Dias de fúria na Colômbia

29 de maio de 2021

Por Davi Reis Procaci Gonçalves, Ingrid Meirelles, Júlia Luvizotto Nóbrega, Luiza Gouvêa e Rios Cobra
  

Há um mês, o povo colombiano ocupa as ruas por todo o país, com reivindicações sobre projetos de reforma tributária e do sistema de saúde. A pandemia de Covid-19 e seus efeitos na economia somam-se agora à truculência do Estado, que totalizou mais de 2.300 casos de violência policial desde o início das manifestações, segundo organizações de direitos humanos. Mesmo após recuos do governo de Ivan Duque, os protestos seguem com fôlego, impulsionados pela insatisfação com o descumprimento dos acordos de paz e com a desigualdade social. Resta saber se as manifestações vão acarretar maiores mudanças na condução do país, e se vai enfraquecer a direita colombiana a ponto de transformar os resultados eleitorais em 2022.

Em 28 de abril, iniciaram-se os protestos diante da insatisfação popular com um projeto de reforma tributária que seria levado por Duque ao Congresso. A reforma, sob o pretexto de amenizar os impactos da pandemia do Covid-19 na economia, aumentaria a arrecadação tributária através de medidas como a elevação dos impostos sobre a renda e produtos básicos. Tal iniciativa foi duramente criticada por onerar mais a população em um momento de vulnerabilidade e crise social. Isso é demonstrado pelas taxas de desemprego, que atingiram 14,2% em março, e de emprego informal, que compreende 49,2% da população, segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Dane). Após quatro dias consecutivos de protestos, Duque solicitou ao Congresso a retirada da proposta da pauta de votações. 

A despeito da concessão do presidente, as manifestações continuaram organizadas pelo Comitê Nacional de Greve, sob o slogan “A greve segue”. Sua composição é notavelmente heterogênea, incluindo centrais sindicais, estudantes, taxistas, caminhoneiros, agricultores e indígenas. Apesar do grande número de demandas, suas reivindicações resumem-se a três pontos principais: economia mais igualitária, reforma policial e implementação do plano de paz, cuja implementação parcial tem acirrado as tensões no país.

Desde o início das mobilizações, porta-vozes da Presidência e integrantes da Comissão Nacional de Greve se encontraram duas vezes. A negociação mais recente, no dia 17 de maio, simbolizou mais uma concessão do governo, que aceitou analisar as exigências do movimento, que busca a garantia dos direitos de protestar e o fim   da brutalidade das forças armadas.

 

Insatisfação com a extrema-direita

Originalmente convocados pela oposição à reforma tributária, os protestos transformaram-se no reflexo da insatisfação com o uribismo. O nome refere-se ao presidente de extrema-direita Álvaro Uribe (2002-10), de quem Duque é fiel seguidor. As demandas por direito universal a salário mínimo, melhorias na saúde pública e a dissolução da Esmad (Esquadrão Móvel Antidistúrbios), uma polícia especializada no combate a revoltas, refletem a tensão social no país. Ainda que o modelo econômico adotado tenha mantido estabilidade macroeconômica, também tem sido responsável por tornar a Colômbia um dos países com maior desigualdade na região. 

 

Grandes cidades mobilizadas 

Tomando uma proporção cada vez maior, os protestos estenderam-se por quase todo o país, resultando no bloqueio de regiões e cidades inteiras. O epicentro dos confrontos é Cali, cidade entre três regiões afetadas pelo tráfico de drogas: Chocó, Cauca e Valle del Cauca.

Segundo as organizações Indepaz e Temblores, de direitos humanos, foram 2.387 casos de violência policial, 52 assassinatos e 18 vítimas de violência sexual, causadas por membros da Força Pública. A repressão empreendida pelas forças armadas chamou a atenção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que condenou o uso excessivo de força durante os protestos.

Desde o dia 1º de maio, o presidente Iván Duque convocou o exército para auxiliar a repressão nas principais cidades. Assim como no Rio de Janeiro, em 2018, durante a intervenção federal do governo Temer no estado, os militares se mostram incapazes de lidar com uma população insatisfeita sem deixar uma trilha de sangue e corpos por onde passam. Para Duque, os manifestantes são, na verdade, “terroristas urbanos de baixa intensidade”. 

