16 de maio de 2022
Por Ana Beatriz Aquino, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Isabella Brandão Alcantara, Vinicius Silva Santos e Vitor Cristian Maciel Gomes (Foto: CEPAL)
Apesar da assinatura de diversos acordos internacionais, o mundo enfrenta uma crise ambiental sem precedentes. A expansão do desmatamento, da poluição e da contaminação de fontes de água, a privatização de áreas anteriormente controladas têm como expressão maior as mudanças climáticas, o aparelhamento de instrumentos estatais de fiscalização e o aumento da violência contra protetores e ativistas ambientais compõem um quadro preocupante. No cenário latino-americano a discussão vem tomando forma desde o início da década passada. Como enfrentar a captura do Estado pelo mercado na área ambiental? Como se fazer cumprir o acesso à justiça ambiental? Como lidar com a conivência ou incentivo do poder público a agressões ambientais? Foi diante de questionamentos como esses que o Acordo de Escazú foi elaborado entre 2015 e 2018: uma resposta ao avanço da destruição da natureza e a desintegração social no cenário latino-americano e caribenho, buscando maior transparência e integração entre os países da região.
A primeira cúpula do Acordo de Escazú (Acordo regional sobre acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em assuntos ambientais na América Latina e no Caribe) aconteceu entre 20 e 22 de abril, na sede da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em Santiago, no Chile. O presidente chileno, Gabriel Boric, foi o responsável pela abertura da primeira Conferência das Partes (COP 1) do acordo aprovado em 2018, após seis anos de negociações. Um dos diferenciais da COP 1 é a participação de membros da sociedade civil, o que estabelece uma dinâmica distinta em relação a outros tratados internacionais que ocorrem a portas fechadas, contando apenas com a presença de entes governamentais em atividades de pouca transparência.
Um pacto histórico
Derivado da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2012, realizada no Rio de Janeiro, Escazú é o único acordo juridicamente vinculante oriundo da Rio+20. Sua adoção representa o primeiro tratado regional ambiental da América Latina e do Caribe. Para a Secretária Executiva da CEPAL Alicia Bárcena, seus termos reforçam o papel do multilateralismo como instrumento de promoção do desenvolvimento sustentável através da cooperação Sul-Sul. O nome vem da localidade de Escazú, na Costa Rica, onde o texto foi apresentado em março de 2018.
O acordo é fundamentado no Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, que assegura a todas as pessoas o acesso à informação, à participação significativa em processos decisórios que afetem suas vidas e seu ambiente e o acesso à justiça no caso de violação de direitos em temas ambientais. Ele destaca a defesa dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente como condições indissociáveis para a realização do desenvolvimento sustentável.
A preparação do Acordo reuniu não apenas representantes de governos e organizações internacionais, como a CEPAL, mas também movimentos sociais, acadêmicos e a sociedade civil em geral. O resultado é um tratado com obrigações progressivas, ligadas simultaneamente à luta pelos direitos humanos e ambientais na região, como fica evidente em seu compromisso com a proteção dos defensores dos direitos humanos em assuntos ambientais. Esse último ponto é de especial relevância diante do contexto continental. Conforme relatório divulgado no ano passado pela ONG Global Witness, em 2020 a região foi a mais perigosa do mundo para ativistas ambientais. A Colômbia registrou o maior número de ataques, com 65 assassinatos, seguida pelo México, com 30 e o Brasil foi palco de 20 mortes.
Cooperação regional
A partir disso, o Acordo propõe a criação e o fortalecimento das capacidades e da cooperação em nível regional visando, segundo o texto, “a implementação plena e efetiva, na América Latina e no Caribe, dos direitos de acesso à informação ambiental, participação pública nos processos de tomada de decisões ambientais e acesso à justiça em questões ambientais”. Para a ONG Transparência Internacional, na prática isso significa um esforço coletivo voltado para quatro pilares: participação social de grupos vulneráveis nos processos decisórios referentes à atividades de impacto ambiental que os afetem; fortalecimento de órgãos e autoridades competentes por informações sobre o meio ambiente, incentivando a transparência; garantia de acesso à justiça para reparação de danos e resolução de conflitos; e, por fim, proteção aos defensores ambientais, através de um ambiente seguro que previne, investiga e pune intimidações e agressões. Conforme apontou Mario Cimoli, secretário executivo da CEPAL, na Cúpula: “Num momento no qual o multilateralismo não encontra o caminho para resolver problemas graves, o fato da América Latina e Caribe se reunirem para discutir um acordo que parte da base ambiental e garante direitos e cidadania é fato deve nos encher de orgulho”.
Até o momento, o Acordo conta com as assinaturas de 24 governantes de países latino-americanos e caribenhos. Dentre esses, 12 já o ratificaram em suas instâncias legislativas, tornando-se Estados parte. São eles: Antígua e Barbuda, Argentina, Bolívia, Equador, Guiana, México, Nicarágua, Panamá, São Vicente e Granadinas, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia e Uruguai.
A recusa inicial de ratificação por parte do Chile e da Colômbia e a negativa brasileira evidenciam como o Acordo pode apresentar obstáculos para as medidas neoliberais adotadas em relação às políticas ambientais. A partir da posse de Gabriel Boric, em 2022, e dos impactos da Convenção Constitucional nas discussões sobre meio ambiente no país, o Chile tem buscado recuperar a posição de liderança que ocupava em relação ao tema.
