sanitária, agravado pelo desgaste de lideranças políticas e pela pandemia de Covid-19, o Peru decidirá no próximo 6 de junho quem ocupará a presidência da República pelos próximos cinco anos. O fenômeno observado no primeiro turno, ocorrido em 11 de abril, que resultou na escolha do professor de escola rural Pedro Castillo e de Keiko Fujimori (filha do ditador Alberto Fujimori), precisa ser analisado de forma cuidadosa.
As votações se descolaram das principais projeções e análises políticas, principalmente em relação ao desempenho de Castillo, uma vez que o professor chegou na dianteira diante de figuras tidas, até então, como favoritas, que dispunham de maiores recursos econômicos, midiáticos e políticos. A disputa presidencial agora ilustrará a realidade de um país fragmentado e com rarefeita mobilização política.
O Peru vem apresentando um índice diário acima de 10 óbitos por milhão de habitantes, garantindo o quarto lugar na região, atrás apenas do Brasil, Paraguai e Uruguai. Com níveis baixíssimos de testagem e vacinação, a pandemia vem afetando a população de maneira trágica e desigual, o que resulta no aprofundamento da descrença na capacidade das lideranças políticas em gerenciar a crise, e coloca em questão reais benefícios do modelo de exportação de minerais empreendido através da lógica neoliberal.
O próximo chefe de Estado precisará retomar a confiança da população após os escândalos de corrupção que dominam a pauta política desde 2016, quando os principais nomes que governaram o país tiveram seus nomes envolvidos em esquemas ilegais de financiamento eleitoral.
A Lava-Jato peruana e o declínio das instituições
Em 2016, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos divulgou um documento no qual se denunciava um sistema de corrupção entre empreiteiras brasileiras e o governo peruano. Pelo texto, esquemas de propinas eram estabelecidos entre servidores públicos no período de 2005 a 2016, por meio de licitações e obras de infraestrutura. As investigações – conhecidas também lá como “Lava-jato”- foram variantes decisivas para que a crise política tomasse conta do cenário institucional. As investigações apontaram que os partidos que estiveram à frente de distintos governos na história recente se envolveram, direta ou indiretamente, em esquemas ilegais, ao ponto em que já não havia nenhum presidente ou ex-presidente vivo que não fosse réu ou estivesse sob investigações. Quanto mais os escândalos dominavam os noticiários, mais as agremiações perdiam apoio popular.
Os escândalos fizeram ruir as bases governistas, levando o então presidente, Pedro Pablo Kuczynski (PPK) a renunciar em 2018. Seu vice, Martin Vizcarra, assumiu o posto, mas sem muitas alternativas para viabilizar minimamente qualquer proposta de governo. Em pouco mais de dois anos após assumir o cargo, Vizcarra sofreu um processo de impeachment por vinculação a esquemas de corrupção. O presidente do Congresso Nacional, Manuel Merino, assumiu a cadeira presidencial, mas em uma semana renunciou ao cargo por não ter legitimidade reconhecida. Por fim, após votação no Congresso, Francisco Sagasti foi eleito presidente interino, sob a promessa de não se candidatar novamente e afirmar o compromisso de transacionar pacificamente o cargo para o sucessor após o ciclo eleitoral em 2021.
Toda essa instabilidade e rotatividade presidencial escancara a fragilidade institucional peruana. Para o pleito de 2021, há um crescente sentimento de descrença na política e uma forte instauração de perspectivas antipolíticas dominam a opinião pública.