A força instituída na Colômbia é a Policía Nacional de Colombia, que responde diretamente ao presidente da República, o que a distingue do caso brasileiro, no qual as forças policiais são estaduais. Apesar de o investimento em segurança ser uma de suas bases políticas, a repressão aos protestos têm desgastado Duque a tal ponto que já é possível enxergar uma tentativa de descolamento por parte de Álvaro Uribe, seu padrinho político. 

 

A truculência histórica

Nos anos em que o presidente Álvaro Uribe esteve à frente da Casa Nariño, sede do governo, a política de segurança foi particularmente agressiva. As organizações guerrilheiras eram classificadas como grupos terroristas, de modo a permitir ação militar contra elas e aumentar drasticamente o contingente das Forças Armadas. Também durante o governo Uribe foi assinada a Diretiva Ministerial 029, que estabelecia o pagamento de recompensas pela maior eficácia das forças de segurança, medidas a partir do número de guerrilheiros assassinados. A decisão resultou na apresentação de assassinatos de civis como baixas de conflito pelas forças militares. 

As execuções extrajudiciais conhecidas como “falsos positivos” fizeram 6.402 vítimas no período entre 2002 e 2008, segundo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP). Também segundo a JEP, a prática tem mais de 40 anos no país, mas 78% dos casos ocorreram durante o mandato de Álvaro Uribe.

É interessante apontar que Uribe também contou com grande aproximação de Washington, consolidando sete bases militares no país e dando continuidade ao Plano Colômbia, vasto programa de financiamento ao Estado,  que alinhava  o país à política de segurança dos Estados Unidos no pós 11 de setembro. 

A lógica violenta do uribismo se expressou também na oposição aos acordos de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), em 2016. O ex-presidente liderou a campanha contrária aos acordos, defendendo uma “paz sem impunidade”. Grande parte da retórica era baseada numa argumentação do medo, dizendo que o acordo firmado em Havana “premia o terrorismo” ao abrandar as penas dos condenados por violações cometidas pela guerrilha e possibilitar a conversão das FARC em partido político legal, após a deposição das armas.. Além disso, associou as negociações a uma implementação de um hipotético “castro-chavismo” na Colômbia.  

Ivan Duque, quando eleito em 2018, propôs mudanças ao texto de seis artigos do estatuto da Justiça Especial para Paz (JEP), tribunal para julgar crimes cometidos durante o conflito. Todas as objeções procuravam uma linha mais dura na punição e reintegração dos antigos guerrilheiros à sociedade. A proposta foi derrotada na Câmara, de modo que, atualmente, o governo se empenha para o descumprimento do texto, já que não obteve sucesso em sua modificação.

 

Os números da violência

Segundo informe da Unidade de Investigação e Acusação (UIA) da Jurisdição Especial para a Paz (JEP), entre dezembro de 2016 e o fim de 2020, 904 líderes sociais e defensores de direitos humanos foram assassinados no país. Destes, cerca de metade participavam da materialização do acordo de paz. No caso de ex-combatentes, os números chegaram a 276 assassinatos. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz), só em 2021 foram 62 lideranças e 23 ex-combatentes assassinados ou desaparecidos. Os números exorbitantes compõem parte importante das reivindicações dos manifestantes, tanto em 2019 quanto em 2021.

Segundo a ONG Global Witness, a Colômbia é também o país mais letal para ativistas ambientais, com 64 mortes em 2019 – o Brasil é o terceiro, com 24 mortes. Entre 2016 e 2020, foram mais de 750 lideranças executadas, 193 atentados, 13 desparecimentos forçados e 13 sequestros. Esses crimes, em geral, são executados pelas chamadas “bandas criminais”, trata-se dos herdeiros das “Autodefesas Unidas da Colômbia” (AUC), grupos paramilitares que foram desmobilizados formalmente em 2005. A estrutura de organização, ligações com o narcotráfico, armamentos e ligações com setores empresariais nas áreas mais afastadas dos grandes centros urbanos facilitam a violência desses grupos contra populações e lideranças sociais e as aproximam, de certa forma, ao fenômeno das milícias no Brasil.

