29 de maio de 2021
Por Ana Tereza Marra de Sousa, Brenda Neris Gajus, José Luís e Vitor Hugo dos Santos
A troca de comando no Itamaraty pode alterar a dinâmica da política externa ou teremos apenas mudanças cosméticas?
O Fim da Era Araújo
Marcado pelo forte apelo ideológico de extrema-direita e distanciamento das características históricas que formavam a diplomacia brasileira, os dois anos da gestão de Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores chegaram ao fim no dia 29 de março, por meio de uma carta de demissão, na qual havia afirmado ter sofrido falsas acusações: “Ergueu-se contra mim uma narrativa falsa e hipócrita, a serviço de interesses escusos nacionais e estrangeiros, segundo a qual minha atuação prejudicaria a obtenção de vacinas.”
Semanas anteriores à sua demissão, o ex-chanceler já vinha sofrendo pressão por diversos agentes internos para renunciar de seu cargo, desde o Congresso Nacional, até ministros e empresários, todos insatisfeitos com o seu fraco desempenho na aquisição de vacinas, na negociação por leitos e cilindros de oxigênio. Ademais, em decorrência de sua postura voltada para defesa de valores ideológicos bolsonaristas, também apresentou pouca articulação com o BRICS, composto por países que se mostraram importantes no desenvolvimento de equipamentos médicos e imunizantes – como o caso da Índia, China e Rússia – e em contrapartida alinhou-se com líderes de extrema-direita, como o Donald Trump (Estados Unidos) e Benjamin Netanyahu (Israel), sem conseguir ganhos substanciais com tais aproximações. Por fim, diante a crise sanitária global, sua atuação em organismos internacionais também se mostrou pífia, exigindo a cota mínima de vacinas no consórcio COVAX facility, criado pela Organização mundial da Saúde (OMS), além de não ter apoiado a proposta de quebra de patentes das vacinas na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Desgaste de imagem
Para além de sua baixa eficiência em negociações internacionais, tensões geradas pela sua postura pouco diplomática também foram importantes para o desgaste de sua imagem pública, como nas diversas vezes que insinuou que o COVID-19 seria um espécie de vírus comunista – gerando intrigas com o embaixador chinês no Brasil – acusando a OMS de querer implantar o comunismo por meio das recomendações sanitárias, além de ter atacado a senadora Kátia Abreu (PP), pelo Twitter, ao dizer que na última audiência entre os dois, a senadora não teria se pronunciado sobre vacinas, apenas sobre questões que envolvem o 5G, insinuando que a senadora apenas estaria preocupada em “fazer lobby” para a China.
Diante desse cenário caótico de desavenças com agentes internos e externos, aliado ao agravamento da crise sanitária no país e a vitória de Joe Biden nos EUA, nenhuma saída viável se mostrou disponível ao governo Bolsonaro além da renúncia de Ernesto Araújo.
Um novo chanceler
No dia 6 de abril, o diplomata Carlos França assumiu o cargo de ministro das Relações Exteriores. Considerado tradicional e pragmático, seu último posto no Itamaraty foi como ministro-conselheiro na embaixada do Brasil em La Paz, na Bolívia. Em seu pronunciamento de posse, Carlos França destacou as três principais temáticas que seriam tratadas em sua gestão: a recuperação econômica do país, a garantia do desenvolvimento sustentável e a formação de uma Diplomacia da Saúde diante urgência mundial no combate ao COVID-19, se comprometendo a engajar o Brasil em uma cooperação internacional sem exclusões e preferências diplomáticas, ressaltando o poder do diálogo.
Mesmo sendo um curto período de tempo para promover uma análise mais aprofundada, seus primeiros meses como ministro não excederam o esperado, mostrando-se mais moderado, diferentemente de seu antecessor. Como no agradecimento à OMS, na Cúpula Global de Saúde do G20, pelo combate à pandemia, elogiando seus esforços para acelerar a produção de vacina e torná-las acessíveis – por meio do ACTA e Covax – e ao criar o comitê de crise no Itamaraty a fim de “intensificar esforços para a obtenção de vacinas, testes, medicamentos, e insumos com vistas ao imediato fortalecimento da capacidade nacional de enfrentamento à pandemia”.
Carlos França e a China
A mudança de ministro se mostrou inicialmente positiva para a reaproximação das relações Brasil-China. Em pouco tempo após sua posse, o novo chanceler brasileiro recebeu um telefonema do Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, em que concordaram na urgência no combate do Covid-19, na cooperação na fabricação IFAs, medicamentos e vacinas, além de acenarem perspectivas de crescimento nas relações comerciais e de investimentos.