Os candidatos, divergências e semelhanças
Pedro Castillo
Jose Pedro Castillo Terrones, 51 anos, é professor em uma escola primária no povoado de Puña, na província de Chota, em Cajamarca, departamento no interior do Peru. Embora só tenha ganhado notoriedade a partir de 2017 – quando se notabilizou por ser um dos líderes na paralisação nacional dos professores -, Castillo é um importante líder regional há algumas décadas. Além de sindicalista – com atuações importantes no Sutep (Sindicato Unitario de Trabajadores en la Educación de Perú) -, o professor foi Rondero, integrante da Ronda Campesina, patrulha autônoma que atua como defensora da população na zona rural, com grande capacidade de mobilização e que está ligada a forças populares de esquerda. Castillo é candidato pelo Perú Libre, partido que se autodefine como “marxista-leninista-mariateguista” e se coloca em contraposição à direita e aos partidos tradicionais da própria esquerda, que, segundo o grupo, seriam coniventes para a manutenção do status quo neoliberal.
Tendo como base a elaboração de uma nova Constituição, Castillo promete desmontar o neoliberalismo vigente e colocar em prática um novo regime econômico, com um Estado interventor e regulador do mercado. Além das mudanças no caráter econômico, o candidato propõe uma profunda reforma política, com a adoção de um sistema federativo, visando descentralizar as ações públicas que hoje se concentram em Lima.
Analisando o plano de governo de Castillo, é possível notar influência dos governos de Evo Morales e Rafael Correa em algumas de suas propostas, principalmente em torno da reforma constitucional, que deve abarcar a estatização/nacionalização de empresas de setores estratégicos, a proibição da privatização da água e o reconhecimento do Estado Plurinacional, questões implementadas na Bolívia e no Equador na primeira década do milênio. Entre suas propostas, estão a nacionalização de setores como o de hidrocarbonetos e o da mineração, medidas tidas como fundamentais para financiar políticas públicas para educação, saúde e infraestrutura, além de possibilitar a distribuição de renda e o aumento salarial para professores, médicos e policiais. Na educação, o candidato assegura que destinará 10% do PIB para o setor (hoje o valor investido em educação no país é cerca de 3,5% do PIB), se comprometendo a erradicar o analfabetismo, melhorar a qualidade do ensino primário e secundário, além da construção de pelo menos uma universidade pública em cada departamento peruano e a promoção de um maior acesso ao ensino superior gratuito e de qualidade.
Em relação à política externa, o plano de governo de Castillo prevê uma revisão dos acordos internacionais assinados pelo país no passado, como os Tratados de Livre Comércio, a Aliança do Pacífico e o Acordo de Associação Transpacífico. Ademais, é tratada a integração latino-americana, baseada em princípios soberanos e com o intuito de superar o subdesenvolvimento. Por fim, o dirigente se coloca contra a OEA (Organização dos Estados Americanos) e as Organizações Não-Governamentais, às quais acusa de serem financiadas pelos países centrais, controlando setores sociais nos países em que atuam.
O plano de governo de Castillo foi elaborado e redigido antes do início da pandemia de Covid-19. Assim, as propostas do candidato para o combate do vírus só foram apresentadas nos debates presidenciais. Castillo assegurou já ter feito contatos com a embaixada russa para a viabilização da compra de 20 milhões de doses da Sputnik V, com a pretensão de fazer uma vacinação em massa e gratuita. Por outro lado, o candidato se coloca contrário a medidas como o lockdown, alegando a necessidade dos peruanos em sair de casa para trabalhar, o que reforça a necessidade de uma vacinação em larga escala.
Embora Castillo tenha uma posição totalmente oposta ao que pensa Keiko Fujimori em relação à economia, é possível notar um discurso similar quando se trata de aspectos da agenda de direitos humanos. Tanto Fujimori quanto Castillo são extremamente conservadores nesse sentido: são contra o casamento homossexual, contra a inclusão da igualdade de gênero no currículo escolar e também contra o aborto.
Keiko Fujimori
Keiko Sofía Fujimori Higuchi, 45 anos, é administradora de empresas e atual presidenta do partido Fuerza Popular. A candidata é uma figura conhecida no cenário político do país: filha do ex-ditador Alberto Fujimori (1990 – 2000) e da deputada federal Susana Higuchi (2000 – 2006). Ela iniciou sua trajetória pública ao assumir a posição de primeira-dama (1994 – 2000) após o divórcio de seus pais.
