A guerra na Ucrânia sob o prisma da mídia comunitária: o caso da TV Zapão

31 de maio de 2022

Por Alan Anelli, Isadora Henriques Ostrowski, Laura Pugliesi, Leonardo Martin de Souza e Sabrina Oliveira (Foto: Pixabay)

 

Fora da mídia tradicional e seu surpreendente diálogo com as redes sociais, que é uma novidade revelada pela guerra na Ucrânia, a primeira da era hiper digital, o WhatsApp está na origem de uma pequena revolução nas transmissões comunitárias, especialmente ativas em algumas regiões urbanas e rurais. Esse é o caso da TV Zapão, uma grande rede de divulgação de pequenos negócios através do Whatsapp em Heliópolis que passou a se dedicar ao tema, reproduzindo o discurso do bolsonarismo raiz. 

 

A guerra na Ucrânia tem sido objeto de intensa cobertura pela imprensa comercial brasileira. Os principais canais de televisão mobilizaram importantes meios para a cobertura, recorrendo a analistas internacionais e correspondentes. A imprensa escrita convocou repórteres e especialistas, produzindo centenas de matérias sobre o tema. Essa cobertura alimentou as redes sociais,  onde uma maioria considerável de opiniões foi formada a partir de reportagens da mídia tradicional. Não por acaso, os principais comentaristas de televisão (Otávio Guedes, Guga Chacra, etc) dividiram o podium dos mais comentados no Twitter com Vladimir Putin e Wolodymir Zelenski. Durante anos, predominou a ideia que a mídia tradicional e as redes sociais eram dois universos herméticos que raramente dialogavam, mas a guerra mostrou que os dois mundos interagem e se retroalimentam.

 

Expandindo a análise da cobertura da guerra na Ucrânia além do universo binário da mídia tradicional, o WhatsApp não apenas ampliou o alcance, como mudou a linguagem da informação e o seu conteúdo. A guerra na Ucrânia chegou às redes locais, a partir de um fluxo contínuo de memes, vídeos, textos compartilhados e áudios, e a informalidade teve papel fundamental na formação da opinião pública nesses círculos. 

 

A ideia de criação da rede nasceu do empresário Fábio Zapão e sua visão empreendedora. O dono da TV Zapão possuía uma loja de bolos e utilizava sua conta pessoal de Whatsapp para divulgar seu produto. Ao perceber que poderia ampliar seu negócio, divulgando também outras lojas da região, Fábio começou a ampliar sua rede de contatos.


Com o aumento da popularidade, o empresário expandiu seu projeto. Seu novo objetivo era se tornar a maior mídia de todo o bairro. Entendeu que, para isso, era preciso conquistar e manter sua audiência. Então começou a oferecer novos serviços e conteúdo pelo Whatsapp e Facebook, principalmente. Esses serviços incluem sorteios de prêmios, bingos e eventos para os seguidores. O “Zapão Economia”, por exemplo, avalia os valores dos principais mercados do bairro. O “Zapão Empregos”divulga vagas de emprego, o ”Zapão Achadão” é uma central de achados e perdidos, que também  divulga e busca pessoas e animais desaparecidos, e o “Zapão Informação” é um noticiário do bairro e dos principais acontecimentos do mundo. Foi dessa forma que se consolidou a TV Zapão, classificada como agência de marketing digital,  atualmente com 54.380 seguidores no Facebook.

 

Ocorre que Fábio é bolsonarista e ávido defensor da “ucranização” do Brasil – bordão popularizado por Sara Giromini e seu movimento dos 300, que diz respeito à desobediência civil violenta, dando ao presidente a autoridade de implementar um governo que se alimenta de um nacionalismo excludente e que não precisa respeitar os demais poderes. E foi assim que a TV Zapão passou a disseminar elogios diários aos brasileiros que estavam se mobilizando em grupos de WhatsApp, Telegram e em redes sociais, a fim de obter mais informações a respeito da Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia, uma unidade militar formada por estrangeiros que desejam combater os russos no país. 

A comunidade chegou a soltar notas de cobrança para que Jair Bolsonaro adotasse uma posição mais crítica em relação ao conflito, visto que ele, com o cuidado de manter incandescente sua base ideológica, permaneceu em posição de neutralidade.

 

Como a guerra na Ucrânia entrou na “programação” da TV Zapão levanta a questão de que, apesar do tema não sensibilizar igualmente todos os setores do bolsonarismo, comove, principalmente, a sua base mais fiel e radical. Essa parcela de apoiadores do presidente é uma peça fundamental na guerra cultural bolsonarista, que traz importantes elementos transnacionais, que podem ser encontrados nos movimentos globais de um nova direita neofascista, unem políticos de extrema direita de todo o mundo, são guiados por estrategistas, como Steve Bannon, e se apoiam fortemente no hábil e eficiente uso das redes sociais. 

 

Essa parcela já foi representada pelo ex-Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que expôs muito claramente, em seus discursos ao longo do período que ocupou a chefia do MRE e em seu artigo artigo “Trump e o Ocidente”¹, uma ideologia pró-ocidente e pan-nacionalista, baseada em uma estratégia de caráter civilizacional, pautada por valores de defesa da família e de Deus, que estariam sendo ameaçados pelo chamado “globalismo”, supostamente fundamentado no chamado “marxismo-cultural”. E é representando ameaças ao Ocidente e seus valores que a guerra na Ucrânia ganhou lugar de destaque e preocupação nesse setor do bolsonarismo e se propagou em comunidades noticiosas veiculadas pelo Whatsapp.

 

Em breve, será possível identificar semelhanças e diferenças na opinião sobre o conflito por parte de consumidores da mídia dita informal e formal. No momento, o que vemos é que a cobertura realizada pela mídia reflete as dinâmicas políticas do conflito. A mídia brasileira ressoa  a visão adotada pelas mídias britânicas e estadunidenses. Essa interpretação tende a criar a narrativa, já muito conhecida culturalmente, de “vilões” e “mocinhos”, colocando a Rússia como antagonista da Ucrânia, e consagrando seu presidente, Volodymyr Zelensky, como o grande herói do conflito, apesar de, por vezes, ter uma atuação mais midiática do que resolutiva. Essa visão também defende um enfraquecimento da nação comandada por Vladimir Putin, sendo necessária a aplicação de sanções econômicas, a retirada de empresas estrangeiras do país e o fortalecimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Há ainda uma outra visão veiculada pela mídia de países europeus como a Alemanha e a França, que apostam na possibilidade de resolução do conflito a partir do diálogo com a Rússia. 

 

As diversas opiniões públicas reproduzem, de maneira geral, o posicionamento que os países buscam com suas próprias políticas externas em relação ao conflito. Apesar das diferentes possibilidades de interpretação, é possível observar como a polarização política se reflete no debate sobre o conflito – tanto em nível internacional como nacional.

 

¹ Araújo, Ernesto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente. IN: Cadernos de Política Exterior. Brasília: FUNAG, Ano III, nº6, 2º semestre de 2017.

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