Outra importante personalidade chinesa que felicitou o novo ministro foi o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, que no dia 13 de abril, parabenizou o chanceler “por ter feito tanto trabalho em menos de uma semana”, além de desejar muito sucesso no futuro. Novos constrangimentos, entretanto, voltaram a assolar as relações entre os dois países. No dia 27 de abril, numa reunião com o Conselho de Saúde Suplementar, o ministro da economia Paulo Guedes, afirmou que os chineses teriam inventado o coronavírus e que a vacina deles seria menos efetiva em comparação ao imunizante dos Estados Unidos. No mesmo dia, o embaixador chinês respondeu no Twitter que a China era responsável por 95% dos insumos e vacinas destinados para o Brasil, e a Coronavac por 84% das vacinações totais já realizadas no país. No dia seguinte, Carlos França ligou para o embaixador chinês para reforçar a relação amistosa entre ambos chanceleres e a parceria na produção de vacinas – postura distinta da exercida por Aráujo quando ocorreram tensões nas relações entre os países em 2020.
Já no dia 05/05, durante uma cerimônia oficial em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro sugeriu que o Covid-19 poderia ter sido criado em laboratório com finalidade de ser uma arma “química/bacteriológica”, também alertou que poderíamos estar vivendo uma “nova guerra” e em seguida questionou “qual país que mais cresceu o seu PIB” (sendo que a China foi o único país entre as grandes economias que apresentou crescimento do PIB em 2020).
Em seguida, o porta-voz do Ministério da Relações Exteriores da China Wang Wenbin replicou o comentário de Bolsonaro afirmando que a China se opõe a qualquer tentativa de politização do Covid-19 e que o vírus seria “um inimigo comum da humanidade”. Personalidades brasileiras também se manifestaram após o comentário de Bolsonaro, a Frente Parlamentar Brasil-China soltou uma nota afirmando o presidente poderia estar sofrendo com uma “grave doença mental” , o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, também manifestou preocupação após a declaração de Bolsonaro e Guedes, dizendo que esses ataques estariam atrasando a entrega e quantidade de IFAs destinados para o Brasil, por fim a senadora e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, Kátia Abreu (PP), abriu uma audiência com chanceler Carlos França para discutir o futuro da política externa brasileira, e perguntou para o ministro sobre o comentário de Bolsonaro e se não haveria problemas políticos no futuro das relações Brasil-China, especialmente no âmbito da entrega de vacinas. Por sua vez, o ministro garantiu que não haveria problemas na gestão Bolsonaro com o país asiático e que não haveria problemas nas relações Brasil-China no envio de imunizantes.
Um novo começo para as relações Brasil-China?
Por fim, é válido destacar que o novo chanceler busca avançar as relações entre o Brasil e a China em sua gestão, de acordo com seu pronunciamento na audiência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, o ministro afirmou que estaria em processo de atualização da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível (Cosban), além disso, enxergava a necessidade de criação de novos consulados brasileiros na China com o intuito de inclusive aumentar a cooperação entre ambas as nações no âmbito de Ciência & Tecnologia. Com a chegada do novo ministro, espera-se que o conhecimento acumulado do corpo diplomático do Itamaraty nas relações com a China, que foi em grande parte preterido pelas posições ideológicas de Aráujo, tenha mais oportunidades para pautar as relações e recuperar o espaço que a entidade perdeu como agente estratégico nas relações bilaterais.
Desdém bolsonarista
Entretanto, por mais que os interesses mais pragmáticos das relações Brasil-China tenham ganhado mais força com a entrada de Carlos França na chancelaria, enxerga-se ainda que o desdém bolsonarista contra a China não foi eliminado, como mostraram as declarações de Guedes e Bolsonaro. O que está mudando é que o Itamaraty agora se posiciona como um instrumento para apaziguar – e não criar tensões, como na gestão Aráujo – os impulsos anti-China que surgem de outros segmentos do governo.
Um exemplo disso ocorreu no dia 22 de maio, quando o Ministério da Saúde (MS) citou a chegada de insumos do “exterior” – sem citar a China – para a produção de vacina da Astrazeneca na Fiocruz. O embaixador Yang Wanming replicou a postagem do MS frisando o fato de não haver o reconhecimento da China (ver o grifo na figura 1) com uma frase enigmática: “Confúcio disse, feito para amigos, fiel à sua palavra”; a qual – no seu novo papel de mediador e apaziguador de possíveis desavenças – o Itamaraty correu para responder, reconhecendo a China e agradecendo-a (ver figura 2).
Figura 1
Figura 2