O governo de seu pai parece ter influenciado alguns pensamentos da atual candidata. O primeiro mandato de Alberto Fujimori começa em 1990, quando a população peruana, insatisfeita com os últimos governos, buscava alguém que não pertencesse aos partidos tradicionais. O então postulante assumiu um país com alta inflação e desequilíbrios crônicos, com altos índices de violência política. Esses problemas receberam grande atenção em seu governo, que obteve grande apoio popular em seus primeiros anos. Implantando um rígido programa neoliberal, em linha com o Consenso de Washington, o governo privatizou empresas e serviços e derrubou a inflação. As medidas causaram também forte concentração de renda e aumento da exclusão social.
Diante de novas instabilidades, Fujimori centralizou o poder nas mãos do Executivo e fragilizou as instituições políticas, o que culminou em um autogolpe orquestrado pelo presidente e pelas Forças Armadas, setor buscado para legitimar as ações presidenciais.
O autogolpe de 1992 instituiu um governo autoritário, de alta repressão política e controle midiático, que instaurou uma nova Constituição e enfraqueceu os demais poderes, concentrando-os nas mãos do presidente. No mesmo ano, ocorreu a captura de Abimael Guzmán, líder do Sendero Luminoso, movimento armado com tinturas socialistas, criado ainda nos anos 1960, e que mantinha conflitos violentos com o governo. Diante de fortes denúncias de corrupção e diante de fortes turbulências econômicas, Fujimori renuncia em 2000. Nove anos depois é condenado a 25 anos de prisão por crimes contra a humanidade, praticados durante sua administração, como o sequestro de um jornalista e a esterilização forçada de 350 mil mulheres.
Em 2006, Keiko é eleita deputada federal pela região metropolitana de Lima, com votação recorde, permanecendo no cargo até 2011, quando decide disputar as eleições presidenciais. Ela chega ao segundo turno tanto em 2011 quanto em 2016, mas não alcança a vitória.
Sua atuação política foi marcada por esforços para garantir a reversão da prisão de seu pai e pelo seu envolvimento em escândalos de corrupção: A ex-deputada esteve presa por um período de mais de um ano, de 2018 a 2020. Keiko é acusada de participar de esquemas de lavagem de dinheiro, obstrução de justiça e organização criminosa. A candidata, que se encontra em liberdade condicional após concessão de habeas corpus, alega sofrer perseguição política. Até o fim de março, Keiko Fujimori apresentava 55% de rejeição, maior índice entre os postulantes no primeiro turno. Mesmo com seu avanço para a segunda volta, a dificuldade de reverter a rejeição a sua figura é notável.
Em seu plano de governo “Rescate 2021”, Keiko realiza uma defesa da Constituição estabelecida pela gestão de seu pai. A candidata afirma que o país apresenta bases sólidas, garantidas pela Carta de 1993. Assim, ela descarta qualquer tipo de mudança institucional radical e aponta poucas reformas para solucionar a crise institucional no país. No âmbito econômico, Keiko busca continuar a política neoliberal fujimorista. Alguns dos pontos de destaque de seu plano econômico são a redução do desemprego, uma reforma tributária, e previdenciária e a adoção de medidas sustentáveis na mineração, para atender demandas internacionais relacionadas ao meio ambiente. Keiko afirmou em entrevista que o país necessita de uma “Demodura”, neologismo criado pela candidata para denominar um hipotético regime democrático governado por “mãos duras”. O conceito aproxima sua proposta de governo com a visão autoritária do fujimorismo.
