A tramitação em regime de urgência do Acordo de Livre Comércio entre Brasil e Chile

08 de maio de 2021

Por Kayque Ferraz, Mikael Servilha e Felipe Lelli

As negociações evidenciam o distanciamento da forma de inserção internacional alicerçada no Mercosul e são indicativos do modelo profundamente liberal por meio do qual o Brasil pretende tratar as questões comerciais

Assinado em 21 de novembro de 2018, ainda na gestão de Michel Temer, o Acordo de Livre-Comércio entre Brasil e Chile foi enviado para tramitação parlamentar pelo presidente Jair Bolsonaro em 20 de agosto de 2019. Por pouco mais de um ano e seis meses o texto seguiu os trâmites internos da Câmara dos Deputados em regime ordinário, passando pela Mesa Diretora e pelo Plenário, com a designação e apresentação de parecer preliminar do relator. Em 3 de março de 2021, contudo, a tramitação passou para regime de urgência, o que significa que o texto deve entrar na pauta de votação em breve, a depender somente da constituição de comissão especial pela Mesa. A aceleração no regime interno da Câmara não foi amplamente noticiado e o acordo pode vir a ser aprovado pelo Legislativo sem a devida discussão com a sociedade civil brasileira e atores diretamente interessados, como as centrais sindicais. 

Ratificado pelo Senado chileno em agosto de 2020, o texto do Acordo de Livre Comércio (ALC) entre Brasil e Chile, enquadra-se formalmente como o Sexagésimo Quarto Protocolo Adicional a ser incorporado ao Acordo de Complementação Econômica Nº 35 (ACE-35), de 1996, que rege as relações entre o Mercosul e o Chile. Em seus 24 capítulos, o texto abarca 17 temas não tarifários que abrangem o comércio de bens e serviços, questões de telecomunicações, comércio eletrônico, compras governamentais, entre outros aspectos

Segundo o Ministério de Relações Exteriores (MRE), o “Chile é uma prioridade para o comércio exterior brasileiro por seu dinamismo econômico” e também “por integrar a Aliança do Pacífico com o México, Peru e Colômbia”. “Será a primeira vez que o Brasil assume, em acordo bilateral de comércio, compromissos em matéria de comércio eletrônico; boas práticas regulatórias; transparência em anticorrupção; cadeias regionais e globais de valor; gênero; meio ambiente; e assuntos trabalhistas”, afirmou o MRE.

Segundo maior parceiro comercial do Brasil na América Latina, atrás somente da Argentina, as transações com o Chile chegaram a movimentar a soma de cerca de US$8,5 bilhões em 2017. Os três maiores produtos exportados – petróleo, carne bovina e automóveis – somam cerca de US$2,1 bilhões anualmente. 

Elaboração própria. Fonte: Guia de Comércio Exterior e Investimento / MRE, 2015

As exportações brasileiras para o Chile são compostas, em sua maior parte, por produtos manufaturados, que representam cerca de 57,8% do total, com destaque para tratores, autopeças, papel e cartão. Os básicos posicionam-se em seguida com 40,1%, representados por óleo bruto de petróleo e carnes. Os combustíveis representam mais de 1/5 da pauta das exportações brasileiras para o Chile. Em 2015, somaram 28,3% do total, seguidos de automóveis com 14,3%; e carnes com 8,8%. Já nas importações, o cobre é o principal item importado pelo Brasil, representando 31,2% das importações em 2018; seguido de outros minérios e álcoois acíclicos com 21,9%; pescados (salmão e outras carnes de peixes) com 13,8%; e frutas (maçãs, uvas e nozes) com 5,5%; 

 

Virada ao Pacífico

Desde o governo Temer, há evidências de mudanças na forma de inserção internacional do Brasil. O governo Bolsonaro deu continuidade e aprofundou determinadas políticas (OPEB, 2021). Especificamente sobre a inserção comercial, nota-se uma virada ao Pacífico, evidenciada pelo ALC entre Brasil e Chile. Esse giro tem se revelado também nas falas públicas de ministros nos últimos anos. Ainda em 2010, por exemplo, quando era candidato à presidência, José Serra defendeu mudanças na forma de inserção internacional no Brasil na região e advogou em favor de alterações no Mercosul. Quando assumiu o Ministério das Relações Exteriores no governo Temer, seguiu a mesma linha de defesa por mudanças no Mercosul e aproximação com a Aliança do Pacífico

Durante a campanha de 2018, Paulo Guedes, já indicado para assumir o Ministério da Economia caso Bolsonaro ganhasse o pleito, declarou que a Argentina e o Mercosul não seriam prioridades do governo. Afirmou ainda que o bloco “é muito restritivo, que o Brasil ficou prisioneiro de alianças ideológicas e isso é ruim para a economia”. Em 2019, já no cargo de ministro, após as pesquisas indicarem a possível vitória de Alberto Fernandez na Argentina, Guedes assinalou que o Brasil poderia sair do Mercosul, caso o Fernandez e Kirchner quisessem “entrar e fechar a economia deles”. No mesmo ano, na ocasião da declaração conjunta para acelerar o Acordo Brasil-Chile, Ernesto Araújo, então chanceler brasileiro, disse que “os dois países devem intensificar a aproximação entre o Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, pois Venezuela está suspensa temporariamente) e a Aliança do Pacífico (Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Peru)”.

Por fim, agora, em abril de 2021, após a reunião de ministros do Mercosul e, note-se, após tramitação do ALC passar ao regime de urgência, o secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Roberto Fendt, afirmou que “o Mercosul é uma ferramenta importante para a inserção internacional brasileira, desde que haja mudanças”. Na reunião, duas propostas foram apresentadas: redução da tarifa externa comum e possibilidade de negociar acordos sem depender do Mercosul. Fendt afirmou ainda que o Brasil não abre mão dessas mudanças no bloco – Uruguai e Paraguai defendem posições semelhantes, enquanto a Argentina se opõe.

 

Distanciamento do Mercosul

O Acordo Brasil-Chile segue as diretrizes de alteração da inserção comercial brasileira e reflete os anseios de aproximação ao Pacífico do Estado brasileiro, sobretudo a partir do governo de Michel Temer. Mais do que isso, confronta o país também a um modelo regulatório inspirado na estrutura e dispositivos da Parceria Transpacífica (TPP – agora CPTPP). Tomados em conjunto, os discursos e as negociações efetivadas evidenciam o distanciamento da forma de inserção internacional brasileira alicerçada no Mercosul e são indicativos do modelo profundamente liberal por meio do qual o Brasil pretende tratar as questões comerciais a partir de então. Sem maiores deliberações públicas, é de se esperar que o Acordo Brasil-Chile possa ser utilizado como parâmetro para as próximas negociações comerciais brasileiras.

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