 

Cenário político

Não é a primeira vez que a população sai às ruas em protesto, desde a posse de Duque. Em 2019 e 2020, mobilizações populares expressaram várias das mesmas preocupações vistas no Paro Nacional de 2021. Em novembro de 2019, o rechaço era às medidas econômicas e sociais neoliberais, conhecidas como paquetazo. Dentre as iniciativas havia reformas tributária, trabalhista e previdenciária, bem como o desinvestimento na educação superior pública. Também estavam em pauta o não cumprimento dos acordos de paz estabelecidos em 2016 e a violência contra lideranças sociais e defensores dos direitos humanos. 

Em 2020, em resposta ao homicídio do advogado Javier Ordóñez, durante uma abordagem policial, as ruas foram tomadas e a questão da repressão das forças de segurança foi colocada em pauta. Outras reivindicações tratavam do enfrentamento da pandemia de Covid-19, da insatisfação social com o governo e dos massacres e assassinatos de líderes sociais e ex-combatentes, que seguiam acontecendo. A truculência oficial levou a pelo menos sete mortos e vinte feridos. 

 

A pandemia sem controle

Na última sexta-feira, 21, a América Latina chegou à marca de 1 milhão de mortos pela Covid-19 desde que o vírus chegou ao continente, há quinze meses. Destas vítimas, 85 mil são colombianas. Isso a coloca atrás apenas do Brasil e do México em números absolutos de mortos. Em número de contágios, ocupa o segundo lugar, com os piores índices, superada apenas pelo Brasil. Com o sistema sanitário sob capacidade máxima em Bogotá e outras cidades, o país passa por um novo aumento no número de infecções e de mortos. 

A campanha de vacinação teve início em 17 de fevereiro, e conta, também, com vacinas do consórcio Covax, tendo recebido 117 mil doses iniciais. Ao contrário do Brasil, que optou por cobertura mínima do consórcio, o país dedicou-se às negociações e, no dia 1o.de março, a Colômbia se tornou o primeiro país nas Américas a receber vacinas do consórcio da OMS para países pobres. Um mês depois, o país já tinha vacinado cerca de 2 milhões de pessoas com a primeira dose.

Segundo o presidente Duque, que se afasta do negacionismo de seu colega brasileiro, a vacinação é “uma vitória importante para nosso país. Não chegamos nem a dois meses após o início do plano de vacinação e hoje já estamos em dois milhões de vacinados”. As autoridades esperam que 35 milhões de pessoas estejam imunizadas até o fim do ano através das vacinas Pfizer/BioNTech, CoronaVac, Johnson & Johnson e AstraZeneca/Oxford. Até aqui, contudo, apenas 3,15 milhões de colombianos – cerca de 6,3% da população – estão completamente imunizados. A pandemia, enfrentada com um lockdown rígido e longo, mas sem implementação de renda básica, acentuou as contradições da lógica neoliberal que rege o uribismo. 

O levante popular pode significar mudanças no nas disputas para a presidência e para o Legislativo, em 2022, apesar de ser ainda cedo para se fazer prognósticos. Antes mesmo dos protestos, a pesquisa Invamer apontou 63,2% de desaprovação para o presidente em abril de 2021, um aumento de quase 12 pontos desde a última sondagem, em novembro de 2020. Enquanto isso, Gustavo Petro, candidato de esquerda que perdeu para o atual presidente nas eleições de 2018, aparecia como o pré-candidato com maior intenção de voto, com 38,3% de possíveis votos. 

Diante da insatisfação e da insurgência popular, a política neoliberal parece ter encontrado seus limites na Colômbia, cujas bases são semelhantes ao que ocorre na Argentina, na Bolívia e no Chile. Nesses países, protestos e resultados eleitorais têm sido a resposta ao aumento da pobreza e da desigualdade.

Jair Bolsonaro, no início de mandato, tentou uma aproximação com Duque, no bojo das articulações do Prosul, espécie de frente conservadora na região. A exemplo de Sebastián Piñera, no Chile, e Lacalle Pou, no Uruguai, Duque diplomaticamente se afastou do dirigente brasileiro. Parece que até mesmo a direita e a extrema-direita continentais têm seus limites.

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