As propostas da candidata para a pandemia são contrárias a recomendações de organismos internacionais de saúde, uma vez que ela defende o fim do isolamento social e acredita que medidas como a realização maciça de testes PCR e construção de fábricas de oxigênio serão suficientes para conter a expansão do vírus. Em relação à vacina, assim como seu oponente Pedro Castillo, Fujimori afirmou ter conversado com o embaixador russo para garantir a aquisição da Sputinik-V. Além disso, a líder do Fuerza Popular defende a participação do setor privado na aquisição e aplicação de imunizantes. A candidata também anunciou propostas como pagar uma indenização de dez mil sóis peruanos para famílias que perderam membros por Covid. Em meio à recessão, economistas peruanos questionam de onde viriam os recursos para as indenizações e se seria possível contemplar todas as famílias vitimadas, tendo em vista a alta de casos.
Para Fujimori, a política externa de seu governo deve se concentrar no crescimento econômico do país e no desenvolvimento sustentável. A candidata também destaca a importância do Grupo de Lima para as relações do país na região. Ademais, ela enxerga a diplomacia como uma maneira de alavancar a recuperação da economia e do sistema de saúde do país.
Capital e interior
Observa-se uma divisão muito clara entre as preferências eleitorais do centro urbano de Lima em comparação com as populações campesinas do interior do país. Essas últimas se identificam com a figura de Castillo, de bases andinas interioranas e propostas que contemplam essa parcela da população, assumindo uma plataforma focada em reformas constitucionais e sociais. Por outro lado, Fujimori detém grande apoio na capital, onde se concentra a maior parte do setor empresarial e do eleitorado de classe média e média alta, assumindo uma posição de continuidade com o modelo neoliberal difundido por seu pai. Enquanto Pedro Castillo atrai 51% das intenções de voto no interior, face aos 26% em Lima, sua opositora exibe o cenário inverso, com 43% de intenções de voto em Lima e 24% no interior do país, segundo dados da pesquisa realizada no fim de abril pelo Instituto Ipsos.
Apesar de cada vez mais acirrada, a corrida eleitoral até aqui projeta uma vitória de Castillo no segundo turno, fruto também de uma enorme rejeição que a figura de Keiko Fujimori acumula, a partir da história de seu pai. Mesmo sob alto nível de desconfiança política, a eleição de Castillo representa a resistência do bloco popular-rural peruano que, há décadas, vota por mudanças sociais efetivas e sucessivamente é deixado de lado por aqueles que ocupam os altos cargos políticos do país.
Há sérias dúvidas se os candidatos – uma vez no governo – terão força suficiente para implementar suas agendas. A tarefa principal de cada um será negociar com o Congresso e conquistar a opinião pública, para vencer resistências variadas.
Apesar de certa proximidade em agendas de direitos sociais, Castillo defende um Estado forte, focado na autonomia regional e desenvolvimento nacional, enquanto Keiko apresenta a defesa de um projeto nacional em que há o fortalecimento de um governo personalista e que favorece a elite local. O envolvimento de seu sobrenome em investigações de corrupção pode atrapalhar seu desempenho nas urnas.
As duas postulações podem ser consideradas “radicais” e “extremistas” e, talvez por isso, não alavanquem a efervescência do apoio popular. A jornada será tensa até 16 de maio.
Relações com o Brasil
Embora o vicepresidente Hamilton Mourão tenha feito uma viagem oficial ao país em outubro de 2019, a proximidade brasileira não parece ser prioridade do atual governo. Os dados relativos ao Peru na página do Itamaraty não são atualizados há mais de dois anos. O exemplo é dado abaixo:
“O Brasil é o terceiro maior parceiro comercial do Peru. Em 2018, o intercâmbio comercial foi de US$ 3,97 bilhões, tendo aumentado 2,5% em relação a 2017. As exportações brasileiras alcançaram US$ 2,15 bilhões, e as importações US$ 1,81 bilhões. O Brasil exportou para o Peru principalmente automóveis de passageiros; polímeros de etileno, propileno e estireno; chassis; barras de ferro e aço; e papel e cartão. Importou, por sua vez, naftas; minérios de cobre e seus concentrados; minérios de zinco e seus concentrados e catodos de cobre e seus elementos”.
Referências