Apesar de Michel Temer ter firmado o Acordo em 2018, sua gestão não o enviou ao Congresso Nacional. Em resposta a um Requerimento de Informação sobre a ratificação, o ministro das Relações Exteriores Carlos Alberto França afirmou que “Em razão da assunção de novo governo no Brasil, em 2019, tornou-se necessária a realização de análise política dos dispositivos do Acordo à luz das novas diretrizes da política ambiental brasileira”. Entre os motivos pela recusa ao pacto, o diplomata afirma: “Percebe-se (…) a possibilidade de restrição à autonomia dos poderes Legislativo e Executivo nacionais, além de eventual insegurança jurídica e política para projetos públicos e privados brasileiros”. A assertiva diz mais sobre o governo a que França serve do que sobre o Acordo.
Para o engenheiro agrônomo e professor titular da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP) Adilson Paschoal, é mais correto se utilizar o termo “crise ambiente” ao invés de “crise ambiental”. Segundo ele, essa é a denominação apropriada para a situação atual. Paschoal argumenta que “‘ambiental provém do termo inglês ‘environmental’, incorretamente traduzido com a terminação ‘al’”. Entretanto, manteve-se “ambiental” em conceitos definidos e escritos dessa forma.
As crises na região
A América Latina abriga 6 dos 10 países mais biodiversos do mundo — Brasil, Colômbia, México, Peru, Equador e Venezuela —, a floresta Amazônica está presente em oitos (Brasil, Colômbia, México, Peru, Equador, Bolívia, Suriname, Guianas e Venezuela), constituindo-se no maior bioma do planeta. Ao mesmo tempo, essa formação é permanentemente ameaçada: em 2021 foram destruídos 10.362km² de mata nativa amazônica (IMAZON, 2022). O Pantanal passou por uma seca extrema e incêndios nos territórios da Bolívia, Brasil, Paraguai e Argentina, enquanto no delta do Paraná, na Argentina, também aumentaram 170% os casos de incêndios no último ano (ISTOÉ, 2021).
As populações primeiramente atingidas são justamente aquelas que dependem e vivem nesses biomas, como comunidades indígenas, camponesas, ribeirinhas, quilombolas e seringueiras. Elas têm seu modo de vida e garantias de segurança diretamente atingidos, sendo muitas vezes expulsas ou mortas como visto no caso recente da invasão de garimpeiros às terras do povo yanomami no norte do Brasil (BBC, 2022). Ativistas latinoamericanos e caribenhos são constantemente assassinados ao denunciar os descasos em curso. Dos 20 países que mais assassinam ativistas ambientais e defensores de terra, 9 são latino-americanos (GLOBAL WITNESS, 2021): Colômbia, México, Brasil, Honduras Guatemala, Nicarágua, Peru, Costa Rica e Argentina.
Impactos internacionais
O Acordo de Escazú apresenta um potencial significativo na defesa dos direitos humanos e no desenvolvimento que preza pela preservação do meio ambiente.
Segundo a ONG Transparência Internacional, o acesso à informação e o incentivo à transparência nas instituições responsáveis pela produção de dados ambientais constituem medidas relevantes no combate à corrupção e ao crime em questões ambientais. como fatores adicionais, a acessibilidade e a transparência promovem uma maior exposição da atuação de governos e empresas, tornando-os mais suscetíveis ao escrutínio público e facilitando a detecção de irregularidades e ilegalidades (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2020). Para tanto, essas medidas dependem do fortalecimento das instituições nacionais para que a participação social prevista no documento seja efetiva.
Para Alicia Bárcena, da CEPAL, a participação de todos os setores da sociedade, principalmente dos grupos mais vulneráveis, é fundamental para abordar questões ambientais urgentes. A garantia do acesso à justiça também representa ganhos expressivos. Ao prever mecanismos para a resolução de conflitos, reparação de danos e responsabilização, o Acordo de Escazú promove não só a proteção de direitos, mas também a proteção de grupos vulneráveis e defensores do meio ambiente — disposição importante para a luta por justiça ambiental em uma região crítica para ativistas.
Por último, mas não menos importante, o Acordo é especialmente emblemático por representar uma iniciativa de articulação regional com fins de cooperação entre os países da América Latina e o Caribe. Ele oferece uma oportunidade de colaboração alinhada com prioridades comuns. Conforme relatório da ONG Transparência Internacional, três são os mecanismos efetivamente asseguram essa cooperação: a Conferência das Partes (COP), órgão máximo na tomada de decisões; o Centro de Intercâmbio de Informações, responsável por compilar e disponibilizar medidas que possam ser do interesse dos países, como leis, políticas e boas práticas; e o Comitê de Apoio à Implementação e ao Cumprimento, que promove, apoia e examina a implementação e o cumprimento do Acordo.
Vale destacar o pioneirismo da iniciativa como tratado ambiental regional. Se for plenamente colocado em prática, pode apontar para uma nova perspectiva de democracia ambiental e de direitos humanos no continente.
¹ PASCHOAL, Adilson D. Pragas, Agrotóxicos e a Crise Ambiente: Problemas e soluções. São Paulo: Expressão Popular, 2019.